Associado à exposição anual da World Press Cartoon, comissariada pelo famoso caricaturista António [Antunes], o Museu de Arte Moderna da colecção Berardo de Sintra, em associação com a Casa-Museu Leal da Câmara e a Câmara Municipal de Sintra, proporcionou uma mostra retrospectiva de vários originais do artista Tomás Júlio Leal da Câmara. Este catálogo reúne mais de duas centenas de trabalhos [exclusivamente seleccionados da colecção da Casa-Museu por António], pequenas abordagens biográficas (da autoria de Élvio Melim de Sousa e Luciano Reis) e ainda outros breves apontamentos, que o tornam desde logo um livro de referência para o estudo e apreciação de um dos “grandes” da ilustração em Portugal.
É este tipo de contributo, concentrado, válido e substancial, que nos vão aproximando de uma eventual futura e organizada História da Ilustração em Portugal. Se bem que não haja aqui uma abordagem propriamente histórica, de contextualização social, cultural, nem uma apreciação ou análise estética da obra de Leal da Câmara, mas tão-somente uma oferta do catálogo desta retrospectiva, ela funciona desde logo como mostra alargada da sua pena. Desde os seus primeiros trabalhos, relativamente toscos, ainda sem contornos autorais mas confundíveis com estratégias visuais sem peso da sua altura, passando pelas primeiras contribuições com significados políticos assumidos (devedores de tradições antiquíssimas, encontrando-se nos caricaturistas ingleses do século XVIII ou no binómio Daumier-Philipon dois acmes), as colaborações com dezenas de revistas ilustradas das primeiras décadas do século XX em Portugal, Espanha, França e Bélgica – revelando-se assim um panorama bem mais alargado do que aquele que havia sido aventado no volume de Theresa Lobo –, a sempre contínua dedicação à caricaturização das figuras públicas através de modos minimalistas (um traço, c’est tout – veja-se uma representação de Hitler [ao lado]), um olhar atento social às camadas mais desfavorecidas das sociedades pelas quais atravessou (muitas vezes recordando o trabalho de “aguarelas sociais” de Constantin Guys), passamos por todas as “fases” e “forças” de Leal da Câmara, até desembocarmos nos guaches e óleos dedicados à figura do tradicional saloio, oscilando entre ecos de um impressionismo tardio e uma aproximação mais “naif”, estilizada, quase devedora de uma ilustração publicitária do que viria a ser chamado de “linha clara” (Rabier, Hergé…).
Algumas destas imagens são extremamente curiosas. Um conjunto delas são todas as instâncias em que o artista se retrata a si mesmo, com um nariz aquiliníssimo, encontrando-se a mais divertida representação num seu ex-libris, em que o artista se transmuta em pequeno diabrete, munido com a sua jocosa ferramenta de trabalho [abaixo, último parágrafo].
Na exposição em si, talvez a mais imponente e surpreendente composição seja aquela intitulada “Conflitos Regionais” [aqui ao lado], de 1939, uma espécie de tríptico de aguarela sobre papel, cujas dimensões são de 163,2 x 64,8 cm. Ao centro, vemos uma Europa sob o assalto de aviões alemães, com as figuras beligerantes de Hitler e Mussolini avançando para Oeste, contra a Marianne de França, e um matador espanhol, e um gigantesco Estaline, de bomba na mão, inclinando-se sobre toda a Europa Ocidental. Na Índia, um pequeno Ghandi faz frente, pacificamente, a John Bull. No norte de África, vemos outros conflitos. É confusa a composição, e para mais a sua explicação verbal, mostrando o desarranjo a que todas estas frentes levaram… Na parte da Ásia, uma gigantesca mancha vermelha (sangue, fogo, símbolo, tudo isso?) alastra-se sobre um imenso chinês acossado por um militar japonês, enquanto no sudoeste, John Bull e o Tio Sam trocam equipamento bélico. Em contraste a todo este palco facínora, na costa mais ocidental, o Zé Povinho dorme uma sesta sob as folhas de uma oliveira. Desprevenidamente, poderíamos interpretar esta imagem como uma espécie de elogio à paz portuguesa (cuja responsabilidade, ainda hoje se pretende, como um mito, entregar nas mãos de um benfeitor e providente Salazar), como alívio, como bonomia bem merecida. No entanto, é bem possível que haja uma outra possibilidade de leitura, mais irónica, mais marcada: a de uma total apatia e ignorância em relação ao mundo cosmopolita que nos rodeava, elevando esse suposto não-envolvimento no conflito como uma falta de carácter, da mais aborrecida e chã letargia. A qual, na verdade, é uma das grandes heranças ainda hoje vividas (por vezes com orgulho cego) do salazarismo. Esta imagem faz-nos interrogar isso, assim como desejar saber mais do papel de Leal da Câmara em relação a essa época. Fica em suspenso, mas prometida nas páginas deste catálogo.
