31 de março de 2010
The Upside Down World of Gustave Verbeek (Sunday Press)
As mais das vezes, quando se fala da banda desenhada norte-americana das primeiras décadas do século XX (que ocupa um lugar de destaque em detrimento de outras produções, mesmo que se as conheçam) apontam-se como exemplos maiores, senão insuperáveis, Little Nemo in Slumberland (1905-1927, com interrupções) de Winsor McCay e Krazy Kat (1913-1944) de George Herriman. Seria necessário explicitar as diferenças estruturais, contextuais, estéticas e de história da publicação e recepção para percebermos os contornos da apoteose dessa dupla, merecida, mas o que mais importa é esse sucesso ser feito em detrimento de outros objectos que mereceriam idêntica apreciação, mesmo que jamais viesse a ser tão vincada. Desses outros objectos, alguns foram alvo de uma antologia marcante, já discutida aqui, Art Out of Time.
O trabalho de Gustave Verbeek inscrever-se-ia nesse território negociável que estaria entre Art Out of Time e Masters of American Comics, isto é, uma obra maior que viria a conhecer uma relativa obscuridade (em parte, talvez, por ofuscação das outras séries indicadas) mas cujas características a colocariam eventualmente no mesmo prato dessa vida visível. Está acompanhado, portanto, por nomes como os de Feininger, Sullivant, Sterrett, e outros. Mas haverá razões para essa invisibilidade, como veremos... Seja como for, a série mais famosa de Verbeek, The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo, foi conhecendo um repetido, se bem que tímido, percurso de edições, presenças em antologias e surgindo como referência em muitos textos. No que diz respeito às antologias, conhecemos pelo menos uma brasileira dos anos 70 (da série Almanaque do Gibi Nostalgia, se a memória não nos falha) e a francesa da Horay, mas a presente não só é a primeira que reune a totalidade dos Upside Downs, como a publica no formato, tamanho e estrutura originais e numa glória visual sem precedentes (nem mesmo, imagino, a do jornal, dado o tipo de impressão e papel). O aparecimento de uma editora como a Sunday Press e todo o movimento contemporâneo da recuperação da memória da banda desenhada tornou este novo gesto num corolário desse movimento, e que esgotará, pelo menos nas próximas décadas (supomos, imaginamos), a necessidade de “pesquisar” a obra de Verbeek: não será preciso, ela está aqui, neste livro.
Dos conhecidos elementos que tornam esta uma banda desenhada histórica ressalvem-se os seguintes: Verbeek faz parte do número de autores que pertencem àqueles que estiveram envolvidos na “guerra dos jornais” entre o New York World (de Joseph Pulitzer) e o New York Herald (de William Randolph Hearst), logo ao número de autores que batalhavam em nome da popularidade e do aumento das vendas dos jornais através de todas as possíveis estratégias – sendo uma delas a da excelência gráfica -, e portanto trabalhando num suporte de divulgação de enorme popularidade, de facto, chegando a um variadíssimo público na época e com direito a um espaço “nobre” que não se repetiria tão cedo. Essas condições de produção também ditariam que o tipo de trabalho desenvolvido por Verbeek tinha de ter um peso mais ou menos universal de humor, não se procurando trabalhos adultos, mas sim de um sinal humorístico (não sarcástico), apelativo também a públicos muito jovens, etc. A inventabilidade da performance (oubapiana avant la letttre?) das pranchas da série The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo não é de somenos [para quem nunca ouviu falar dela, tratam-se de pranchas de 6 vinhetas, todas elas reversíveis; quando se vira a página ao contrário, temos 6 novas vinhetas, numa história com as mesmas personagens, e com nexos lógicos], e deve ser vista como a grande obra, brilhante, do autor, largamente diferente das restantes. Mas essoutro trabalho também está parcialmente presente no livro. Em primeiro lugar, as outras séries, Loony Lyrics of Lulu e The Terrors of the Tiny Tads, que também se revestem da sua importância, ainda que se diluam na tradição ora do nonsense de Lear e Carroll ora nas bandas desenhadas oníricas de McCay e seguidores (v. abaixo). Mais, também as ilustrações que fazia para várias publicações, como a Judge ou a Puck, ou para livros (um deles intitula-se Nigger Baby and Nine Beasts, e, calma, é sobre animais… mas que título!) se encontram exemplificadas no volume, e elas também participaram num qualquer domínio de capricho e de fantástico. Mas são esses os contributos que o fazem, a Verbeek, entrar nos anais dos grandes autores da banda desenhada dos jornais norte-americanos do princípio do século XX. O factor de não ser uma tira/história de continuidade (como, de resto, quase toda a banda desenhada deste tipo da sua era) permitia a que não sofresse com esse peso postergado e pudesse explorar várias linhas de força internas a cada episódio/aventura, integrando-se na fantasia total que isso permitia (a “totalidade” diz respeito ao facto precisamente de não estar essa fantasia subsumida a um qualquer princípio de narrativa longa, de obrigatoriedade de continuidade, etc.), igualmente típica da época (de novo, McCay e seus imitadores). O cerne está, de facto, porém, na trouvaille magnífica de ter apenas duas personagens principais que são, literal e graficamente, reversíveis, é um dos pontos altos da série.
