Por vezes, perguntamo-nos se não incorreremos numa espécie de discurso maravilhado com determinados autores, predilectos, que espelha o tipo de admiração acrítica suscitado pelos resquícios das leituras da infância e adolescência que tantas vezes pautam os escritos em torno da banda desenhada e que se verificam quando se tecem frente a Hergé, a Pratt, a Moore e Gaiman, ou algo pior (sim, estou a desenhar uma hierarquia nos mestres convencionais), ao eleger Baudoin, Sfar, David B., e uns quantos outros como as nossas próprias “vacas sagradas”. Esperamos que não, como é evidente. Isto é, não negamos procurar um esforço por acompanhar o trabalho de determinados artistas de um modo mais atento e completo do que outros, mas não nos procuramos reger nem pelo completismo nem pela admiração e fascínio mudos.
Não obstante, sentimos que Joann Sfar, acima de muitos autores da sua geração e do seu nicho particular (autores que nascem no seio da edição independente mas conquistam um espaço noutros circuitos de maior visibilidade e exposição comercial, com os companheiros óbvios Lewis Trondheim, David B., Emmanuel Guibert) se tem destacado cada vez mais como uma referência incontornável num certo fazer e até estar da banda desenhada contemporânea francófona, sobretudo aquela que melhor herdou a grande tradição iniciada pela tríade Saint-Ogan-Hergé-Jacobs. Digamos, uma ideia central(izada) do que constitui a banda desenhada (na Europa).
Apesar de algumas das séries e ciclos de Sfar estarem suspensas, ou sobre as quais não há notícias há longo tempo (pensamos sobretudo em Les Olives Noires e os clássicos ilustrados de La Petite Bibliothèque Philosophique), a “graforreia” de Sfar leva-o a multiplicar-se continuamente em novos projectos, histórias, desdobramentos, inflexões, apuramentos, e até mesmo novas vidas, como a de cineasta, há pouco ganhando novos contornos com a média-metragem sobre Gainsbourg (e do qual existem metástases gráficas, dois livros, pelo menos, mas que julgamos não daremos conta em tempo útil, pelo proibitivos que são). L’Ancien Temps parece ser mais um desses projectos, e um daqueles em que Sfar se melhor associa à tradição indicada atrás.
Há um momento em que a protagonista deste livro, uma rapariga habitante da floresta, de poderes de metamorfose, e dada à volubilidade da magia, Nadège, emprega a palavra “aventuras”, mostrando o seu desejo em vivê-las, ao que o avô-lobo lhe pergunta se se refere às aventuras como dos “cavaleiros”, e a moça, respondendo que não, diz que são antes como as dos “amantes”, utilizando essa palavra no “seu sentido mais pejorativo”. A palavra “aventura” é apanágio, de pedra e cal, de todo um rol de ficção juvenil que vai desde o Telémaco de Fénelon a todo o historial da banda desenhada do século XX (mormente a dita “franco-belga”). É quase apodo obrigatório nas séries de banda desenhada que são publicadas em francês, nas obras de Hergé e Jacobs a Tardi, e o próprio Sfar não é alheio a essa formulação. Aliás, não é a primeira vez que Sfar faz convergir toda uma série de personagens-tipo num objectivo fictivo para se (re)pensar esse mesmo objecto, sobretudo se tivermos em conta os ciclos do Golem, do Grand Vampire, do Professeur Bell e, claro está, todo o Donjon. Pois é dessa forma que devemos entender este, senão todos os trabalhos de Sfar. Uma máquina pensante.
E essa é uma das maneiras de entender duas coisas, uma apontando para o passado e outra para um dos futuros da banda desenhada. O que aponta para o passado é a inscrição na tradição, o conhecimento da memória interna, dos mecanismos, princípios e elementos mais associados à tal ideia central da banda desenhada (coincidente com a sua percepção social mais alargada). É como se Sfar, diferentemente de outras experiências (os autores associados à Frémok, por exemplo, os que elaboram abordagens abstractas, ou aqueles que vemos “dividir para conquistar”), procurasse uma linguagem não tanto de rupturas e experimentação, mas de processos de continuidade. Aquilo que aponta para um futuro (é importante sublinhar a não-unicidade desse eventual movimento) é o facto de Sfar utilizar esses mesmos mecanismos da banda desenhada “clássica” para fazer transportar ideias novas, abordagens holísticas de significados, buscas mais amplas de sentido criativo. L’Ancien Temps é isso mesmo.
Disfarçado de “high fantasy”, acompanhando um grupo mais ou menos coeso de personagens (a rapariga-raposa, o avô-lobo feiticeiro, o jovem aprendiz, a rainha do “arminho” e do “licorne”, e esses mesmos animais, a espada-cobra, e elfos, espíritos arbóreios, gigantes, etc.) o livro procura explorar questões que têm a ver com o abandono de religiões afectas à localidade, à especificidade dos povos na sua relação com a terra em que se encontram e a entrada numa nova forma de religiosidade, a saber, aquelas direccionadas por um poder central e por uma ideia de centralidade. Representando, obviamente, o Catolicismo, aqui representado pelos Papas e a Igreja, e o misterioso “deus do olho único”, que, escreve o lobo, “é uma invenção política”. Historicamente é correcto. Mas em vez de transformar essa matéria histórica numa espécie de romance que se leve a si mesmo demasiadamente sério, como muitas séries “históricas” ou “fantasiosas” de banda desenhada ocupando um nicho temático idêntico, Sfar prefere estabelecer a forma de pensamento dessas mesmas ideias através de um veículo aparentemente ingénuo ou mesmo inócuo. Não o é.
Notar-se-á uma diferença entre aqueles trabalhos escritos por Sfar mas desenhados pelos seus amigos e colaboradores e aqueles que ele próprio constrói na íntegra. Bastará folhear rapidamente Les Olives Noires, A Filha do Professor, a série Socrate le Demi-chien, para verificarmos que a composição das pranchas é preterida em nome de uma grelha fechada, regular, na qual o ritmo dos acontecimentos é ditada de uma forma relativamente linear, e que depois é preenchida pela mão dos artistas envolvidos, ao passo que aqueles que Sfar desenha são escritos no próprio acto de desenhar. Claro está, esta afirmação carece de um estudo exaustivo da obra de Sfar e de qualificações entre esses dois grupos que aqui se estabelecem de forma um pouco dura (Le Chat du Rabbin também segue a grelha, Les Potamoks não); deve ser entendido apenas como uma forma de entender, cada vez melhor, o acto de desenho caligráfico, de escrita imagética, de graforreia holística, de Sfar. A que L’Ancien Temps se vem juntar como forma de pensar pela banda desenhada.
Não vejo problema nenhum em venerar o Deus Sfar :D
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