31 de março de 2010

Breakdowns: Portrait of the Artist as a Young %@&*!. Art Spiegelman (Pantheon)




Estamos em crer que a maioria dos leitores de Spiegelman o conhecem somente pela sua obra, literalmente monumental, Maus. Mesmo aqueles que o terão seguido depois dessa obra não terão auscultado o seu passado, e talvez alguns ficassem surpreendidos em descobrir um autor que durante vários anos experimentou linguagens de inventabilidade formal e gráfica que pouco teriam a ver com a aparente calma do seu livro mais famoso (excluindo a apropriação de estratégias das fábulas para criar um estranho universo referencial e metafórico).
O “berço” de Spiegelman, no quer diz respeito à banda desenhada, é o movimento menos organizado por programas do que por uma vibração comum conhecido como “underground comix”, nascido e associado sobretudo à cidade de São Francisco, entre a segunda metade da década de 1960 e a primeira de 1970, agregando nomes importantes como os de Franck Stack, Gilbert Shelton, Spain Rodriguez, e outros, destacando-se acima de todos os de Robert Crumb, por razõs sobejamente conhecidas. Esse movimento estava mais preocupado em quebrar as barreiras que entretanto tinham sido impostas pelo Comics Code e por toda uma pruriente moral vigente nos Estados Unidos do que procurar construir uma mais coerente expressividade. Esta só viria a surgir pontualmente. Pelo meio das centenas de páginas dedicadas a todo o tipo de deboche não apenas sexual, mas de violência extrema, narcisismo, indulgência nas drogas, ataques directos a personalidades e instituições, com ou sem humor e inteligência, lá se separariam alguns exemplos de obras bem acabadas. E há sobretudo duas linhas de fuga mais fortes instituídas nesse movimento. Por um lado, a banda desenhada autobiográfica propriamente dita, com as obras de Justin Green, Harvey Pekar, Aline Kominsky, Lynda Barry, Robert Crumb, por outro, a experimentação gráfica e formal, sobretudo informada pela cultura visual do psicadelismo, com Victor Moscoso, Rick Griffin e algumas experiências de Crumb. Spiegelman, instado por alguns dos seus amigos e colegas desse movimento, experimentaria ora um ora outro desses territórios, fazendo-os cruzar-se de formas mais ou menos brandas até a In the Shadow of No Towers, em que encontra um equilíbrio entre essas duas forças.
Este livro é, em parte, a reedição fac-similada publicada em 1972, intitulada Breakdowns: From Maus to Now, an Anthology of Strips, mas com dois anexos. Em primeiro lugar, uma nova banda desenhada de 19 páginas que refaz, de um modo sucinto, o percurso de vida e de relacionamento com o mundo da banda desenhada de Spiegelman, fazendo aquele tipo de abordagem integrada presente em Shadow of No Towers. Em segundo, um posfácio que apresenta algumas das suas ideias e reminiscências em texto, inclusive uma das peças que nunca conheceu edição, Some Boxes for the Salvation Army, que aponta para uma direcção hoje experimentada por alguns autores da vanguarda da banda desenhada. Logo, não se pode dizer que é apenas uma reapresentação de Breakdowns, mas ao mesmo tempo não é uma antologia aumentada.
Seja como for que a interpretemos, é uma ocasião para poder revisitar toda uma série de trabalhos relativamente famosos do autor, sobretudo de um cariz experimental em termos gráficos, como a curta página de I don’t get around much anymore, que pensa a possível ideia de termos ma banda desenhada em que não há progressão temporal, ou Ace Hole, Midget Detective, em que se exploram, de forma activa, algumas das especificidades formais da banda desenhada enquanto linguagem estrutural, artística, material, etc. está também aqui presente a história Prisoner on the Hell Planet e uma primeira versão de Maus (de apenas 3 páginas), ambas num estilo mais contido mas que responde a interesses da época do artista (o expressionismo alemão, as histórias em gravuras de Masereel) e que procuram uma introspecção quer pessoal quer da vida da família mais profunda, e que iria desembocar nos dois volumes de Maus.
Algumas das ideias de Spiegelman em relação à banda desenhada são por vezes, a nosso ver, exageradas, sobretudo quando o autor as contrapõe a outras linguagens artísticas. Apesar de ser um cultor de formas inteligentes de expandir a própria banda desenhada, os seus movimentos largos de reapropriação de outros textos artísticos, estratégias visuais, ou formas de levantar a banda desenhada como meio “natural” de comunicação e compreensão do mundo revelam um entusiasmo que, apesar de positivo, pode levar a mal-entendidos e a que haja alguns leitores que o sigam sem se perguntarem se é correcta essa visão (isto é, sem a contraporem a outros exemplos dos vários mundos artísticos, sem ponderarem os aspectos hitóricos e sociais das artes, etc.). Não pode haver dúvida de que a banda desenhada pode ser um veículo de inventabilidade gráfica e artística, ou de transporte de tocantes ficções ou não-ficções, ou plataforma de pensar, ou, melhor ainda, de tudo isso ao mesmo tempo e mais além; mas isso só pode suceder com os exemplos concretos de obras que o façam, como Maus (e outras). Não pode isso nascer apenas da vontade de um autor (Spiegelman, por exemplo), e da sua criação de manifestos, de que Breakdowns ganha por vezes os contornos.
Este é um livro forçoso no estudo da banda desenhada enquanto meio artístico, enquanto linguagem e meio de expressão. É, a um só tempo, uma plataforma de pequenas obras maiores e uma alavanca para pensar outros futuros trabalhos. É também uma porta para compreender cada vez melhor a perspectiva particular de Spiegelman e até mesmo de como a banda desenhada pode ser um veículo privilegiado na expressão da memória. E, até mesmo, enfim, como um manifesto da vontade do autor. Mas quanto a este último ponto, é preciso negociar a sua pertinência.

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