Um título é um dos aspectos paratextuais mais importantes no estabelecimento do horizonte de expectativas que nos lança à leitura de um livro. Journal d’Italie parece-nos prometer a restituição das impressões quotidianas do autor num país que não o seu (aqui recorremos a informações exteriores, até biografistas, mas sobejamente conhecidas e que em nada invadem a intimidade do autor, a qual, de resto, ele próprio expõe, falando da sua família, a sua nova namorada, etc.). Ora, enquanto “diário de viagem” propriamente dito, esperar-se-ia um retrato do local visitado, uma confluência das expectativas e da percepção circunstancial, um confronto entre duas personalidades: a do viajante e a do viajado. O olhar que vem de fora e o objecto observado. Todavia, não há aqui qualquer evasionismo, guia-turistismo, cabinet de curiosités, nem sequer uma moldagem etonográfica (“os italianos são assim”).David B. conta a sua passagem pelas cidades italianas, em curtas estadas, acompanhado pela namorada italiana, Ilaria, as pequenas descobertas das ruas e lojas e pequenas histórias que, como reza na badana, vai desdobrando e fomentando e ampliando. Aliás, a mudança de “poiso” pela parte de David B., se teve um papel de formação e maturidade em L’Ascension du Haut Mal, aqui não é sequer explorado. Se se move, é para criar imagens e narrativas. Confessa a fuga às rotas mais turísticas, demonstra as pequenas adaptações à família da namorada (sobretudo à avó dela, que o narrador compara com um irrequieto, azafamado gnomo de contos tradicionais), revela leituras tidas durante esse período, para desencadear movimentos internos. As suas deambulações servem um outro propósito: o de abrirem caminhos de ficções.
Uma importante dimensão da obra de David B.é o seu recorrente trabalho sobre uma memória à qual podemos chamar bifronte. Uma memória não olha somente para o passado, pode-se abrir como perspectiva proléptica, lançar os primeiros passos em direcções futuras, sejam estas efectivamente perseguidas ou não. A primeira, que olha o passado, opera no interior da obra de David B.: temos neste Journal, como em títulos anteriores, diários de sonhos tidos, revisitações a uma determinada linha da literatura (citam-se, mais uma vez, os romances de Harry Dickson), exploram-se os mundos da tradição judaica e as suas lendas, procuram-se associações com a cultura popular, constroem-se imagens em torno da realidade que a entrosam com um reino fantasioso, metamórfico, fluido. Essas matérias têm a ver com o local, mas sempre de um modo mais amplo que o mero e descritivo guia: os filmes de Fracesco Rosi, sobretudo sobre a figura do mafioso Lucky Luciano, e sua a comparação ao ciclo O Padrinho de Coppola; um encontro com um investigador académico do conceito cultural do sonho; uma exploração das divisões territoriais entre cães e gatos, e a ocupação destes de prédios na cidade de Trieste, seguido de uma visita ao território subterrâneo dos medos (passando pelos reinos dos gatos, dos ratos, das baratas, dos insectos sem nome e finalmente das “coisas” sem nome nem corpo[na imagem, a concatenação metonímica de todos esses "círculos"]); uma súmula da história do messias judaico de Veneza Daoud Ravid e a sua nova torre de Babel [v. última imagem]; livros citados, livros inventados, livros que nunca existiram, trocas de sonhos, e um último relato sobre uma reportagem lida no La Repubblica. Todas elas, as matérias, servem-lhe de pasto à associação com temáticas ou matérias empregues noutros livros, como vemos. David B. faz também uma construção da sua própria torre, coesa mesmo que aparentemente se disperse por trabalhos ora autobiográficos ora de pura ficção (muitas vezes tintada por elementos de género). O último relato, por exemplo, que reconta a história de uma jovem que depois de atacada perde a memória, ficando com impressões misturadas da sua vida anterior, dos seus atacantes, de uma raposa que a guardara e do velho que a salva, é utilizado por David B. da forma magistral que se lhe reconhece para a criação de verdadeiras metáforas visuais... [v. próxima imagem] trazendo ao mesmo plano de representação, à mesma cidadania da imagem, a realidade concreta, as impressões, as projecções, memórias, medos, sonhos. Tudo o que faz parte da experiência humana é tratado pelo autor ao mesmo nível do agencement da matéria de expressão da banda desenhada: o intricado novelo entre imagem, texto e sequência. Este é um protectorado do autor (se bem que outros o exerçam de modos similares, como Fabrice Neaud ou Squarzoni).
