12 de junho de 2010

Jack Survives. Jerry Moriarty (Buenaventura Press)






Na Comic Art # 9 (Outono de 2007) surgiu um artigo anunciando a edição para breve de Jack Survives, uma mão-cheia de trabalhos de histórias curtas de banda desenhada de um dos mais interessantes, ainda que relativamente obscuro (em relação ao “grande público”, mas não a outros círculos) e de baixa produção, autores norte-americanos da modernidade, Jerry Moriarty. Os leitores conheceram-no através da mítica revista RAW, editada por Art Spiegelman e Françoise Mouly nos anos 1980, a qual se tornou num ponto de viragem importante que nasceu das cinzas dos underground comix, mais interessados em explorar temas de contra-cultura (sexo, drogas e rock’n’roll) do que na fabricação de projectos sustentáveis a longo prazo de banda desenhada (com a ressalva para um punhado de artistas maiores que sobreviveram), e desembocaria mais tarde na banda desenhada alternativa dos anos 90. Esse ponto de viragem foi também palco de toda uma série de experiências dirigidas sobretudo à estrutura da banda desenhada, ao experimentalismo gráfico e formal, à colação de novas ou pelo menos diferentes linguagens gráficas ao meio da banda desenhada, começando com o próprio Spiegelman, mas agregando muitos outros nomes. Moriarty, neste caso, está lado a lado com Richard McGuire no círculo da RAW, enquanto autor que, com a sua pouca produção, criou um trabalho de grande influência mais junto a outros autores do que entre o grande público (de certa forma como Saul Steinberg ou Kliban, todos eles “artistas de artistas”). Para além de um punhado de páginas publicadas (apenas) na primeira versão da revista de Spiegelman e Mouly, estes editores juntariam muito desse material num dos seus famosos “one shots” (o terceiro, datado de 1984), monografias de autores que lhe estavam associados e que não teriam a oportunidade de editar o seu trabalho noutras plataformas mais convencionais.
O artigo a que me refiro é na verdade constituído por um punhado de imagens (fotografias, reprodução de pranchas e telas de Moriarty, e outras curiosidades) acompanhado por umas quantas notas feitas pelo próprio autor: visita-se a sua infância, as suas primeiras influências e experiências artísticas e de banda desenhada, os primeiros trabalhos e aspectos mais recentes da sua obra. Esta nova edição (feita pela mesma equipa dessa revista) publica o material da RAW e mais algumas novas e inéditas pranchas, mas por razões que espero tornar claras, a exploração dos trabalhos apresentados na Comic Art são um importante complemento a este livro presente: são uma sua inflexão, expansão e material de interpretação.
De acordo com o artista, Jack Survives é composto por 35 pranchas, as quais lhe ocuparam um período de 5 anos. Estas são basicamente histórias curtíssimas, de uma ou duas páginas, em torno de uma personagem que conhecemos de modo elusivo, sem grandes introduções ou desenvolvimentos, e que parece poder preencher um espectro muito largo do “cidadão médio norte-americano”: branco, da classe média, vivendo nos anos 1940/50, com uma casa própria, vivendo com a mulher. Trabalha num escritório qualquer que terá a ver com imagens, mas nada mais é revelado. É cuidadoso, preocupado com a sua imagem de um modo antiquado e sóbrio, e os seus vícios são simples mas sempre explorados tangencialmente. É possível que viva num tempo flutuante, uma vez que tudo parece apontar para as décadas do pós-guerra, a acalmia suburbana dos anos 50, mas há pistas para outras décadas, desde os Cadillacs mal-comportados da década de 1960 aos ghettoblasters dos 1980... Ainda que recorrendo a informações externas, paratextuais, e expostas no(s) próprio(s) livro(s), aprendemos que Jack é uma espécie de amálgama do próprio Jerry e do seu pai: quando começou a criar estas páginas, Moriarty tinha quarenta anos, a idade que o pai tinha na sua memória mais recuada e viva, e é o encontro dessa idade que desencadeia essa fusão. Esta é uma informação importante pois funda com Jack Survives um estranho género: não é autobiografia nem heterobiografia (como no caso de David B. com L’Ascension du Haut Mal ou de Emmanuel Guibert com La Guerre d’Alan e Le Photographe), mas uma alterobiografia ou fusiobiografia... um retrato de Moriarty enquanto o seu próprio pai, ou do pai enquanto o seu filho. Na verdade, é ainda mais complicado do que isto, mas convidar-vos-ia a descobri-lo através dos trablhos em si e da leitura da prosa elíptica de Moriarty.
