28 de abril de 2010

Lisbonne: dernier tour. Jorge Zentner e Aude Samana (Les Impressions Nouvelles)

De um país pequeno e periférico como Portugal, o cidadão sente sempre um estranho frémito quando se vê citado ou retratado de um qualquer modo positivo nas ficções dos outros... E os lisboetas que sentem que a sua cidade se vê sempre adiada do papel que poderia ter tido no concerto das capitais europeias, quando a vêem visitada por outros olhos, passam a querer redescobri-la sob esse prisma. Não é tanto vê-la nos dedos de lisboetas honorários como Tabucchi ou Corbel, mas querer perceber como as ideias de vislumbre, de rápida pincelada, de um olhar que é sempre outro se tornam consistentes. De Remarque a Zimler a Mercier, de Tanner a Wenders, enquanto postal ilustrado, cenário mais ou menos vivo ou reconstrução poética, essas Lisboas todas surgem-nos para que as visitemos nós também pela primeira vez, como um fino pano que sobrepomos à cidade que conhecemos. No nosso campo de interesse não há falta de matéria. Em vez do tratamento que se nota num relativamente medíocre livro editado há pouco que tem Lisboa como espaço central, em que ela se vê reduzida a uma meia-dúzia de snapshots sem grande desenvolvimento humano, as imagens criadas pela vontade e letras de Zentner e as pinturas de Samana criam uma cidade nebulosa ainda que colorida, uma Lisboa diluída pela luz, por perspectivas pervagantes e uma quase total distância das personagens do peso da realidade, ainda que ancorada numa ideia de ambiente solar, recuperativo, apolíneo.
Tal como a famosa obra de Conan Doyle, o protagonista deste livro não ocupa o papel de narrador e nem sequer está no centro da atenção contínua da narração. Ou explicando melhor: se a pessoa sobre a qual se centram os eventos da narrativa é aquela que exerce o poder e o fascínio centralizados, a condução cabe a uma personagem que lhe é subalterna. Aqueles papéis da narração, da focalização, da estruturação da narrativa, cabem ao seu companheiro de viagem. Habitamos um mundo em que o mago Tosechi já ocupou o imaginário de um público alargadíssimo. As imagens que nos surgem desse tempo glorioso parece-nos indicar a década de 1920, mas esses saltos no passado servem apenas para contrastar o presente, possivelmente na nossa actualidade, numa Lisboa ribeirinha. O contraste é palpável pela falta de acompanhamento dos tempos pela parte de Tosechi, a lenta ultrapassagem pelos novos espectáculos, novas velocidades, novos entretenimentos. Moreno, o seu agente, companheiro, gentleman’s gentleman, é quem lança os fios que ligam a glória ao declínio, o passado na ribalta e a quase desesperada natureza das errâncias na cidade a que vieram dar, e onde ocupam um pequeno hotel de terceira, longe dos hotéis de cinco estrelas de outros tempos. São os pensamentos de Moreno e as suas acções que encaixam os momentos e as projecções dos acontecimentos. E é através das palavras de Zentner e de belos jogos linguísticos, e metáforas (por vezes, mas poucas, corroboradas pelas imagens), que nos vamos dando conta dessa lenta mas inexorável descida.
Qualquer obra de ficção, qualquer construção humana, por mais simples que seja, mesmo o que entendemos por pequena história ou anedota, passa sempre por um filtro criativo de quem a constrói. É preciso, por isso, jamais esquecer que quando se lê uma história que se está a enfrentar com um qualquer dispositivo artificial. Não há necessariamente uma superioridade estética por uma determinada obra, digamos, narrativa, ser mais complexa ou menos linear do que outras. No entanto, quano uma história se nos apresenta com uma estrutura fragmentária, não-linear, ou inconclusiva, somos colocados numa posição em que o esforço de re-construção, ou pelo menos de relacionamento, que nos é exigido é maior. É esse o caso de Lisbonne, dernier tour. A recompensa caberá a cada um dos leitores, e não é partilhável. Como a um poema, por mais decisórios que sejam os elementos intrínsecos à balização do acto interpretativo, há sempre uma margem amplíssima de manobra para o seu desvendar emocional.
As imagens de Samana, ainda que possam ser irmanadas ou colocadas numa tradição díspar que une Henri Rousseau a Franz Marc e Marc Chagall e ainda, mais próximos da nossa casa, a Loustal, recordar-nos-iam o trabalho de um Miguel Rocha anterior ao presente, mas sem a mesma força de expressão, a mesma luminosidade radiante, a mesma flutuação cromática e ambiental do artista português. A paleta de Samana é mais contida e estreita, o que não obsta em nada à exactidão da expressividade que deseja, nem ao transporte da história do mago e do seu assistente. Há uma acalmia geral que perpassa toda a narrativa que ganha esses contornos graças ao trabalho de Samana, que tanto mostra uma Lisboa de bairros estreitos, fechada, azulácea, à sombra, como outra amarelada, branca, sob a luz directa do sol unida aos reflexos da calçada e que dá a esta cidade a sua luz única. Mais, a procura por um grau de maior amplitude no que diz respeito a humores gráficos, a espectros de cor, realizações emocionais diversas não se equilibraria bem com este pequeno conto cabisbaixo sobre um derrotado da vida e a sua última e derradeira recuperação, precisamente numa cidade que lhe surge como um abrigo e território positivo, mas sem histrionismos, glórias exageradas. É um ambiente familiar, mesmo que houvese sido estranho.
Os actos de magia de Tosechi jamais são revelados. Apenas sabemos que não são meros truques de prestidigitação, ilusões de cabaré, magia de cartão, mas uma profunda e estranha experiência partilhada por um público sensível e positivamente susceptível. A sua verdadeira natureza é suspensa em toda a narrativa, como um bom exemplo de “McGuffin”. Mesmo no fecho, há como que uma revelação, mas ela é tangencial, fugitiva, não tem preocupações de esclarecimento ou fechamento. Bem pelo contrário, é nela que se encerra o livro, abrindo-se totalmente à interpretação, buscando as raízes de um espaço, o de Lisboa, como matéria que sirva de selo à vida de Tosechi.

3 comentários:

  1. lembra miguel rocha pelas cores e pelo esfumado dos contornos...

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  2. a luz do miguel rocha näo é nem um pouco portuguesa, é uma alucinacäo acho que este autor captou muito melhor a luz de portugal do que o miguel rocha, näo deixando de os achar parecidos
    o chagal na minha opiniäo näo tem nada a ver com isto;o homem é totalmente neptuniano e tem montes de peixes no céu

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  3. Olá, Teresa.
    Quando faço comparações, não tento que sejam nem completas nem exaustivas. Falo aqui de um intervalo na utilização de cores pouco naturalistas na representação dos objectos e coisas. O Rocha é mais "alucinado" como dizes, e por isso acho bem mais capaz de captar a luz de Verão que ocorre no Alentejo e em alguns dias em Lisboa, em que não se pode caminhar de olhos totalmente abertos... A norte do Mondego é outra luz... ;)
    Este livro é uma pequena pérola, sobretudo pela escrita de Zentner. As imagens de Samana são belas, ainda que a expressividade das personagens seja algo contida (não digo perra, como noutros casos), e isso tem a ver com a obra no seu total.
    Até já
    Pedro

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