Estamos em crer que a maioria dos leitores de Spiegelman o conhecem somente pela sua obra, literalmente monumental, Maus. Mesmo aqueles que o terão seguido depois dessa obra não terão auscultado o seu passado, e talvez alguns ficassem surpreendidos em descobrir um autor que durante vários anos experimentou linguagens de inventabilidade formal e gráfica que pouco teriam a ver com a aparente calma do seu livro mais famoso (excluindo a apropriação de estratégias das fábulas para criar um estranho universo referencial e metafórico).
O “berço” de Spiegelman, no quer diz respeito à banda desenhada, é o movimento menos organizado por programas do que por uma vibração comum conhecido como “underground comix”, nascido e associado sobretudo à cidade de São Francisco, entre a segunda metade da década de 1960 e a primeira de 1970, agregando nomes importantes como os de Franck Stack, Gilbert Shelton, Spain Rodriguez, e outros, destacando-se acima de todos os de Robert Crumb, por razõs sobejamente conhecidas. Esse movimento estava mais preocupado em quebrar as barreiras que entretanto tinham sido impostas pelo Comics Code e por toda uma pruriente moral vigente nos Estados Unidos do que procurar construir uma mais coerente expressividade. Esta só viria a surgir pontualmente. Pelo meio das centenas de páginas dedicadas a todo o tipo de deboche não apenas sexual, mas de violência extrema, narcisismo, indulgência nas drogas, ataques directos a personalidades e instituições, com ou sem humor e inteligência, lá se separariam alguns exemplos de obras bem acabadas. E há sobretudo duas linhas de fuga mais fortes instituídas nesse movimento. Por um lado, a banda desenhada autobiográfica propriamente dita, com as obras de Justin Green, Harvey Pekar, Aline Kominsky, Lynda Barry, Robert Crumb, por outro, a experimentação gráfica e formal, sobretudo informada pela cultura visual do psicadelismo, com Victor Moscoso, Rick Griffin e algumas experiências de Crumb. Spiegelman, instado por alguns dos seus amigos e colegas desse movimento, experimentaria ora um ora outro desses territórios, fazendo-os cruzar-se de formas mais ou menos brandas até a In the Shadow of No Towers, em que encontra um equilíbrio entre essas duas forças.


Algumas das ideias de Spiegelman em relação à banda desenhada são por vezes, a nosso ver, exageradas, sobretudo quando o autor as contrapõe a outras linguagens artísticas. Apesar de ser um cultor de formas inteligentes de expandir a própria banda desenhada, os seus movimentos largos de reapropriação de outros textos artísticos, estratégias visuais, ou formas de levantar a banda desenhada como meio “natural” de comunicação e compreensão do mundo revelam um entusiasmo que, apesar de positivo, pode levar a mal-entendidos e a que haja alguns leitores que o sigam sem se perguntarem se é correcta essa visão (isto é, sem a contraporem a outros exemplos dos vários mundos artísticos, sem ponderarem os aspectos hitóricos e sociais das artes, etc.). Não pode haver dúvida de que a banda desenhada pode ser um veículo de inventabilidade gráfica e artística, ou de transporte de tocantes ficções ou não-ficções, ou plataforma de pensar, ou, melhor ainda, de tudo isso ao mesmo tempo e mais além; mas isso só pode suceder com os exemplos concretos de obras que o façam, como Maus (e outras). Não pode isso nascer apenas da vontade de um autor (Spiegelman, por exemplo), e da sua criação de manifestos, de que Breakdowns ganha por vezes os contornos.
Este é um livro forçoso no estudo da banda desenhada enquanto meio artístico, enquanto linguagem e meio de expressão. É, a um só tempo, uma plataforma de pequenas obras maiores e uma alavanca para pensar outros futuros trabalhos. É também uma porta para compreender cada vez melhor a perspectiva particular de Spiegelman e até mesmo de como a banda desenhada pode ser um veículo privilegiado na expressão da memória. E, até mesmo, enfim, como um manifesto da vontade do autor. Mas quanto a este último ponto, é preciso negociar a sua pertinência.
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