Este livro reúne um conjunto de oito ensaios, numerados e integrados num discurso mais ou menos contínuo, que pretede investigar uma possível perspectiva da emergência da banda desenhada moderna, isto é, destas narrativas em imagens a que hoje sem grandes titubeações chamamos “banda desenhada”, ainda que nos seja permitida uma visão mais ou menos alargada para encontrar textos e exemplos para além da mais corriqueira das percepções sociais e produções comerciais. Thierry Smolderen é um nome importante no círculo dos investigadores e estudiosos francófonos, ainda que não – a nosso ver somente, claro está – atinja os graus de complexidade de um Jan Baetens, um Thierry Groensteen, Christian Rosset, Fresnault-Deruelle ou Bruno Lecigne. Poderemos estar redondamente enganados, mas o discurso de Smolderen parece por vezes querer atingir uma conclusão absoluta que não é sustentável enquanto tal. Não poderemos negar a importância dos seus argumentos, entregar-nos à sua apreciação para dar início à discussão em questão, mas há algo de definitivo que parece ligeiramente deslocado numa área cujos estudos académicos e intelectuais se encontram num franco desenvolvimento actual, mas desenvolvimento ainda assim. Isto é, não há qualquer princípio que lhe esteja relacionado que se considere encerrado e indiscutível. Como qualquer arte, e mormente uma que começou a pensar-se a si mesma há relativamente pouco tempo (se nos “esquecermos” das tentativas que foram surgindo ao longo de 150 anos, e apenas atentarmos a uma mais continuada e integrada investigação), tudo está em aberta negociação.
Este livro centra-se em meia-dúzia de nomes fulcrais no desenvolvimento desta arte: William Hogarth, os caricaturistas ingleses do século XVIII, Töpffer e os topfferianos, A. B. Frost, e McCay e, caso mais contemporâneo, Ware. Alguns dos capítulos centram-se quase em absoluto nesses autores, explicando as suas forças e contributos máximos, ou procurando os seus imediatos ou longíquos herdeiros; outros dissolvem-se numa questão de maior amplitude criativa e histórica, mas perseguindo um qualquer prisma que se quer ver como contínuo. De certa forma, Smolderen está a operar uma história da arte informada pela filosofia, e recorda-nos sobremaneira a metodologia inventada por Aby Warburg (re-apresentada contemporaneamente por Georges Didi-Huberman), a de eleger “formas sobreviventes” que se mantenham em vários estádios históricos, procurando qual o aspecto “fossilizado” – isto é, qual a parte que se constitui enquanto forma propriamente dita, perene, reutilizada, reempregue, aparentemente imutável – e qual a sua “vivência” – ou seja, o valor com que se reveste em cada nova utilização, contexto, qual o espírito que reanima essa forma. Algumas dessas formas são a linha serpentina – apontada por Hogarth como princípio mesmo da arte, no seu The Analysis of Beauty (1753) e reencontrada em Rowlandson (numa das suas imagens mais famosas) ou McCay – ou a capacidade da narrativa em imagens poder criar situações auto-referentes.
O autor não deixa de apresentar toda uma série de considerações importantes e acertadas, como, por exemplo, a questão da poligrafia da produção do século XIX. Com Cham, Doré [caso charneira, que aqui se exemplifica], George Crukshank, Caran d’Ache, Alfred Crowquill, Thomas Onwhyn, Schreiber, George “Christophe” Colomb, Wilhelm Busch, há uma procura por, mesmo no interior de um determinado texto (história, álbum, aventura), não tanto um estilo, entendido como algo de objectualmente fechado, mas uma flutuação entre as estratégias visuais que melhor servirem o propósito visual do que se pretende transmitir ou criar. Mas é precisamente essa razão que leva a associação demasiado inflexível à polilinguística – tal como preconizada por Bakthin – pouco moldável. Isto é, mesmo estando em crer que a linguagem é o sistema semiótico secundário que melhor consegue tornar visível ou claro os outros sistemas (afinal, este é um blog que utiliza os textos verbais para comunicar), não acreditamos que todas as inflexões desses outros sistemas possam ser traduzidas e transmitidas pela linguagem, sem que haja perdas: apenas é possível uma mais ou menos conseguida, mais ou menos inteligente aproximação. Mas nunca um completar esgotado. Há por vezes momentos em que parece que isso é possível, de acordo com Smoldereren.
Por outro lado, se a contextualização histórica, quer falando de desenvolvimentos tecnológicos aplicados à vida quotidiana e às artes quer se discutindo certos princípios sócio-políticos (isto sempre no palco europeu ou ocidental, compreendendo que se deixa em suspenso todas as restantes áreas do mundo), é completa, existem outros aspectos que gostaríamos de ter visto desenvolvidos de uma forma mais central ou esclarecedora.
