A convite de Rui Brito, editor da Polvo, para além de ter feito uma pequena apresentação pública do livro, escrevi uma pequena nota sobre o novo livro de Miguel Rocha. Quer a apresentação quer a nota tinham, obrigatoriamente, que contornar algumas das questões exploradas no livro, pois devendar a sua trama, algumas das suas opções, mesmo que parecesse meramente superficial e atalhado, acabaria por minar a mais simples, se é que ela pode existir, fruição do livro. Já no texto presente, baseado nessas notas anteriores, como decorre da natureza deste espaço, far-se-á uma leitura de um livro lido em conjunto com os seus leitores, logo, quaisquer revelações da história em si ou das suas estratégias não pode ser vista como debilitante da sua fruição primeira, mas antes transformar-se num órgão auscultador de potenciais leituras segundas, como é da ordem da crítica (diferente da divulgação, da publicidade, ou até do encómio). (Mais)
Este livro nasce de uma complicada genealogia diegética. Muitos de nós já ouvimos histórias de cavalos que sabiam contar ou dizer as capitais da Europa com golpes dos cascos no chão. Ora, esse caso é real, e remonta ao início do século XX, mais especificamente a “der kluge Hans”, o cavalo do frenologista W. von Osten, apresentado numa Mitteleuropa de um tempo dividido entre o positivismo e misticismos vários, entre o progresso moral-social e o mais chão tradicionalismo, entre novas linguagens estéticas revolucionárias e os mais comezinhos dos princípios burgueses endomigados. Veja-se a versão cinematográfica de Woyzeck, de W. Herzog, para encontrarmos esse cavalo a servir de metonímia às experiências do médico sobre o próprio protagonista. O cavalo, aos poucos, deixa de ser uma personagem de interesse próprio, para se revestir com a pele de um símbolo... um símbolo daquelas divisões, daqueles intervalos, daqueles espaços em negociação a que acabámos de aludir.
A história tornar-se-ia famosa sobretudo graças ao livro de Carl Sagan, O Cérebro de Broca, e finalmente desembocaria no seu emprego, ou transformação em processo, para o grupo teatral Projecto Ruínas, de Montemor-O-Novo: numa peça escrita por Francisco Campos em 2006, Hans, O Cavalo Inteligente tornar-se-ia na matéria de exploração “psico-teatral” desse mesmo grupo, expandida pela experiência, memórias e actos criativos dos actores envolvidos. Miguel Rocha tem uma relação privilegiada com este grupo, tendo colaborado com ele em várias ocasiões; em relação a Hans, por exemplo, havia feito o cartaz. Mas quis ir mais longe, e construiu um livro que adapta a história, à sua maneira e com os seus instrumentos, em total liberdade para com o texto original.
Se na peça teatral o papel de Hans era desempenhado por um actor, logo um ser humano, logo um écrã determinado para chegarmos à ideia-corpo do cavalo Hans, Miguel Rocha devolve o cavalo ao lugar de cavalo. Não quero dizer com isto que não se esteja criando um outro écrã, naturalmente, mas é essa a matéria com que se elabora este livro. Tendo como sub-título um relativamente enigmático “Da luz, da viscosidade e do pó. Drama anatómico em cinco partes”, o livro está, como se entende, dividido em cinco capítulos ou cinco actos, conforme queiramos flutuar próximos do livro (literatura, banda desenhada) ou espectáculo teatral. Todo o livro, enquanto objecto, concorre para essa potencial interpretação: a capa toda à volta tem um padrão que se assemelha a um pano, na capa mesmo assumindo as dobras do mesmo fechando a boca de cena; as badanas apresentam dois números que potencialmente fazem parte do espectáculo de variedades no qual também Hans é apresentado logo ao início pelo seu tratador/mentor (e, mais tarde, tudo nos leva a crer, pai), von Osten; a página de anúncios num jornal no final permite descobrirmos pistas de continuação e desenvolvimento da trama “interrompida” no fecho da história... Miguel Rocha não faz mais do que explorar mecanismos de extensão da narrativa para fora do “espaço diegético” tradicional da banda desenhada, a saber, as pranchas que compõem a história, tal como foram já experimentados por muitos outros autores, e sobretudo no campo do livro ilustrado infantil, as mais das vezes apresentando objectos em que toda a sua dimensão visual concorre já para a leitura do livro.
