Nem sempre um tijolo lançado à cabeça foi sinal de amor.
A história do aparecimento, da publicação, das transformações, da “evolução” do trabalho de George Herriman é extremamente complexa, alongada, mas também fascinante e informativa até chegarmos aos gloriosos anos da série Krazy Kat. A emergência lenta, paulatina, d@ gat@ Krazy, terror de toda a população de roedores da casa dos Dingbats, seguido pelo vingador Ignatz que descobriu no tijolo a melhor arma de defesa, a transformação de ambos numa rotineira dupla cómica (aparentado com os actos de vaudeville da época) em torno de piadas patetas de Krazy, a flutuação entre a composição da própria banda desenhada – primeiro como filler de outra tira (The Dingbat Family/The Family Upstairs), depois como tira autónoma, conhecendo vários formatos, do vertical ao panorâmico, às pranchas imensas de Domingo – e mais tarde o fechamento do triângulo com Offissa Pup, não é algo que tivesse surgido de atacado, mas antes um processo de apuramento da parte de Herriman em termos de escrita e desenho. Essa longa história começa a ser-nos facilmente disponível, graças a toda uma série de publicações importantes, com alguns arranques em falso, que garantem a defesa da memória e do património histórico da banda desenhada junto a um público mais alargado. Os destaques especiais vão naturalmente para a maravilhosa colecção editada por Bill Blackbeard, e desenhada por Chris Ware (ainda em curso, estando quase a terminar a colecção de todas as páginas de Domingo e depois passando para as tiras diárias e outros títulos anteriores de Herriman), o volume The Kat who Walked in Beauty, editado por Derya Ataker (ambos projectos publicados pela Fantagraphics), ainda um recente Krazy + Ignatz, “Tiger Tea” (que apresenta uma fracção da única “aventura de continuidade” da série, re-apresentada a um público moderno, no qual nos incluímos, através da RAW) e o volume da Sunday Press que está para sair (e acrescente-se ainda o projecto da biografia do autor por Michael Tisserand). Também existe um punhado de outras edições menos recomendáveis apreoveitando o “domínio público” de parte da série, e alguma da tecnologia disponível nos nossos dias... Neste contexto editorial, o que significa o acto editorial de Manuel Caldas?
A ideia central é proporcionar aos leitores portugueses uma pequena antologia de algumas das mais belas pranchas desta série. Uma antologia é uma selecção e a construção de uma selecção obedecerá a determinados critérios que o editor elegeu como os mais acertados para os seus propósitos. Será difícil crer que uma edição completa (seguindo o modelo da Fantagraphics, por exemplo, como a Afrontamento tem feito com o Complete Peanuts) de Krazy Kat vingasse comercialmente em Portugal, por isso esta plataforma de introdução a uma nova geração de leitores é um gesto de força. E o editor faz escolhas há anos de bandas desenhadas de que gosta e que pretende partilhar com o público. O gosto pessoal, e o carinho por essas séries, pauta o catálogo das suas edições, mas os desenvolvimentos da tecnologia e da edição permitem que possa mostrar esses trabalhos, nas palavras de Caldas (correspondência particular): “com mais clareza, limpas dos estragos feitos pelo tempo no suporte original e destituídas dos defeitos característicos da impressão da época”. Ou seja, aliando ao prazer da antologia, está o da apresentação da arte tal como ela poderia ter sido apresentada, a procura da melhor edição possível. Apesar de haver a confissão de que esta edição acabou por ser ligeiramente mais escurecida do que o planeado, Caldas não procura aquele posicionamento editorial a que Domingos Isabelinho, noutra ocasião, havia chamado de “olhar míope”. Sucintamente, este conceito pretende revelar aquele tipo de reprodução, permitido contemporaneamente, que amplia a superfície da impressão ao plano visível do olhar, aumentando as irregularidades e os acidentes de impressão, ou seja, os processos originais, tornando-os no texto final. É um olhar que “amplia e transforma o imperfeito num novo perfeito”. No campo da banda desenhada, encontramos exemplos disso nas edições desenhadas por Chipp Kidd, nesta recente antologia de Milt Gross, noutros títulos... É um grau de fetichização do coleccionador de bandas desenhadas, transformando um só exemplar do que fora publicado num Ur-texto, através das técnicas de fac-símile. É o querer dar a ver a patina do tempo decorrido sobre o próprio projecto que se pretende recuperar. Mas o papel de Manuel Caldas é também o de restaurador, logo não é apenas um simples gesto de facilitador ou de arquivista, mas de alguém que pretende retornar atrás e chegar a um objecto prístino, de um tempo que não chegou a existir (como um anjo que contrarie o Angelus Novus, de W. Benjamin). As páginas de Krazy + Ignatz + Pupp são, por isso, brilhantes, de cores vivíssimas, de uma presença vincadíssima, e com os traços dos contornos o mais sólidos possível (com a excepção de uns quantos momentos, e com uma opção tremida no design da capa, demasiado carregada de informação dispensável para o interior, penso que esta é uma bela edição em termos técnicos).
