10 de junho de 2010

The Complete Milt Gross Comics Books. Milt Gross (IDW Publishing)



Craig Yoe já havia alertado em experiências anteriores, sobretudo na revista que edita (Modern Arf e os outros títulos alternativos), para o diálogo entre os cartoonistas e as artes visuais eruditas do seu tempo. Como já afirmámos aqui várias vezes, as mais das vezes esse diálogo é de derisão e incompreensão da parte dos artistas de banda desenhada: a matéria das artes plásticas serve para criar um qualquer tipo de humor, às custas das técnicas pictóricas (o cubismo, um favorito), cromáticas (monocromáticos de Klein, cores anti-naturalistas de Gauguin, etc.), representativas (o surrealismo de Dali), ou simplesmente da percepção generalizada de uma certa arrogância social e discursiva da parte dos círculos que a cultivavam. Nalgumas das páginas destes comics, Gross mostra algumas dessas obras no centro do seu humor, com um especial destaque para um famoso quadro norte-americano, Arrangement in Grey and Black: The Artist's Mother, de James M Whistler, que surge uma vez numa das histórias, e nouta numa colecção de versões sobre pinturas famosas. Gross faz parte daquele grupo de autores que construíram a sua verve cómica – como toda a criação da comédia – sobre os outros: a sua própria “graphic novel” He Done Her Wrong é uma espécie de resposta, sarcástica, aos livos de Lynd Ward.
Gross trabalhou numa série de frentes, tendo publicado para jornais, revistas, livros, argumentos, cenários, animações (como este Jitterbug Follies), etc., mas este enorme volume colecciona o trabalho que Milt Gross fez para o formato dos comics books, não só os dois números da publicação com o seu próprio nome (Milt Gross Funnies) como outras publicações onde participou breve mas regularmente (The Killroys, Giggle Comics, Moon Mullins, ...), entre os anos 1947-48 (fazendo assim um volume com cerca de 350 páginas, no tamanho original, maior, dos comics dos anos 40 e 50).
Ora este período é coincidente (uma fracção) com os anos em que os melhores filmes da Warner Brothers são feitos, nas realizações de Avery, Freleng, Jones e outros. Se faço aqui uma comparação pouco subtil entre os desenhos animados do frenético Bugs Bunny e ca. e as personagens em papel de Gross é devido à natureza cinética, burlesca, e francamente enlouquecida de todas elas. São essas as cenas mais memoráveis pois aquelas que parecem estar ligadas a um fundo comum de vários tabalhos da mesma natureza, e a que outros autores respondem em menor ou maior grau (Barks também desenhava os seus patos a saltar quando surpreendidos, a violência física não tinha verdadeiras consequências na animação, as comédias de erros e de confronto social eram uma constante nos irmãos Marx e noutras instâncias...).
Recordemo-nos também que esta época, os anos 40, foi um momento de grande produção de cinema (no qual Gross esteve envolvido de várias maneiras, desde argumentista a pintor de cenários, como se pode ver neste clip) e de animação. Era um tempo imediatamente antes do domínio comercial e quase monopolista do naturalismo e universos cândidos da Disney, e em que a produção de um Fritz Freleng e sobretudo de um Tex Avery procurava ainda toda a liberdade e exploração de tabus nos desenhos animados. Uma espécie de tentativas em encontrar naquele meio para crianças construções mais adultas e até, subtilmente, críticas sociais e culturais. Paul Wells, um dos mais importantes e divulgados teóricos e académicos do cinema de animação, opõe uma animação que dava prioridade à comédia de personagens, e à personalidade destas, associada aos gostos de “uma população antiga e rural ‘folclórica’”, tal como preconizada pela Disney, e um outro tipo de animação, mais anárquico, modernista, associado “às culturas imigrantes não-WASP [branchas, anglo-saxónicos e protestantes”] que se tornariam parte do ‘melting pot’ norte-americano no final do século XVIII”, citando Raymond Durgnat para explicar que o humor deste outro tipo de animação era “rápido, directo, cínico, muitas vezes cruel, reflectindo um mundo mais veloz e perspicaz”. Gross não apenas pertence a essa geração como a esta tribo particular. As suas personagens não existem para serem desenvolvidas de um modo emocional, racional ou empático, no fundo: são apenas mecanismos rápidos para dar início a todo o movimento cinético das suas histórias espatafúrdias e ilógicas. Durgnat havia identificado a transformação que se operava nesses tempos modernos (e a qual parece ecoar uma lição de Walter Benjamin exposta em O Narrador, modernismo esse visitado por quase todas as instâncias da arte da sua época): “A vida torna-se cada vez mais uma rápida manipulação de sentimentos do que uma experiência total dos mesmos”.