É que se as caricaturas, cartoons e capas de publicações até aos anos 20-30 retratam directamente intervenientes da política portuguesa, situações sociais que vivíamos no nosso país, e as mais das vezes representações essas com um sinal republicano, se não mesmo ainda mais à esquerda e radical, depois dessa data mudam de tom. A atenção vira-se a aspectos mais de retrato social – os saloios – ou viradas para a cena internacional da guerra (cuja atitude geral no país era a de dar uma no cravo e outra na ferradura). Terá Leal da Câmara “amolecido” com a idade ou com o novo regime? Será simplesmente uma questão de escolha das imagens desta mostra? Eis um outro conjunto de questões às quais ficamos, para já, sem resposta. [A resposta é dada pelo organizador da exposição e catálogo: as imagens, tendo sido exclusivamente sido colhidas da colecção local, impediam formar um outro retrato, logo, esse "amolecimento" (minhas palavras) são fruto da circunstância do próprio autor].
Em termos gerais, as reproduções das imagens são satisfatórias, ocupando parte substancial da página, mas há um caso ou outro em que os cortes (a “cropagem”, como se costuma dizer) não respeitam todo o objecto, e outros ainda em que a resolução não é das melhores. As legendas indicam um suposto título, a data (ano), e, quando se tratam de originais, técnicas e dimensões. Mas não há qualquer indicação do seu contexto. Se algumas delas se repetem, vendo o original e depois o seu emprego na capa de uma qualquer publicação, porque não as ter colocado lado a lado, de forma a poder contrastar de imediato o seu uso? Muitas das imagens, sem essa contextualização desejada, fica sem resposta sobre o seu emprego verdadeiro: trata-se de uma encomenda, algo que se reveste de um prazer privado, de um ciclo de colaborações com uma revista ou jornal? E neste caso, com qual, qual a sua política editorial, qual a sua família política, quais os autores com que dialogava nesse espaço público? [Mais uma vez, outro esclarecimento: muito do material, quer os originais quer as publicações da época, que compõem a colecção, encontram-se num estado relativamente pobre, e o trabalho de restauro digital das imagens para o catálogo foi hercúleo, limpando-se bolores, manchas, carimbos, riscos, e outros acidentes. Mais, uma vez que se trata, como dissemos, de um catálogo, não apontamos essa ausência de mais informação contextual como responsabilidade dos seus autores: este catálogo deve funcionar como estímulo aos verdadeiros historiadores em construir essa imagem, percepção, contextualização, etc.]
