Como já o havíamos indicado noutra ocasião, uma das regras não-explícitas deste espaço é a de falar de livros com não mais do que dois anos desde que foram editados, numa procura algo paradoxal pela “novidade” sem com isso querer cair na mera divulgação dos escaparates. Sempre que se trata de trabalhos que remetem a tempos mais recuados, prender-se-á com uma edição que é importante em termos de recuperação da memória ainda fraca deste modo de expressão, ou uma edição crítica ou antológica de uma qualquer produção historicamente revelante ou um gesto recreativo da percepção/recepção de um determinado título. Uma mera reedição não é de todo o alvo da nossa atenção. Ora, a edição que nos traz aqui não se reveste de nenhuma dessas anteriores linhas de força, mas de quase um mero “repackaging”. A Casterman é uma das mais destacadas, importantes e maiores editoras de banda desenhada do espaço francófono europeu (sendo belga, ocupa parte substancial do mercado francês, naturalmente). Não quer com isto dizer que seja aquela que mais arrisque em termos de reinvenções de linguagem, de educação de públicos mais atreitos a linguagens hodiernas e dialogantes entre a banda desenhada e outras áreas criativas, e até mesmo de fundação de novas abordagens comerciais. E, apesar de haver algum grau de preocupação em manter viva a memória e o (seu) património, esses gestos poderão obfuscar outras visões alternativas. No entanto, não se lhe pode negar o papel histórico que foi tendo ao longo dos anos com alguns projectos, tendo dado a conhecer a um público alargado na Europa (francófilo) toda uma bateria de importantíssimos – quer se goste quer não – autores, das décadas de 1930 a 80: se num primeiro momento, é Hergé quem comanda a linha da frente, mais tarde, e graças à revista (A Suivre) (cujo dedos disparadores são de Étienne Robial, editor da Futuropolis e Métal Hurlant) e a associada e importante colecção Les Romans (A Suivre), surgirão os nomes de Régis Franc, Hugo Pratt, Peeters e Schuiten, Sampayo e Muñoz, Comès, F’murr, Francis Masse, Boucq, Bourgeon, Servais, entre outros, e o Jacques Tardi que aqui nos traz); nos anos 90 e actualmente, o seu papel de linha da frente talvez nasça do movimento começado noutros locais, como está patente na acusação de J.-C. Menu, mas a verdade é que com as suas colecções Sakka, Écritures e, mais recentemente, KSTR, tentam acompanhar pelo menos certas tendências modernas da banda desenhada, inclusive internacional.
Mas, voltando atrás, e precisamente pelo papel e destaque que esta editora tem no seu mercado particular, é-lhe possível também fazer apostas que têm a ver com a repetição da sua oferta de títulos através de estratégias que passam pelo “repackaging”, pela reformatação, associando cada um desses diferentes formatos a um nicho específico do mercado (sem que se entre na própria reformatação das pranchas, o que acontecia com colecções tais como J’ai lu, por exemplo, ou outras de bolso; quer dizer, esta estratégia não é nova, mas agora é mais rápida). A importância do formato para o que conduz é alvo de um estudo interessante de Pascal Lefèvre (“The importance of Being ‘Published’. A Comparative Study of Different Comics Formats”, in Comics Culture. Analytical and Theoretical Approaches to Comics, 2000). Os casos paradigmáticos encontra-se em títulos de grande sucesso comercial, os ditos “clássicos” e também outros títulos que, roçando a mediocridade, alcançam um grande público. Se nos primeiros casos, podemos olhar para o Corto Maltese de Pratt, que é alvo de variadíssimas edições (a preto-e-branco em formato de livro brochado, em álbum cartonado, a cores, uma nova colecção com dossiers introdutórios, uma colecção de bolso a cores, e agora esta nova versão BD/DT – idêntica à do livro aqui e discussão – , a preto-e-branco, mais barata, num formato pequeno), e se o próprio Tardi vê a sua colecção mais comercial, Adèle Blanc-Sec, com honras de álbuns de luxo por associação ao filme recente de Besson, nos segundos vemos o mesmo tipo de abordagens (livros da capa dura, em formato romance, “integral” ou pelo menos agregando vários volumes) a coisas inenarráveis como Le Tueur, de Matz e Luc Jacamon, ou... outras coisas. Como dissemos acima, a manutenção do património não terá nada de mal em si mesmo, mas é às custas do silêncio em relação a outros autores, títulos, atitudes, até mesmo da pertença do catálogo antigo da casa... Exemplos: Jean Teulé, Francis Masse, os quais, se foram recuperados, o foram por outras editoras mais atentas a linguagens verdadeiramente desviantes e modernas.