Como se disse, este volume conta ainda com outros trabalhos, nomeadamente a tira de maior duração de Verbeek, The Terrors of the Tiny Tads, que foi publicado no mesmo jornal do Little Nemo, o The New York Herald. Muitas eram as séries “oníricas” da época (“surrealistas” não será o termo correcto), na senda de McCkay: Peter Newell com The Naps of Polly Sleepyhead, George McManus com Nibsy the Newsboy in Funny Fairyland, Mr. Twee Deedle de Johnny Gruelle, The Wiggle Much de Herbert Crowley, entre muitos outros... Este título de Verbeek pareceria inserir-se nesse grupo, mas a verdade é que tem um grau de diferença importante, já apontado anos antes por Richard Marschall (na Nemo americana, no. 10, de 1984): a de que, mais do que “sonhos”, as formas criadas nestas histórias são de “pesadelo” [daí, “terrors”], e que a relação das personagens com essas mesmas formas nem sempre têm contornos positivos, como tinham em Little Nemo. Falamos aqui das criaturas compósitas como o Cangurégua, o Elefantotel, etc.
Mas haverá algo um peso contrário, que explique a parte de ocultação a que foi alvo? ma das características que a leitura completa destas páginas traz, e que constitui algo de incómodo, é a violência perpretada contra os animais. Estes, sejam reais ou inventados, parecem somente surgir para poder sofrer às mãos das personagens de Verbeek. Há inúmeras cenas de caça (tema específico e contínuo em Lulu), mas os imperativos do desenho obriga a que Lovekins e Mufaroo se passeiem por paisagens naturais, bosques, florestas, junto à água... terrenos populados por um sem número de animais que os atacam, assustam, encurralam, sempre vindo a conhecer desfechos mortíferos, ora por graça divina ora pelas mãos dos protagonistas. O mesmo acontece com os Tiny Tads, e muitas vezes assumindo algum grau de crueldade pouco expectável nos dias que correm. Essa violência pode ocorrer também em termos sociais, como na tira em que um maltrapilho (“tramp”), que se tenta defender de um balde cheio de água deixado cair por Lovekins, venha a ser atacado ainda mais por Mufaroo... Como se esse homem, pelo facto de estar “fora” da sociedade aceitável e consensual, não merecesse o respeito dos protagonistas. Esse indigente tem o mesmo papel dos animais: carne para canhão das aventurinhas e rápidas acções das personagens.
A preocupação de Verbeek era de facto esta inventabilidade gráfica. É assombroso que o tenha feito durante tanto tempo (um total de 65 pranchas desta forma), mas percebemos que havia um limite à sua prossecução, limite esse naturalmente associado às soluções gráficas, mas também aliado ao facto de não haver qualquer tipo de desenvolvimento narrativo possível, no interior desse universo. Por exemplo, nunca é muito claro qual a relação entre Lovekins e Mufarro, que tanto pode ser a mais seráfica (pai e filha) como algo de mais sórdido (dois amantes fugindo da sociedade, escondendo-se numa viagem sem fim).
A violência a que me referi atrás é sublinhada também por um dos vários participantes dos textos neste volume, Marco Graziosi. Essa violência não é algo que possamos imputar somente a Verbeek. Não nos esqueçamos que o tipo de atitude ecológica, ou de direitos (mínimos) dos animais, que hoje aceitamos, ou assim o espero, é algo que apenas se tornaria mais divulgado (ainda que não consensual) nos tempos nossos contemporâneos. Presumo que muitos dos leitores se recordarão da hecatombe a que Tintim se entrega no Congo...
Esta é uma série, ou melhor uma obra, de banda desenhada absolutamente maior em termos artísticos. E merece, sem dúvida, estar naquela constelação mínima de McCay e Herriman, e à qual acrescentaria Lyonel Feininger, Cliff Sterrett e outros dos nomes já citados. Mas ao contrário desses autores, Verbeek não procura um contínuo desdobramento e exploração no interior das relações entre as personagens. Poderíamos dizer que se trata da circunstancialidade do tempo, da rapidez com que cumpriu o seu papel neste território, o que sucedeu a Feininger igualmente. É possível. Mas também é possível que este virtuosismo técnico, esta capacidade para deslumbramento gráfico, ao não se aliar a uma criação do seu “interior”, ao facto de não procurar uma ressonância mais humana (que, de modos diversos, aqueles três artistas conseguiram, McCay no mundo infantil, Herriman numa poesia muito própria, Feininger num universo de maravilha panteísta), tenha ditado, desde logo, a sua própria limitação e delimitação. Nesse sentido, este volume é um espaço circunscrito, a revisitar as vezes necessárias, mas no limite, circunscrito.
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