A importância de um livro deste tipo está em oferecer de um modo acessível uma perspectiva mais ou menos alargada das origens da banda desenhada moderna, e suas relações com a restante produção cultural. Smolderen dá atenção aos desenvolvimentos contemporâneos nos campos da literatura e no teatro (sobretudo no que diz respeito à cada vez mais sentida, na época, exploração da expressão, e emergência da da psicologia), de tecnologias da imagem (reprodução, fotografia, cronofotografia, técnicas pré-cinematográficas e depois cinematográficas), para depois iluminar os trabalhos de certos autores, mostrando como Töpffer respondia tanto a Hogarth como a J.J. Engel (um teórico da gestualidade teatral, do melodrama [aqui exemplificado pelo trabalho de von Goez]) como ainda a Lessing, derrotando as noções deste de encerrar cada arte à sua espectificidade mediática. Ou como Frost se havia informado na obra semi-científica de Muybridge, por exemplo [aqui em baixo].
Cada um dos temas mereceria uma resposta crítica específica, o que está fora de questão neste espaço, por razões óbvias, não sendo a incapacidade ou falta de conhecimentos deste crítico as menores. O livro é mais complexo e rico do que as reduções que aqui estamos a fazer. Não obstante, poderemos tentar responder a dois dos problemas (no sentido de questões filosoficamente fortes e que devem ser colocadas), mais sob forma de questionamento que de contestação. A nosso ver, é o cineticismo de Töpffer que se molda como um dos aspectos mais marcantes da obra do autor suíço. Mais, é a marca mesmo que o destacará de autores imediatamente anteriores, quer famosos como Romeyn de Hooghe e Hogarth, e os caricaturistas ingleses (Rowlandson, Newton, William Heath), quer também outras referências mais obscuras, como o sueco Pehr Nordquist ou o livrinho que o poeta holandês Willem Bilderdijk fez para o seu filho em 1807. Por cinetismo queremos dar conta de uma diminuição do intervalo temporal entre cada vinheta (aquilo que McCloud chamará de transição “momento a momento” e “acção a acção”; logo, necessariamente, uma partição das acções em micro-gestos, algo que apenas muito mais tarde surgirá com a cronofotografia, discutida por Smolderen), e consequentemente uma ideia de criar num mesmo plano de composição uma integração relativamente diferente, mais entrosada, entre texto e imagem, entre as múltiplas imagens e o ritual estético e de fruição individual que emergiria com o “álbum”. É claro que há muitos outros aspectos que são herança de autores anteriores, influências inegáveis, mas há ainda uma série de estratégias visuais em Töpffer que, não sendo inéditas em absoluto, são por ele empregues, convergentemente, num mesmo texto narrativo visual (planos aproximados, coordenação visual entre vinhetas, marcas de cinetismo, cruzamento de dois eixos espaciais paradoxais, etc.). Se bem que Smolderen demonstre as relações directas e intelectuais que Töpffer estabeleceu com a discussão estética do seu tempo (Baumgarten e Lessing, sobretudo), estas e outras dimensões não são continuadas.