Para além do mais, sendo uma edição para leitores portugueses, temos a questão da tradução. Tal como no caso de Milt Gross, também Herriman era um dos expoentes representantes de uma nova atitude moderna na cultura norte-americana, um espelho do cruzamento e polinização de diferentes culturas. Não tanto a ideia do “melting pot”, relativamente errónea, pois não há um resultado coeso e misturado, mas antes um espaço de negociação entre várias culturas. No caso de Herriman, essa mistura revela-se sobretudo nos jogos de linguagem, um verdeiro pidgin entre inglês e toda uma série de línguas outras, ou através de alucinações ortográficas tão reminiscentes de uma ignorância surpreendemente criativa como das experimentações de Joyce. A tradução portuguesa da edição dos anos 90 (pela Livros Horizonte, da colecção abortada da Fantagraphics e editada por Rick Marschall) pura e simplesmente eliminava essa estranheza, e ainda que procurasse um uso da língua popular e oral, acabava por não tornar visível esses desvios ortográficos, multitónicos, poliglotas, etc. (a francesa, da Futuropolis, sim). É uma pena que esta edição tenha optado, como explica Álvaro Pons na introdução, pelas pranchas com menos texto, uma opção “atinada” porque a tradução é um “desafio quase impossível”. A meu ver, esta é uma visão totalmente errada, devedora daquela atitude que as pessoas quando se confrotam com uma tradução disparam de imediato com o “tradutore, traditore”. Se o texto original é forte, pessoal, expressivo, poético, então – e segundo, mais uma vez, uma lição de Walter Benjamin – ele existe precisamente para poder ser traduzido. A traduzibilidade de um texto não está do lado da facilidade, mas antes dos jogos vivos e complexos de uma linguagem para outra; a questão central não está no facto de ser “impossível manter o mesmo jogo” mas em permitir a criação de “novos jogos” e, dessa forma, mostrar ao mesmo tempo na tradução não o facto de estar errada, incompleta, ou “poderia ter sido assim”, mas na mesmíssima qualidade de ser uma opção e abrir-se a outras tantas intepretações. É por isso que um texto “clássico” deve ser traduzido para cada nova geração. Daí também que o editor tenha optado por deixar – de uma forma graficamente curiosa – o texto original num apêndice final. Dito isto, a tradução de João Ramalho Santos devolve em português aquela estranheza fonética-ortográfica do Herriman original, os mesmos jogos de flutuação de linguagem destas personagens, a konfuzam libertária da gramática. Haveria certamente oportunidade e habilidade para explorar aquelas pranchas em que os diálogos constroem outro tipo de força e presença do génio de Herriman.