É assim que temos uma procissão com personagens tal como: Gaylord Ginch (de That’s my pop!), um adepto do dolce far niente, ms que arranja sempe um qualquer estratagema espatafúrdio para ganhar a vida e ficar bem visto pelo filho, entusiasmado (que termina as histórias com um “that’s my pop!”); Elwood, um simples homem cujo maior sonho é casar-se com a sua noiva e ser bem visto pelos sogros, mas cujos sonhos são sempre atropelados pelo seu cão destrambelhado, Pete the Pooch; Patsy Pancake, um senhorial maltrapilho, sempre acompanhado (e salvo) pelo fiel mordomo-pinguim Chives; Count Screwloose, um demente hospitalizado que consegue sempre fugir do manicómio para descobrir que os habitantes da sociedade “normal” são ainda mais loucos que ele, e por isso retorna ao asilo para os braços do seu cão Iggy; Moronica, “the nation’s nitwit”, cujo nome diz tudo e é uma espécie de João Pateta de saias. Outras das secções mais famosas são as histórias sobre uma situação qualquer que desmascara a hipocrisia social de uma qualquer classe de pessoas, terminando com um acusatório “Banana oil!”, que se transformaria rapidamente num equivalente a “balelas!” na boca de toda a gente da época. O jogo com a linguagem é algo de típico neste tipo de humor, e pense-se no Krazy Kat, de Herriman, para pensar-se num elo mais profundo dessa relação; Gross teve a sorte de chegar a um público tão vasto que chegou a influenciar a forma como as pessoas falavam (o mesmo acontecendo ainda hoje, em cada país, graças aos seus cómicos) “is dis a system?” é outra das expressões mais repetidas nos livros sobre Gross. Há mesmo algumas histórias curtas que exploram situações completamente absurdas, e as mais das vezes nascem ora de mal-entendidos ora de “traduções selvagens”. Mas seja qual for a personagem, a acção acaba sempre por terminar numa cada vez maior velocidade dos acontecimentos e atropelos das personagens em pequenas situações
Um aspecto curioso é a memória entre duas pequenas histórias de That’s my pop! Poderei estar redondamente enganado aqui, mas recordemo-nos que a “continuidade” a que muitos leitores da banda desenhada mainstream hoje estão habituados é algo de relativamente recente, e estas bandas desenhadas eram produzidas no seio de uma indústria que ainda considerava estes panfletos (os comic books) como algo que não mereceria arquivo, cuidados de maior, nem sequer a atenção do leitor que ultrapassasse o que era ofertado entre as capas de cada número. Mesmo assim, Gross apresenta dois episódios – empregar esta palavra já implica a ideia de continuação – dessa série (Moon Mullins #s 5 e 6, em 1948), em que os protagonistas, na segunda aventura, se recordam e reutilizam matéria da aventura anterior. Não posso, de forma alguma, afirmar que esta seja uma estratégia inovadora ou inédita nos comic books desta natureza e era, já que toda essa história é de uma convoluta rede de avanços e recuos e imitações e correcções, etc. Existiam as tiras de continuidade, mas também existiam reutilizações de personagens secundárias e vilões nos títulos dos super-heróis, por exemplo... Fica a nota.
Outro aspecto culturalmente marcado, e que expande aquela família humorística a que nos referimos acima, é a dimensão musical desta produção. Aqui, as referências teriam de ser obrigatoriamente as de Carl Stalling, o grande compositor dos filmes de animação da Warner Brothers, e de Spike Jones, autor de uma imensa lista de canções burlescas e divertidas. Jones chega mesmo a ser citado numa destas histórias de Gross, e é essa a razão que nos levou escolher uma das suas composições para banda sonora do nosso (sempre péssimo) vídeo.
O livro ainda contém uma intodução pelo filho, outra com um “fold-in” de Al Jafee, e um texto de Yoe em torno da carreira, vida, colaborações e amizades de Gross, assegurando um elemento importante de contextualização estética e histórica deste autor, a recuperar de uma forma mais central do que até agora foi possível.
Nota: agradecimentos a Filipe Leote,que há uns anos me apresentou e passou toda a discografia de Spike Jones.

2 comentários:

  1. José Raposo1:20 da tarde

    Caro Pedro,


    Lamento imenso recorrer a esta forma de comunicação, mas não encontrei ao longo do blogue o endereço de email para que o pudesse fazer de outra forma.

    Gostaria de entrar em contacto consigo a propósito de novos desenvovimentos na banda desenhada, especialmente em contexto de mediação tecnológica. Deixo-lhe o meu endereço de email caso seja possível estabelecer contacto desta forma: jcmraposo@gmail.com

    Com os melhores cumprimentos,

    José Raposo

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  2. Caro José Raposo,
    Já lhe enviei uma mensagem por email.
    Até breve,
    PM

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