Todo e qualquer autor faz convergir experiências pessoais na sua obra, sem dúvida, mas temos de ter cuidado para não escorregar nas armadilhas do biografismo e pensarmos que são as (poucas e controladas) informações das suas vidas que nos providenciam as chaves de interpretação da obra. Estas apenas residem na própria obra e é por isso que na interpretação a temos de dissecar, escalpelizar, mortificar, no vocábulo de Benjamin. Mas esse é um gesto que, auscultando essa morte, faz emergir a vida ainda presente. Ainda assim, esta infomação torna-se importante – assim como as pistas visuais em que vemos Moriarty, representando-se a ele mesmo em vários trabalhos (telas), ora rasgando o plano de composição de uma qualquer imagem anterior que remete à sua infância ou sonho, ora no local e posição que deveria ocupar enquanto criança, ou ainda na série Sally’s Surprise [aqui ao lado, uma tela como exemplo], em que se mostra presente no corpo de uma rapariga.
Quer a edição da RAW quer a presente reúnem todas as pranchas intituladas “Jack Survives”, assim como desenhos soltos com a mesma personagem, pinturas, versões a cores, que tanto podem ser lidos como trabalhos preparatórios como extensões, variações ou correcções. Nada é definitivo e a própria paginação, que demonstra não existi uma ordems equencial absoluta de prancha para prancha, assinala essa negociação constante.
Chris Ware, na sua introdução, falta de uma certa “falta de estilo” (stylelessness) da pate de Moriarty, que lhe incute uma espécie de atemporalidade. Cita Edward Hopper, cujas escolhas cromáticas, composições descentradas e episódios aparentemente inócuos e silenciosos se aparentam com as imagens de Moriarty. O próprio Moriarty confessa ser essa uma das fontes do seu lado “conservador”, juntamente com Norman Rockwell: uma América que nunca existiu, utópica, de saudável e descomplexada felicidade urbana, negadora de tensões de vária índole. Mas por outro, fala de uma outra metade, “idealista”, nas quais agrega os nomes de Ernie Bushmiller, sobretudo na sua aproximação estilizada e seca de Nancy, e Philip Guston, que depois de uma fase abstracta se relançou no território da figuração procurando auscultar precisamente as tensões indizíveis dos Estados Unidos através de figuras provindo do universo dos cartoons. E é essa mesma tensão, por dizer, que se sente nas histórias de Jack. Apesar de haver um ou outro episódio mais directo (uma menção ao cinema pornográfico como forma de escape, as antipatias de Jack em relação aos mais jovens, culturas que não partilha, uma certa ideia de ateísmo e niilismo [daí que tenhamos incluído no vídeo a primeira história que conhecemos na totalidade]), a esmagadora maioria deles parece concentrar-se em pequenos faits divers domésticos e inócuos, os quais, no fundo, são apenas um finíssimo véu que pretende “dourar a pílula”. Essa ideia de véu sobre um objecto, de camadas, é mesmo palpável na qualidade das imagens...
Nesse texto, Moriarty confessa que é um artista que prefere ver as obras de arte em reprodução, revelando um gosto pela superfície chata e plana da tinta no papel. O que não deixa de ser uma afirmação paradoxal, tendo em conta que esta edição, feita com o uso de novas tecnologias de reprodução (de fotografia, digitalização, correcção de cores e impressão) que permitem ver as camadas de matéria nos trabalhos do autor. Estas pranchas são pintadas em papel Archer com tinta preta e acrílico branco. Há, portanto, uma aproximação técnica que deverá mais à pintura do que à esmagadora maioria das abordagens clássicas da banda desenhada. O que isto implica, e que esta edição contemporânea vem agora proporcionar em contraste à anterior edição de 1984, é que não vemos somente um alto contraste entre as linhas pretas sobre o fundo branco, mas vemos a espessura das tintas, texturas, os “fantasmas” de primeiras versões entretanto corrigidas, de ideias que se esfumaram e desviaram. Estas novas digitalizações-impressões transformam o plano gráfico desta edição com uma noção de “volume”.
