Em 1845, o médico alemão Heinrich Hoffmann publicou aquele que viria a ser um dos primeiros clássicos dos Bilderbuch infantis da história desse mesmo campo, Struwwelpeter (o título original era maior, mais descritivo e nada interessante). Não sendo um artista, os desenhos de Hoffman têm porém uma característica de crueza e simplicidade que viriam a tornar-se a bitola de muita da produção da literatura desenhada infantil dos tempos a vir. A sua estruturação em pequenos nódulos de acção seriam ainda um contributo insofismável para a banda desenhada moderna, sobretudo pelo papel que tiveram sobre aquele que viria a ser considerado a figura patrística da banda desenhada alemã, Wilhelm Busch, autor de Max und Moritz. Além do mais, aliados às suas curtas dez histórias em verso, portadoras de uma indubitável moral que podermos classificar como cruel, teutónica, marcial, vindicativa, até mesmo de contornos de lei retributiva, a força que fariam passar era a de uma musculada matéria, para sempre indelével na cabeça dos seus pequenos (e grandes) leitores. As histórias passam pelo malvado Friederich, que maltrata os animais e será finalmente mordido por um cão; por um trio de miúdos a gozar com a negritude de um rapaz africado, que acabam mergulhados em tinta preta pelo São Nicolau; por Kaspar, que não quer comer a sopa, e acaba por morrer de subnutrição; e pelo mais famoso e violento dos contos, de um pequeno rapaz que não pára de chuchar os polegares e descobre que as ameaças da mãe são reais quando finalmente o Alfaiate das tesouras imensas aparece e lhe decepa os dedos, cuspindo sangue e dor por todo o lado... No que diz respeito aos princípios ditos pedagógicos (mas também debilmente moralistas, comerciais, paninhos quentes, açucarados) que governam o mundo editorial da literatura infanto-juvenil, aquém- e além-Guadiana, as mais das vezes pautados por uma perniciosa interpretação do princípio de Cícero de que a oratória deveria levar “ad docendum, ad delectandum, ad permovendum”, em que é o primeiro factor aquele que é estúpida e obviamente sublinhado em detrimento dos outros elementos que permitem uma aproximação mais directa, o livro de Hoffman é um proscrito, naturalmente. É violento, cruel demais, senão mesmo horrendo. Mas as crianças são maiores monstros do que se pensa, e são criaturas capazes de entender de forma bem diferente a crueldade que se lhes reserva. (Mais)
Destituídas de todos os instrumentos de distanciação que a educação e o crescimento lhes oferecem, como a ironia, a conceptalização, a cultura, o pensamento histórico e os sistemas, o contacto com essas ideias é directo, como uma ferida aberta. Um encontro brutal. Porém, é assim mesmo que devem ser, enfrentar os medos significa vê-los e enfrontá-los como medos, e não como versões fofinhas e inócuas do que poderia eventualmente ser um medo.
Muitas versões deste livro seriam revisitadas ao longo dos seus mais de 150 anos de existência, não só em termos de versões coloridas, aumentadas, reescritas, etc., como em versões de artistas novos, como a de Bob Staake, citada pela sua visibilidade no mercado.
O artista alemão Georg Baber, mais conhecido como Atak, fez recentemente (ontem) uma apresentação no Ar.Co, uma espécie de Master Class sobre o seu trabalho. Nessa ocasião, foi-nos tornado possível o acesso e leitura da versão do livro de Hoffman pelas mãos de Atak, cujo título completo é, novamente, Der Struwwelpeter. Lustige Geschichten und drollige Bilder frei nach Heinrich Hoffmann. Este autor já experimentou em momentos anteriores trabalhar sobre matérias alheias de outros autores. Podemos apontar, por exemplo, o seu livro Alice embrasse la lune avant qu'elle dorme (Frémok, 2000) e o primeiro número do seu comic book, Wundertüte, intitulado “Asta und Bohno”, o primeiro baralhando de um modo extremamente livre a personagem de Carroll, o segundo recriando, com a ajuda de uma mão-cheia de artistas e comparsas, uma das fotonovelas da revista pop Bravo. No entanto, com Struwwelpeter há mesmo uma recriação mais íntima da matéria original. O autor recria os textos em novas versões, ainda em verso, mas segundo palavras diferentes, colocadas lado a lado ao seu tempo presente, e recria as imagens, não se deixando pelas estruturas de composição de página de Hoffmann, mas desdobrando-as por várias páginas, alargando o volume, transformando o brevíssimo tratado oitocentista num largo livro contemporâneo. A aposta foi seguida por uma editora suíça que não tem presença no mercado editorial infantil, dado o silêncio da resposta de outras editoras. Confirma-se assim o receio e distância desse mundo em relação a esta obra.
