Alan Moore, para além da sua famosa carreira como refundador de todo um modo de escrever e produzir banda desenhada no seio das indústrias do mainstream britânico e norte-americano desde os anos 1980, sempre teve um dedo a apontar ou uma palavra a dizer sobre os mais variados temas, nunca se deixando seduzir pelas possibilidades que a fama ou o sucesso financeiro pudessem acarretar. Para além do conhecido fato branco, a outra característica de Alan Moore face ao seu sucesso foi a contínua desiludida abnegação dos que lhe que queriam oferecer mais e mais, mas por um preço que sempre se recusou a pagar. Seria essa característica que o colocaria em rota de colisão com a casa que o albergou durante anos (a DC Comics), que o faria afastar-se de todas as adaptações conematográficas dos seus trabalhos (e com razão), negar mesmo receber as royalties a que teria direito (passando-as para os seus colaboradores), e o faria entregar-se a projectos sempre paralelos, não tanto do mainstream mas sem entrarem no mundo verdadeiramente underground: algo como um “midstream”. Quase todos os títulos da ABC vogam nesse contínuo território negociado entre a cultura popular (inclusive a literatura, claro) e a sua reinvenção místico-intelectual (através da sua noção de Ideaspace), e outros trabalhos, como o projecto anti-homofóbico The Mirror of Love ou o pró-pornográfico The Lost Girls, procuravam expandir novos modos de reinventar as liberdades da percepção, e a expansão da sua criação. (Mais)
Como dizíamos, Moore é mais conhecido pelos seus trabalhos de banda desenhada, mas é também autor de prosa (A Voz do Fogo, publicado entre nós pela Saída de Emergência, numa tradução de David Soares), de investigação política (com o projecto Brought to Light), de performances de psicogeografia, e até mesmo cantor. Além disso, sempre que pôde, deixou bem clara a sua opinião ou perspectivas, em pequenos textos, sobre política, cultura, música, fanzines, etc.
Num momento em que alguns dos seus companheiros da primeira Brit Wave dos anos 80 se assolapam nos louros (merecidos, nalguns casos, sem dúvida), e chegam mesmo a ganhar posições de poder decisório na indústria que ajudaram a montar, mas acabando por amolecer a revolução que haviam prometido, Moore afasta-se desse foco e tenta reinventar-se sistematicamente. Depois da fase mágica, parece que Moore deseja experimentar o papel de instigador de novas sinergias, canalizando toda uma série de colaboradores, jovens e velhos, conhecidos e desconhecidos, na fabricação de um verdadeiro fanzine. Dodgem Logic tem o aspecto e os valores de produção de uma revista, de um magazine, mas o seu interior brada pelo tipo de liberdade – e mesmo pela ausência de uma conduta organizada – típica dos fanzines. Como o próprio Moore reza no minúsculo editorial, desprovido de quaisquer intenções de manifesto, apesar de ser uma revista feita no seio de Northampton, ela “não é nem local bem global: somos lobais”. Uma vez escreveu o seguinte sobre os fanzines em geral: “eles são tão inspirados quanto estúpidos quanto divertidos quanto difíceis de ler e tão fantasticamente acertados como os livros que os inspiraram [ele fala sobretudo de zines baseados em outras publicações]. Aquilo que têm em comum, porém, é que são o produto de uma carga imensa de amor e entusiasmo. A única forma de ver realizado um fanzine é através da força de uma chusma de indivíduos raivosos e clinicamente doidos agrilhoados a uma gigantesca copiadora Gestetner toda a noite, e fazendo-o sem o incentivo de um belo e chorudo cheque na meta dos seus esforços./Há uma espécie de devoção altruísta deste meio à qual eu gostaria muito de poder alguma vez aspirar”. O autor escreveu isto em 1983, uma altura em que estava a começar a dar os primeiros passos na Marvel/UK, ao que se seguiria a DC nos Estados Unidos, com Swamp Thing, e depois todos os títulos que lhe trariam a enorme fama que lhe foi dada (e que lhe permite assinar como “’80s icon” no editorial). Aos poucos entregar-se-ia cada vez mais à máquina que não lhe permitiria esse altruismo, essa loucura clínica, esse amor e entusiasmo. Foi preciso subir e ultrapassar várias etapas, até poder voltar e finalmente realizar essa aspiração.
Dodgem Logic conta com os seguintes materiais: a abrir, um excelente e longo artigo de Moore sobre a imprensa underground, abarcando desde panfletos tardo-medievais às criações de William Blake, passando pelo The Yellow Book dos Decadentes e o The Equinox de Crowley, pelas Tijuana Bibles a revistas como The Village Voice e The Rolling Stone nos seus primeiros passos verdadeiramente independentes, passando pelos comix dos anos 60 e o movimento punk... Não só se trata de um breve mas compreensivo compêndio, como uma forma de repensar o que significa literalmente a ideia do subterrâneo nas publicações. Ainda encontraremos um guia para “jardinagem urbana de guerrilha”, receitas, dicas de fazer a nossa própria roupa, um longo artigo sobre música de Northampton (que contextualiza o CD oferecido pela revista, com música desde rock de 1957 ao hip-hop contemporâneo daquela cidade, e ainda uma canção escrita e cantada pelo próprio Moore – nada de novo para quem conhece a vertente de performance dele), um hilariante texto de Steve Aylett sobre o que aconteceria “se [Neil] Armstrong fosse interessante” (e me recorda uma faixa, também hilariante, dos The Evolution Control Committee), artigos sobre Northampton (que podem ser destacados e substituídos pelas notícias de outros locais onde a revista seja vendida), e outros sobre médicos, feminismo (por Melinda Gebbie), o estado da música, gastos de energia, o Twitter e a formação da cultura, e bandas desenhas ou cartoons de uma página (inclusive um desenhado pelo próprio Moore, num estilo reminiscente do “bigfoot” de Crumb).
O arranjo da revista não prima pela beleza, o savoir faire sofisticado do design, mas é antes uma panóplia de tudo o que se consegue fazer com o Photoshop e o QuarkXpPress, com fundos utilizando padrões, páginas de textura vária, sobreposições, toda a espécie de composições, escalas cromáticas, tipos de letra, etc., mas que servem precisamente para sublinhar essa loucura de liberdade que pouco se preocupará com princípios de satisfação dos gostos instituídos. O gosto em si é duvidoso, mas não é esse mesmo o objectivo deste tipo de publicações?
Não sendo propriamente algo que tenha matéria para o interesse de todos, e muito menos os fãs de Alan Moore enquanto escritor de super-heróis, não deixa esta publicação de estar na continuidade do programa, digamos, pedagógico, do autor, em expandir o campo de associações, ligar as consciências das pessoas àquilo que ele concebe como Ideaspace, como se afirmou anteriormente, e formas de projectar conceitos de um modo imediato (como sucede em Promethea e em Lost Girls).
Como diz o subtítulo da revista: “colidindo ideias para ver o que acontece”.
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