Este desenho corrigido faz-nos recordar as técnicas de animação de um William Kentridge (sobretudo o seu trabalho com as personagens Soho Eckstein e Felix Teitlebaum), associando-se assim dois artistas que trabalham, como aponta muito bem Ware, à natureza da memória humana. Aliás, Ware aponta mesmo que a memória é a matéria por excelência da banda desenhada, o que é intrigante, interessantíssimo e que gostaríamos muito de ver desenvolvido pelo autor norte-americano. Dado o nosso interesse pessoal pelas associações possíveis entre a memória e a banda desenhada, tema recorrente neste espaço, as razões serão óbvias. Mas como funcionará em Moriarty? Como se associa a Kentridge? O que emerge dessa “correcção” visível? A nosso ver, a opção de um autor deixar visível todos os passos da constução da imagem, e não operar através das técnicas clássicas opacas, escondendo cada um dos passos (esboço a lápis, desenho, tintagem, etc.) é querer revelar que o gesto é sempre o mesmo, é querer tornar a expressão em acto comunicativo, e não acreditar num estado alcançável de pureza comunicacional (grande herança de Hergé). Com a devida distância entre o cinema de animação e a banda desenhada, que operam em pólos distintos no que diz respeito à relação com o movimento, estes dois exemplos pretendem também demonstrar uma espécie de memória interna da imagem. Se no caso da animação (Kentridge é o nosso exemplo, mas outros animadores recorrem a técnicas semelhantes, como A. Petrov, G. Schwizgebel, enfim, desenho sobre vidro, com carvão, areia, etc.) há uma espécie de permissão em transformar o tempo em espaço, deixando a sua impressão gráfica no tempo como uma memória literalmente bio-gráfica, na banda desenhada, que opera em múltiplas imagens singulares e congeladas, o que se torna visível é o depósito geológico dessa construção.
Também se poderiam falar de outros autores no campo da banda desenhada, com os quais penso existirem afinidades electivas e estéticas: Marco Mendes, Amanda Vähämäki, Vincent Fortemps... todos eles, de modos diversos, procuram deixar visível o processo de construção, as hesitações, as ideias recusadas, os desvios de direcção. Isto traz uma camada de complexidade às obras que não estava previsto na abordagem mais clássica e comercial da banda desenhada. Há pouco tempo deparámo-nos com um artigo que dava início ao seu trabalho através do queixume de que “críticos modernos” desprezavam a banda desenhada de aventuras; outra pessoa dizia que existe muita banda desenhada contemporânea que “não diz nada” e que é uma pena que ela não possa ser uma descomplexada “forma de entretenimento puro”. Não negamos que não o possa ser, nem negamos a importância (e até o valor e o nível de conquistas estéticas eventual) da banda desenhada de aventuras. Simplesmente, do nosso ponto de vista, estamos a viver um tempo excelente em termos criativos no que diz respeito à banda desenhada – já no campo de edição, de caminhos de divulgação, distribuição, etc. é outra a conversa –, dadas as liberdades existentes, a diversidade de autores e linguagens e temas, e a própria possibilidade de explorar o banal, o quotidiano, a mais humana e simples das vivências deve ser entendida como uma força, um avanço, e não como uma perda, usualmente apontada a meros desejos juvenis, presos a uma satisfação básica de pulsões por desenvolver.
São obras como as de Moriarty – para mais concebidas nos anos 80, mostrando uma constante ainda que menos visível história de bandas desenhada outras (utilize-se o adjectivo contrastante que melhor servir) – que revelam a existência de uma possibilidade de tornar este meio um modo de expressão tão complexo e variado como os demais, e que se abrem a uma exploração profunda e enleada entre a matéria de expressão da banda desenhada e os temas com que se pode defrontar e, consequentemente, que fazem pensar o próprio meio da banda desenhada, não só nos ajudando como nos obrigando a pensar com ele.
Nota final: agradecimentos a Nuno Franco, pelo empréstimo da edição RAW de 1980 de Jack Survives. O vídeo mostra não apenas a edição contemporânea, mas ainda materiais e comparações com a edição anterior.

3 comentários:

  1. Buenaventura Press KAPUT!
    RIP!
    no more!
    (só para dar a infeliz notícia)

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  2. Não é só a distribuidora que mudou? Então e os projectos restantes?!
    P

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  3. total kaput! é o que faz editar livros gigantescos!
    :(
    M

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