Já muito foi escrito e repetido sobre esta séria. Chama-se “génio” a Herriman sem procurar onde esse espírito se encontra. Utiliza-se a palavra “surreal”, sem querer empregar esse adjectivo de um modo historicamente sustentável nem explicado (mas sim do mesmo modo como se contaria algo que nos aconteceu no autocarro). Insiste-se no “triângulo amoroso” sem ver que o amor não transita de criatura para criatura, nem que é perene. Falam-se das “paisagens mutáveis” sem que se apontem as ausências gritantes das culturas locais que supostamente Herriman admirava. Centremo-nos apenas no trio central (sem com isso derimir todas as outras memoráveis personagens, dos peixitos-gatitos a Joe Stork). Existem variadíssimas teorias de personagem, e Paul Wells cruzou três delas para procurar estabelecer uma grelha de apreciação de muitos dos formatos de relação entre personagens da animação. Por um lado, temos a tipologia de personagens da animação por Norman Klein, que se divide nos papéis do “Controlador”, do “Polícia” e do “Aborrecedor”, por outro a tipologia teórica da personagem na comédia em geral, de Henry Jenkins, que encontra os papéis do “Palhaço”, do “Tanso” ou do “Chato” (ambos os antagonistas cómicos do palhaço) e finalmente o “Falso”. Quer num caso, quer no outro, deparamo-nos sempre aqui com uma classe de personagens: a A, que está sempre no controle da situação, e que procura a satisfação dos seus apetites e desejos, mesmo sem histronismo (casos claros – em triunviratos – são os de Bugs Bunny, Popeye); outra B, que são aquelas que tentam impor princípios e regras aceites da sociedade, usualmente não o conseguindo e acabando por ser castigado por isso (Elmer Fudd, Olívia Palito?); e a C, a qual tenta também impor certas regras que ela mesma não cumpre (Daffy Duck, Donald Duck, Brutus). Um outro eco destas tríades poderia ser procurado na divisão freudiana da personalidade nas camadas do Id, do Super-Ego e do Ego. Pensando no caso particular de Krazy Kat + Ignatz + Pupp, como encontrar os papéis respectivos? Krazy Kat cumpre, sem sombra de dúvida, o papel do “Palhaço”, pois é elæ quem é a fonte dos trocadilhos, mal-entendidos, erros de percepção, trapalhadas e, quem sabe, da fluida composição em seu torno (os cenários mutáveis, as criaturas híbridas, a concentração de representantes de populações migrantes, misturadas e sempre à margem da “normalidade” da sociedade norte-americana), mas não possui um grama sequer do poder de controlador de um Bugs Bunny. Na verdade, os acidentes é que lhe acontecem: ainda que demonstre o seu maior poder ao aceitar receber os tijolos na cabeça como uma “carta de amor”. Quem erra? Krazy, ao recebê-los, ou Ignatz, ao insistir enviá-los? Por sua vez, Ignatz é o “Polícia” (over-reactor, no termo de Klein), o antagonista de Krazy, que lhe nega as piadas e as descobertas inusitadas, que procura impedir a felicidade delæ sem se aperceber, porém, que contribui para a mesma (são demasiados os episódios em que sucedem comédias de erros deste tipo para os contar). No entanto, na ordem da psicanálise, se Krazy é de facto a expressão desabrida dos desejos, Ignatz não consegue funcionar como força de pressão e correcção social, já que todas e quaisquer acções correctivas que faça apenas aumenta o desejo de Krazy... Finalmente, Pupp cumpre o papel de “Aborrecedor” e de “Falso”: no primeiro sentido, pois “empata” a relação, mais antiga, complexa, dúbia, entre Krazy e Ignatz (ambos já sonharam em casar, já partilharam uma cama, já se mataram um ao outro, já se perseguiram e perderam, etc.); no segundo, pois não muito diferentemente de Daffy Duck ou do Califa (de Goscinny e Tabary), ele quer ocupar o lugar de Ignatz, impondo uma lei por vezes arbitrária (a “prisão preventiva”, sem julgamento e sem, muitas vezes, crime, é constante). À luz da psicanálise, Offissa Pupp ocuparia o lugar do “princípio de realidade”, e é ele de facto quem tem o papel mais conformado com a realidade histórica – uma profissão, um sentido perene do que é correcto, a inscrição numa hierarquia e autoridade, etc. –, mas essa realidade é-lhe completamente alheia e fora do seu controle.
Este livro contém, então, uma selecção de 42 pranchas de Domingo (isto é, não as tiras diárias, mas os trabalho que ocupavam uma página inteira de jornal), e da fase já a cores (“chromatic gravy”, como reza um dos sub-títulos da série antológica da Fantagraphics), inclusive a última prancha de todas, datada de 25 de Junho de 1944, na qual Ofissa Pupp salva Krazy de se afogar num pequeno lago [aqui, a última imagem]. Se bem que seja também uma variação de situações anteriores, e mesmo tendo em conta que a página imediatamente anterior tenha mostrado uma situação similar no mesmo espaço, não podemos deixar de a ler retrospectivamente como uma espécie de testamento (e é o que faz Blackbeard na sua edição): estará Krazy, nos braços do polícia, mort@? Que olhar é aquele de Ignatz? Verdadeira preocupação, ao contrário do triunfo tantas vezes desejado? Podemos ler as gotas saltando à volta dos dois companheiros de Krazy como lágrimas? Para os amantes desta série, a colecção da Fantagraphics é obrigatória para um conhecimento aprofundado; mas esta “kolecção kompletamente restaurada” não o é de somenos: é mesmo uma outra forma de “rekuperação da mima-ória da bãndesgrenhada”, um estado puro das cores e da linguagem.
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