Há uma epígrafe que abre a narrativa – relativa à bioluminescência, irmanando fenómenos da natureza que parecem partilhar elementos com o fantástico (porque ainda não compreendidos ou porque não compreensíveis pela ciência?) – que nos alerta para o facto de que as tentativas de dissecação de uma questão é já contar com a sua morte. Ou seja, um acto crítico é em si mesmo um acto de assunção da mortalidade, de mortificação. E é. São mesmo essas as palavras de Walter Benjamin sobre a tarefa do crítico. Mas esse acto de mortificação serve, ainda nas palavras de Benjamin, para redescobrir o brilho do fogo nas cinzas. Miguel Rocha faz espalhar essas cinzas que ainda guardam um fantasmático incêndio todo ao longo da história. Repare-se, por exemplo, nas páginas que servem de separadores dos capítulos: todas as imagens estão repletas de imagens que ecoam o tema ou a matéria principal, lançam pistas de intepretação, são elas mesmas interpretação da “história”, abrem-se a novos desenvolvimentos, desdobramentos, multiplicações das consequências que constroem, fragmentária e elipticamente, a história de Hans até ao momento em que é apresentado ao público.
Em termos meramente formais, as saturadas texturas de carvão digital de Miguel Rocha – as quais, aparentemente, e até mesmo pelas escolhas de composição de cada vinheta, na colocação dos corpos, da distância entre “foco” e personagens, reenquadramentos, etc., remetem a uma linha descontínua da história da fotografia, sobretudo aquela que pretendia uma certa “objectividade”, um certo desejo de “imortalização” – traduzem esse amontoado de cinzas no texto que nos apresentado, deixando a responsabilidade ao leitor de, ao vasculhá-las, perscrutá-las em todas as suas dimensões, recompor uma possível “situação original” (jamais apreensível, na verdade).
A leitura de Hans remeteu-nos necessariamente a toda uma série de outras narrativas em que os cavalos surgem como personagens principais e elementos máximos de cultura: o conto “Quero ser um cavalo” de Slawomir Mrozek (publicado entre nós nos Livros B, O Elefante), “O novo advogado” de Kafka (Parábolas e Fragmentos), Os cavalos de Abdera de Leopoldo Lugones... Mas tal como no caso do filme de Herzog, estes cavalos servem um propósito simbólico determinado, enquanto signo de nobreza, força, beleza, vitória, domínio, virilidade, liberdade. Além do mais, essas narrativas vivem no território do fantástico. No caso de Miguel Rocha, não se trata do fantástico, mas antes da mais despojada e humilde das humanidades. O cavalo Hans não tem nenhuma dessas qualidades; é mesmo um “cavalo sem qualidades”, ainda que não assuma a natureza proteica e adaptável do Ulrich de Musil. Um “cavalo”, enquanto meral animal, é ainda sinónimo de “besta”, criatura indelicada, grosseira, de carga, de abuso e até de alimentação; é por essa razão que a palavra “inteligente” surge no título, para o diferenciar dos demais. No entanto, apesar dos esforços de von Osten, descobrimos que também Hans não sofre de nenhum desses defeitos. Hans não é um cavalo qualquer.
O fenómeno da inteligência de Hans é desvendado a dado momento como sendo uma espécie de empatia profunda da parte do cavalo, a sua capacidade em ler nas pessoas um qualquer grau de ansiedade, invisível aos nossos olhos treinados por outras sensibilidades e categorias fechadas de comunicação. Sabendo quando a resposta correcta é dada, ele pára nesse momento, e cria-se a ilusão de responder correctamente. Se bem que a inteligência seja minada nesse sentido (afinal, ele não sabe calcular nem quais as capitais da Europa), ela desabrocha noutra, uma “inteligência emocional”, no termo contemporâneo. Hans, porém, é mal-tratado todo ao longo da narrativa, e a cada capítulo descobrimos níveis cada vez mais profundos e marcados dessa crueldade. Cada uma dessas descobertas também nos vai revelando a natureza do trauma que subjaz à vida de Hans e quase serve de justificação para a sua personalidade, as suas opções perante a vida, serve mesmo de chave a toda a história. Hans não tem uma única fala em todo o livro. Não significa isto que não comunique, que não dialogue connosco, e esse diálogo é o que nos permite aproximarmo-nos dele tal como ele se havia aproximado dos outros para o seu “número”...
Hans talvez seja até um cavalo muito único, tão único que deixe de ser cavalo. Nas mãos do autor, a banda desenhada Hans, O Cavalo Inteligente explora algo parecido com o intervalo dos tempos e lugares que pretende retratar, que em muitos aspectos são especulares aos nossos de aqui e agora: a brutalidade e estupidez humanas são eternas. Onde “O Grito” de Munch mostrava uma boca rasgada que não consegue largar nenhum som, a boca cerrada de Hans é mais atroadora que qualquer galope sobre macadame. De pescoço erguido, mesmo sob o peso da canga, Hans é um sinal da dignidade última do homem. Mesmo que seja para ser esmagada, ela existe, faz-se sentir sobre os cascos do desdém. É um retrato da resistência.
Nota: agradecimentos ao Rui Brito, pela oferta e pelo convite, e a Miguel Rocha, pela conversa.
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