A origem da banda desenhada moderna tem, no fundo, uma relação íntrinseca com a literatura de viagens (e o dramatismo que lhe está inerente, o confronto entre duas personalidades ou esquemas mentais, o mesmo e o outro, o si e o estranho), se bem que este território a tenha desdobrado pela via da mais simplificada paródia ou concentração nos pequenos e ridículos acidentes do viajante no seu percurso. É aí que encontraremos as “aventuras” das personagens de Töpffer, e depois as viagens de von Dardel, Doré, Doyle e Bordalo, todas elas contribuindo, à vez e do seu modo, para um aumento cada vez maior da natureza cinética da banda desenhada, que iria desembocar no império das histórias empolgantes de protagonistas heróicos do século XX (o novo livro de Thierry Smolderen, de que falaremos mais tarde, explora algumas destas questões). David B. (mas outros autores também) parece querer inverter essa equação: a viagem serve para um movimento, mas interior. A viagem como modo de auto-conhecimento. No caso de David B. poder-se-á acrescentar auto-criação. As ficções que tece em seu torno são camadas dele mesmo. De modo bem diverso do de Baudoin, também David B. vai contribuindo para o seu “poema contínuo”...
A junção destas pequenas histórias encaixadas no livro presente parece firmar aquela ideia de Walter Benjamin sobre o coleccionador, o qual opera em sinal contrário ao do consumidor, uma vez que liberta os objectos coleccionados da sua utilidade ou valor capital, estabelecendo entre eles uma relação à qual Benjamin chama de “círculo mágico”, fundando-se assim uma “forma de memória prática” (Passagenwerk). David B. não usa estas histórias para organizar uma série ou conjunto centrípeto de significados temáticos, mas como objectos de memória pessoal, criativa. São, agora, as suas histórias. A última, a da rapariga violentada, é um exemplo máximo disso. Um eventual estudo da “matéria original” (a reportagem do jornal italiano) e a sua “versão” desencadearia seguramente as linhas de força dessa apropriação e estruturação.
Ainda que este seja um primeiro volume, pelo que se depreende, de novo, pelo título e capa, estamos em crer que também não haverá qualquer tratamento do “regresso” do viajante, levando ao fechamento da viagem. Uma vez que a viagem é interna, criativa, esse retorno não é necessário, ou melhor, ele está já presente nas chamadas intertextuais – quer aquelas aos livros (e filmes) alheios e citados quer aquelas referentes à sua própria obra. Partir é já regressar.
Uma importante dimensão da obra de David B.é o seu recorrente trabalho sobre uma memória à qual podemos chamar bifronte. Uma memória não olha somente para o passado, pode-se abrir como perspectiva proléptica, lançar os primeiros passos em direcções futuras, sejam estas efectivamente perseguidas ou não. A primeira, que olha o passado, opera no interior da obra de David B.: temos neste Journal, como em títulos anteriores, diários de sonhos tidos, revisitações a uma determinada linha da literatura (citam-se, mais uma vez, os romances de Harry Dickson), exploram-se os mundos da tradição judaica e as suas lendas, procuram-se associações com a cultura popular, constroem-se imagens em torno da realidade que a entrosam com um reino fantasioso, metamórfico, fluido. Essas matérias têm a ver com o local, mas sempre de um modo mais amplo que o mero e descritivo guia: os filmes de Fracesco Rosi, sobretudo sobre a figura do mafioso Lucky Luciano, e sua a comparação ao ciclo O Padrinho de Coppola; um encontro com um investigador académico do conceito cultural do sonho; uma exploração das divisões territoriais entre cães e gatos, e a ocupação destes de prédios na cidade de Trieste, seguido de uma visita ao território subterrâneo dos medos (passando pelos reinos dos gatos, dos ratos, das baratas, dos insectos sem nome e finalmente das “coisas” sem nome nem corpo[na imagem, a concatenação metonímica de todos esses "círculos"]); uma súmula da história do messias judaico