Estamos em crer que, nos dias que correm, e não obstante a própria exposição da World Press Cartoon, e o trabalho de um número reduzido de autores, não há em Portugal uma verdadeira “escola” de ilustração editorial. Por “ilustração editorial” – por mais irritantes e redutoras que sejam as categorias – entendemos não as ilustrações que surgem em jornais ou revistas, acompanhando um qualquer artigo jornalístico, de divulgação ou até mesmo de opinião. Entendemo-la antes como aquela ilustração em que o próprio autor, através da sua linguagem visual, toma partido e dá a ver ao seu público um posicionamento em relação ao evento ou conceito abordado. Neste campo, poderemos incluir, ainda que de forma flutuante, alguns dos trabalhos de Augusto Cid [e quem acaba de ser lançado um tomo antológico, pela mão de João Paulo Cotrim] e de António (não toda a caricatura, mas sim aquela que traz algo do seu tempo específico à baila: como a caricatura do Papa João Paulo II com palas de burro na cabeça, bem mais contundente do que aquela do preservativo no nariz: só que no hipócrita e beato Portugal, as questões do sexo criam mais celeuma), as tiras de Luís Afonso e, sem qualquer dúvida, e pensando mesmo ser o nosso melhor artista do momento no que diz respeito a este campo específico, António Jorge Gonçalves, com os cartoons que produz para o Inimigo Público, sendo muito mais mordaz nos seus comentários “visuais” do que toda a verborreia desse suplemento. Aliás, foi numa troca de correspondência com esse artista que ele nos afirma “(…) o cartoon não comenta aquilo que acontece no mundo, mas aquilo que a imprensa diz que acontece no mundo (…) o bom cartoon não é acerca duma piadinha ou de um trocadilho, mas sim uma opinião pessoalíssima e um pouco contra-cultura (o que quer que isso signifique num determinado momento e local).” Nesse sentido, já vivemos tempos mais felizes e fortes da caricatura ou do cartoon político, fase na qual Leal da Câmara encontra, dos anos 1890 a 1930, um papel preponderante. Repare-se na capa do Miau! de 1916 [acima], e pense-se na sua possível aplicação hoje. Se tempos houve em que um primeiro-ministro (ou um rei!) poderia ser retratado como um porco, iteralmente, levando o artista e a publicação a multas, prisão ou exílio, hoje quaisquer “brincadeiras” causam dissabores de outra índole, menos mediáticos talvez, mas mais perniciosos (porque em "democracia aberta e transparente"). Haveria aqui muita discussão a desenvolver, com melhores interlocutores do que nós. Mas parte da responsabilidade desse “apagamento” está nas mãos dos artistas, outra da “vida que se leva”… Independentemente de experiências tais como as de O Combate.
Como dissemos, o livro está organizado de acordo com princípios cronológicos-biográficos, dividindo-se em “Juventude”, “Exílio” e “Regresso”. Os capítulos têm uma breve listagem de acontecimentos, antes de entramos na colecção das imagens que corresponde a esse período. No entanto, ainda que os textos sejam concisos e informativos, de quando em vez revelam a possibilidade de se desdobrarem numa mais explanada abordagem, não partindo de pressupostos do conhecimento de toda a circunstância histórica, social e política do Portugal de então. Por exemplo, apesar da patente costela republicana do artista, e por vezes anti-clerical, nacionalista (e, às vezes, revelando alguns princípios de xenofobia, anti-semitismo, ou humor racista), uma frase como “Um ano depois, e por razões por demais ‘óbvias’, parte para o exílio espanhol”, mesmo confrontadas e complementadas pelas imagens claras (a última capa d’A Corja!, de 1898), seria aconselhável tornar essa obviedade mais explícita, até mesmo para compreendermos, na aproximação do centenário da República, de toda a complexa novela política e social, e até o combate feroz, que a antecedeu, que a viu nascer e tentar se desenvolver… Seriam esses desenvolvimentos que nos permitiriam entender melhor esse momento, e contrastá-lo com o nosso, passando a entendê-lo melhor também.
Nota: livro pertencente à Biblioteca da ESAP-Guimarães, ofertado pela CMS. Algumas das considerações deste artigo nasceram da troca de impressões com António Jorge Gonçalves, Osvaldo Macedo de Sousa, e outros. A todos agradecemos. Acrescente-se um agradecimento a António Antunes, com quem a, com pena, demasiado breve troca de impressões depois da sua leitura deste texto ajudou em novas direcções; fica o voto de que futuros contactos possam aumentar o nosso conhecimento, imediatamente exponenciado, assim como a nossa exactidão e equilíbrio na leitura dos livros.
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