Nas mãos de Atak, estas histórias ganham vários contornos. Em primeiro lugar, o autor explora plasticamente linhas de força que identificam, a um só tempo, a sua proveniência histórica, e a sua inscrição contemporânea. O primeiro aspecto está presente na forma como o autor constrói as suas personagens e como as coloca nos espaços diegéticos das imagens, de acordo com um princípio “teatral”, nas suas palavras, presentes em Hoffmann: uma espécie de espaço flutuante em que as personagens, os objectos e os espaços não obedecem propriamente a um grau de realismo da representação do mundo, mas surgem como que contra um fundo informe, sob a forma de signos que podem ser associados livremente e ajudar os leitores-espectadores a montarem as suas próprias relações. No entanto, onde Hoffmann prezava uma quase realidade minimal, Atak entrega-se aos seus exercícios de horror vacui, preenchendo todo o espaço com cores e padrões, objectos e personagens secundárias, graus de vida os pormenores, embelezamentos quase excessivos à acção representada. Em muitos aspectos, a virulência e angulosidade gráfica de Atak está aqui adocicada, fruto de trabalhos anteriores no campo da ilustração “infantil”, e cujo trabalho de cromatismos suavíssimos, trabalho de figuração e mesmo técnicas de pintura e densas, finas texturas nos remetem a um período temporal entre as décadas de 1950s e 1960s (através do cotejamento com nomes como os de Jan Marcin Szancer, Rojankovsky, Leonard Weisgard ou Garth Williams), ou então algumas das mais constantes características de uma certa pintura popular, ou ainda linguagens recuperadoras, como a de Melinda Gebbie em Lost Girls. Não obstante, mantêm-se aqueles traços que o irmanam à ratty line de Gary Panter. O segundo, o aspecto da contemporaneidade, revela-se pela actualização das personagens principais – Friederich é um skinhead, Konrad veste-se como um miúdo contemporâneo, com roupas de marca, um boneco do Batman, livros do Babar, uma bola de baseball...
Um desdobramento do trabalho de Atak que ganha presença nesta versão de Struwwelpeter é a integração de toda uma série de referências visuais a uma cultura, ou uma história pessoal, das leituras de banda desenhada, da ilustração, da cultura pop do próprio Atak no plano de composição deste livro, uma das linhas de continuidade no seu trabalho, como se estivesse preocupado com a salvaguarda dessa memória pessoal e, ao mesmo tempo, como exercício de tornar claro a família onde se quer inscrever enquanto criador de imagens. O que salta à vista nestas pequenas historietas é a presença dos dois gatos que as atravessam a todas, um o gato negro do artista do underground norte-americano Kaz, um outro o gato branco e ornado do totem japonês do bom sucesso comercial. Mas esse quadro de referências não se fica por aí: vemos várias instâncias do Tintin, o Blue Meanie do The Yellow Submarine, Olívia Palito, brinquedos mais ou menos reconhecíveis, mas também referências à “alta cultura”, com uma reprodução do famoso quadro de C. D. Friederich. Esta é uma instância também explorada por Atak noutros projectos, mas ganha aqui como um direito de cidadania enquanto agentes nas histórias (re)contadas, e em que o texto recorda certos adágios e provérbios em alemão.
Aquele último domínio que apontáramos, o da contemporaneização destas histórias, desdobra-se ainda pela inclusão de um capítulo adicional, sobre “Justin”. O autor fez uma investigação sobre este livro durante a sua criação (para responder às comemorações do nascimento de Hoffmann), adquirindo várias versões do livro não apenas em alemão e através dos anos mas também a edições estrangeiras, e uma das coisas que mais o surpreendeu era o facto de quase todas apresentarem sempre acrescentos que não do punho do autor original. Se bem que nenhuma dessas adições tenha garantido um mínimo da qualidade, pertinência ou sequer da legibilidade gráfica de Hoffmann, elas respondiam à pulsão inevitável de querer reler um livro no seu próprio tempo, de procurar estender a sua presença, não de um modo diferente daquele que já havíamos discutido a propósito das personagens literárias (ou de outros círculos) que ganham uma vida autónoma fora das suas obras primeiras. Respondendo a esse desafio, Atak, e Fil, co-autor dos textos, oferecem um episódio novo, na mesma estrutura de dísticos de rimas simples, totalmente consagrado a uma criança que poderá representar todas as crianças das nossas sociedades ocidentais pós-modernas, capitalistas, e basicamente desiludidas com quase tudo. O aspecto gráfico da história abandona as sensações tácteis e de experimentação de texturas e cores do resto do livro, passando a apresentar-se num desapaixonado desenho vectorial com uma básica separação de cores, não muito distante de uma espécie de cópia às três pancadas de Chris Ware. Justin chega da escola, vê uns desenhos animados, jogo com a consola, chama um amigo para brincar com soldadinhos e, chegada a noite, vai para a cama, sonhando com uma X-Box. Finalmente o Natal chega, e recebe uma camisola e uma X-Box. Fim. Não há qualquer aventura, qualquer desvio, qualquer grau de violência, qualquer expectativa real senão um fraquíssimo desejo materialista, facilmente conquistável com uma birra e uma data apoiada comercialmente. É como se fosse esta a realidade reservada às criancinhas ultra-protegidas dos nossos dias (nas nossas sociedades, não nos cansamos de qualificar, e nos círculos das classes sociais que o permitem), onde se dá um confronto, nunca resolvido, entre a sede da perfeição (pelos pais) e o desencanto (dos pais) pelo mundo, que afecta as mesmas crianças.
É bem possível que, bem vistas as coisas, a violência em torno das histórias de Telémaco, de Alice, do Pedro Porcalhão (de Hoffmann), e até aquela de que foi vítima o Marco da Montanha, seja hoje algo de evitar junto às crianças. Mas são ficções, não algo a que elas tenham de experienciar; ou melhor, é algo que devem experienciar, precisamente através das ficções, por mais violentas que sejam, inclusive a versão antiga e crua do Capuchinho Vermelho.
Atak não é o único autor a querer reintegrar esta esfera de violência e de morais austeras como formas de abordar o mundo infantil, um continente que por mais que se explore, sempre reservará um grau de natureza selvagem e indómita. Este livro, o qual se poderá irmanar com o livro de Muriel Bloch, que reconta uma lenda africana, Comment la mort est revenue à la vie, ilustrado pelo autor, contribui não apenas para penetrar mais fundo nessa natureza como até mesmo para a preservar, incólume.
Nota: agradecimentos ao autor, pela disponibilidade e pela oferta das imagens.
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