Este é o primeiro livro da colecção O Filme da Minha Vida que escapa a uma certa gravidade cinematográfica. Até agora, os autores convidados escolheram filmes que partilham certas características formais e intelectuais que os colocam num território determinado, elevado. Mesmo Vertigo de Hitchcock (por João Fazenda) ou Aconteceu no Oeste de Leone (por André Lemos), os quais tiveram uma vida inicial algo manca, seriam recuperados por facções da criação e da crítica cinematográficas mais tardias. Enter the Dragon, convenhamos, com a excepção da patina que se lhe pode dar graças a uma paixão pelas artes marciais (deslavadas já por uma filosofia reduzida a sebentas New Age e sempre sob o signo da trama policial), não alcança esse território das obras-primas do cinema. Mas é precisamente essa a razão que torna esta escolha de Tiago Albuquerque mais interessante. Não queremos dizer que os outros artistas convidados tenham feito escolhas de filmes procurando uma qualquer legitimação cultural e intelectual, uma vez que os seus trabalhos já lhes permite delinear um contorno muito específico, mas Albuquerque faz uma escolha que parece ser ditada directamente pelos fascínios mais básicos da experiência do cinema. Afinal de contas, se bem que em termos de diálogos adultos e intelectuais nos possamos querer revestir do máximo conhecimento cinematográfico, expondo a nossa preferência pela beleza de Ozu, o mal-estar de Béla Tarr, as metalepses de um Resnais ou de um Lynch, a emoção de um Pedro Costa, a verdade é que o que nos foi marcado a ferros nas mentes jovens nas primeiras ideas do cinema é algo de mais prosaico, básico e descomplexo: em termos pessoais, poderíamos falar da entrada de Darth Vader em O Império Contra-ataca, a melodia de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, ou a atmosfera de Krull. Tudo matéria negligenciável face a desenvolvimentos intelectuais mais adultos, naturalmente. A cena dos espelhos de Enter the Dragon, por exemplo, não tem o mesmo peso ontológico e até mesmo função narrativa do que a de A Dama de Shangai, de Orson Wells: é nestes pesos e medidas que se vai criando um mais acertado prisma de diferenciação.
No entanto, o que marcado foi, marcado está, e não há educação que a apague, ou não fossem impressões de infância/adolescência. Esse fascínio, que tem na imitação física uma das suas faces, está indicado no trabalho de Tiago Albuquerque. Tal como as crianças imitam os movimentos e os gritos de um filme desta natureza nos dias que se seguem à sua experiência, também o autor optou por apagar a possível aproximação textual para mergulhar directamente nesse jogo de estranheza. Apesar de ter começado com uma versão em que trabalhava o texto, adaptando as muitas frases citáveis do filme (“Boards don’t hit back”), Albuquerque optou por empregar textos em chinês (colhendo-os pela internet), criando um écrã impenetrável (para a esmagadora maioria dos potenciais leitores deste livro, que presumo não lerem chinês). Não é que fiquem apenas as imagens: o texto mantém-se nas legendas, nas falas dos balões, nas didascálias, mas tornam-se um obstáculo apenas superável pela imitação, pela derisão, pela brincadeira, idêntica aos gritos e algaraviada que uma criança faz imitando Bruce Lee num qualquer combate.
A trama do filme é deixada intacta em O dragão ataca, ainda que transformada em momentos-chave, fortalecidos pela opção do autor (em colaboração com Adriano Lameira, que desenhou “metade” do livro) em apresentar pranchas quase simbólicas, ora em composições esquemáticas, ora empregando princípios de perspectiva oriental, com a distribuição dos espaços pelo eixo vertical do plano, ora pela sobreposição de imagens que se pretendem mais lidas enquanto sublimação dos eventos que representação naturalista. Como é de esperar, a cena final do combate com Han recebe uma atenção maior, graças a um enorme plano desenhado por Albuquerque de um punho quebrando um espelho, e destruindo a ilusão que havia sido tecida até àquele momento, apenas se podendo seguir o dénouement e a recompensa do herói (também trabalhada pelo autor da banda desenhada de uma forma compósita).
Tiago Albuquerque afasta-se neste livrinho, talvez fruto da colaboração de Lameira, talvez por procura de uma outra linguagem, da linguagem visual altamente estilizada a que nos havia habituado no seu trabalho de ilustração ou animação, o qual era reminiscente de Jim Flora. A estilização mantém-se, mas ganha outras origens, e outras forças; os rostos das personagens ganham um outro tipo de simplificação, que passam por um grau de identificação com os actores reais/personagens originais, e já não se revestem de uma redução universalista. A redução ao preto-e-branco também parece ser um limite a um autor que trabalha de uma forma muito particular as opções cromáticas, mas são os planos cheios (e invadidos pelo texto “estranho”) que garantem a possibilidade de volume e densidade. É curioso que apenas duas onomatopeias (“Grrrrrr” e “crack”) estejam escritas com caracteres ocidentais, uma vez que poderiam ser também substituídos pelas correspondentes palavra sem chinês, ou então poderíamos ter acesso aos gritados “iááá” e “kuóóó” dos combatentes.
O dragão entra e ataca neste livro. Ele surge mesmo, com o seu corpo e presença, umas quantas vezes pelas páginas, como eco simbólico da trama principal. A convivência de ambos os planos é eco da memória reconstrutiva de Albuquerque, que mostra assim a continuidade de um fascínio vivo por este filme.
Nota final: agradecimento ao editor, pela oferta do livro.
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