de Veneza Daoud Ravid e a sua nova torre de Babel [v. última imagem]; livros citados, livros inventados, livros que nunca existiram, trocas de sonhos, e um último relato sobre uma reportagem lida no La Repubblica. Todas elas, as matérias, servem-lhe de pasto à associação com temáticas ou matérias empregues noutros livros, como vemos. David B. faz também uma construção da sua própria torre, coesa mesmo que aparentemente se disperse por trabalhos ora autobiográficos ora de pura ficção (muitas vezes tintada por elementos de género). O último relato, por exemplo, que reconta a história de uma jovem que depois de atacada perde a memória, ficando com impressões misturadas da sua vida anterior, dos seus atacantes, de uma raposa que a guardara e do velho que a salva, é utilizado por David B. da forma magistral que se lhe reconhece para a criação de verdadeiras metáforas visuais... [v. próxima imagem] trazendo ao mesmo plano de representação, à mesma cidadania da imagem, a realidade concreta, as impressões, as projecções, memórias, medos, sonhos. Tudo o que faz parte da experiência humana é tratado pelo autor ao mesmo nível do agencement da matéria de expressão da banda desenhada: o intricado novelo entre imagem, texto e sequência. Este é um protectorado do autor (se bem que outros o exerçam de modos similares, como Fabrice Neaud ou Squarzoni).
A origem da banda desenhada moderna tem, no fundo, uma relação íntrinseca com a literatura de viagens (e o dramatismo que lhe está inerente, o confronto entre duas personalidades ou esquemas mentais, o mesmo e o outro, o si e o estranho), se bem que este território a tenha desdobrado pela via da mais simplificada paródia ou concentração nos pequenos e ridículos acidentes do viajante no seu percurso. É aí que encontraremos as “aventuras” das personagens de Töpffer, e depois as viagens de von Dardel, Doré, Doyle e Bordalo, todas elas contribuindo, à vez e do seu modo, para um aumento cada vez maior da natureza cinética da banda desenhada, que iria desembocar no império das histórias empolgantes de protagonistas heróicos do século XX (o novo livro de Thierry Smolderen, de que falaremos mais tarde, explora algumas destas questões). David B. (mas outros autores também) parece querer inverter essa equação: a viagem serve para um movimento, mas interior. A viagem como modo de auto-conhecimento. No caso de David B. poder-se-á acrescentar auto-criação. As ficções que tece em seu torno são camadas dele mesmo. De modo bem diverso do de Baudoin, também David B. vai contribuindo para o seu “poema contínuo”...
A junção destas pequenas histórias encaixadas no livro presente parece firmar aquela ideia de Walter Benjamin sobre o coleccionador, o qual opera em sinal contrário ao do consumidor, uma vez que liberta os objectos coleccionados da sua utilidade ou valor capital, estabelecendo entre eles uma relação à qual Benjamin chama de “círculo mágico”, fundando-se assim uma “forma de memória prática” (Passagenwerk). David B. não usa estas histórias para organizar uma série ou conjunto centrípeto de significados temáticos, mas como objectos de memória pessoal, criativa. São, agora, as suas histórias. A última, a da rapariga violentada, é um exemplo máximo disso. Um eventual estudo da “matéria original” (a reportagem do jornal italiano) e a sua “versão” desencadearia seguramente as linhas de força dessa apropriação e estruturação.
Ainda que este seja um primeiro volume, pelo que se depreende, de novo, pelo título e capa, estamos em crer que também não haverá qualquer tratamento do “regresso” do viajante, levando ao fechamento da viagem. Uma vez que a viagem é interna, criativa, esse retorno não é necessário, ou melhor, ele está já presente nas chamadas intertextuais – quer aquelas aos livros (e filmes) alheios e citados quer aquelas referentes à sua própria obra. Partir é já regressar.
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ResponderEliminarParabéns!
ResponderEliminarToma lá um dentabit!