Outra frente é aquela que é composta pelo artigo, aqui incluído como capítulo, sobre os balões, que já havia sido publicado na Comic Art # 8 (e será em breve publicado em português por nós, num contexto que atempadamente será divulgado, e que demonstra a escrita por fragmentos desta obra). Smolderen tenta demonstrar como os verdadeiros balões de fala têm apenas uma superficial relação com outros dispositivos formal e aparentemente iguais – a filactera medieval e a legenda das caricaturas dos séculos XVII-XVIII: os mais antigos não estariam relacionados com a enunciação de um discurso directo, e seriam limitados à indicação ora de um nome, um título, ou então apenas representariam uma espécie de “fala-tipo”, ou de charge alegórica, ou de tirada auto-referencial (e não comunicativa, dialogal), uma vez que não contribuiria para o movimento e transporte temporal de uma narrativa, uma vez que não eram empregues em séries sequenciais. Esse uso – representação de fala, construção de diálogo/personalidade e uso em narrativa sequencial – seria algo que apenas surgiria mais tarde. Smolderen encontra em A True Narrative of the Horrid Hellish Plot, de Francis Barlow [acima], gravura datada de 1862, “uma invenção prototípica do género”. Passando depois pela “linguagem das paredes” (redutoramente: a publicidade colocada nas paredes das grandes cidades), é o que lhe permite falar da camisa de dormir do Yellow Kid [cujo exemplo, aqui, é sintomático desses cruzamentos)]e desembocar na famosa tira de 25 de Outubro de 1896, em que surge o balão de fala. Ora, mesmo tendo em conta que Smolderen chama a atenção que não está à procura, através do estudo deste dispositivo, por argumentos de definição, e mesmo citando os exemplos de Doug Wheeler que precedem essa mesma tira, a questão parece no entanto ser pautada pela visão da contemporaneidade “para trás”. Isto é, é a ideia moderna de banda desenhada que informa a própria visão do passado, encontrando nas produções anteriores “estágios”, necessariamente incompletos, até chegarmos à pura natureza, que é a do nosso tempo. Mas porque não recuar à Idade Média, onde se encontram filacteras utilizadas no seio de vários textos em que a imagem assume uma importância central e movedora, como demonstra um excelente artigo de Danièle Alexande-Bidon (que também será publicado em português), que preparou a exposição La Bande Dessinée avant la Bande Dessinée, na Biblioteca Nacional francesa (e que se pode visitar online, aqui)? Se é uma questão de ser “sobre papel”, poderia de facto recuar a esses tempos. Se era uma questão de reprodução, também teria toda aquela produção de broadsheets e ilustração de imprensa estudada por David Kunzle e outros investigadores. E se nada disso fosse central como qualificador-limitador no estudo das instâncias em que ocorrem dispositivos que pretendem dar conta de texto escrito representando o que uma dada personagem representada visualmente afirma, então poderíamos recuar muito mais atrás, pois existem exemplos de ânforas gregas com animais falantes, ou graffitis em Pompeia com diálogos entre companheiros de copos... Não obstante, o texto de Smolderen, quer neste quer nos restantes capítulos, levanta questões que merecem o estudo sério daqueles que se interessarão pela banda desenhada de uma forma académica, quer para se inteirarem de certas fontes e argumentos quer mesmo para perceberem quais as frentes de contestação possível, e pistas para perspectivas alternativas.
Mas, se é esse o caso e natureza de Naissances, porque é que se resolveu utilizar na capa uma imagem (de Frederick Opper) representando um homem das cavernas a lapidar qualquer coisa? Não servirá essa imagem paa uma espécie de promessa de se falar dos exemplos mais recuados possível da criação humana para aí auscultar processos ou objectos que pudessem ser resgatados para uma história alargada da banda desenhada? Seja como for, tal como a total acronia de um ser humano junto a um dinossáurio, também haverá por este volume alguns saltos de fé que eclipsam outras cronologias e linhas de desenvolvimento igualmente pertinentes.
Apesar de Smolderen contribuir para uma correcção de que a banda desenhada seria uma invenção acabada nascida nos cadinhos da imprensa moderna e popular norte-americana – ideia propagada sobretudo nos Estados Unidos mas que se esvai e continua a impor numa certa tendência americanófila (repetindo a importância de Eisner nas “graphic novels”, na preponderância do mainstream pela conquista em várias frentes populares a outras linguagens, etc.) - a atenção é ainda concentrada num espaço relativamente reduzido e concentrado de referências. Encontrar-se-ão aqui exemplos das estampas de Hogarth, exemplo forte de um encontro entre a popularidade e a mestria artística, dos bilderbogen alemães e das imagens de Épinal, e muitos outros exemplos de artes gráficas que se cruzam, polinizam, repetem em contextos diferentes, reinventam. A lição importante terá a ver com uma certa desmistificação em relação à invenção totalmente original, genial, dos artistas individuais, e demonstrar – a seu modo – a contínua e aberta negociação entre a experimentação gráfica, artística e técnica, a auscultação junto ao público (curiosamente, ou não, pelas formas rapidamente encontradas de divulgação massiva, sobretudo o jornal/revista, mas também as estampas populares, as caricaturas em folhetim, etc.), e as relações com outras instâncias da criatividade e desenvolvimento social. Se bem que pelo formato e edição material se assemelhe mais a um livro de celebração do que de exposição e argumentação académica, a profusa inclusão de imagens serve para sublinhar a perspectiva e ideias de Smolderen, e não somente surgir como uma colecção de “pequenas maravilhas”. Nesse aspecto, Naissances de la Bande Dessinée é um contributo condigno para a discussão sem fim sobre as suas origens, que deveria ser sempre pautada por aquela frase de Wittgenstein, em Da Certeza: “É muito difícil encontrar o princípio. Ou melhor, é difícil começar no princípio. E não querer ir mais para trás”.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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