Retornando então ao livro em si, 120, Rue de la Gare é o segundo volume em termos de adaptação da banda desenhada com a personagem Nestor Burma da parte de Tardi (1988), mas é o primeiro romance (1942) com esse detective dos romances policiais de Léo Malet, ex-surrealista, e que partilha com Georges Simenon um certo gosto pelo bas-fond de Paris, fabricando um universo semeado por um “argot” por vezes intransponível sem ajudas externas, polvilhado de non-sense e cenas oníricas q.b., e ainda tintado por uma atitude de um cinismo quase absoluto, que apenas é impedido da derrocada final graças à existência de um humor negro incorrigível, aliando-se assim a um tipo de humor típico do policial francês, patente nos filmes de Clouzot igualmente, imitado por Hitchcock, mas que os americanos jamais conseguiriam imitar, fascinados que estão com os abismos da violência fetichizada e o culto do herói solar. Apesar da adaptação ser feita totalmente por Jacques Tardi, o escritor sempre acompanhou essa transformação, e até mesmo deu o seu aval, talvez sendo essa uma das razões pelas quais o seu nome surge nas capas dos livros, sem qualquer qualificação de especial, e até antes do nome de Tardi, o que não é habitual sequer nas duplas inseparáveis de escritores e artistas na Casterman (com a excepção de Une guele de bois en plomb, que Tardi escreveu sozinho). É neste livro que se faz uma apresentação da personagem a partir da sua libertação dos campos de detidos de guerra pela parte dos alemão nas II Guerra Mundial, o seu inusitado encontro com um amnésico que lhe lança uma misteriosa morada, a qual será repetida num também inusitado encontro com o seu colaborador de antes da guerra, lançando Burma numa situação que se vê obrigado a esclarecer, apesar de não se perceber muito bem qual o crime central ou a origem do problema... isto é, é menos um “whodunnit” do que um “who did what to whom”, tornando tudo muito mais complicado mas mais divertido, pois acabamos por desconfiar de toda e qualquer personagem que se atravessa à nossa frente (e de Burma), tal qual como nos filmes de Clouzot. Ainda na senda cinematográfica, há uma força superior nestes livros em relação à produção contemporânea. Nos nossos dias, sobretudo no cinema americano, todas as atitudes dos protagonistas têm de ser verbalmente expostas, onde a subtileza é atirada pela janela fora. Exemplo: é verdadeiro que The Departed é um dos melhores últimos filmes de Scorsese e que uma das mais pungentes frases é atribuída à personagem de Mark Wahlberg quando diz “My theory on feds is that they're like mushrooms: feed them shit and keep them in the dark”. Certo. Mas ao contrário da filosofia do “though guy” que tem de o afirmar o mais explicitamente possível, Nestor Burma não o é menos mas sem que se revele como tal... a forma como vai escolhendo as informações a revelar e a quem moldam-no como um detective frio e calculista, mais preocupado em perceber os contornos verdadeiros da “coisa” do que alimentar falsas alianças e amizades. Burma não tem aliados, mas antes peças que lhe convêm num ou outro momento. O que o torna mais gelado do que “cool”. O modo como reúne todas as personagens-peças num pseudo-Natal, e desmascara todo o enredo – ainda que passe por fintas, incriminando quase todos os convivas – prova-o.
Esta novela é um exemplo excelente daquela expressão “the plot thickens”, e tendo em cnsideração que o caso de desenrola e é investigado por Burma no período em que está em convalescença em Lyon, torna ainda mais as conturbadas pistas multiplicadas e falsas resoluções mais divertidas.
O estilo de Tardi é aquele que lhe era típido dos anos 1980, em que as personagens assumem um ar polposo, plástico (irmanável com outros autores da sua geração), contra cenários realistas e brumosos (o detective parece odiar a cidade de Lyon, onde se vê encafuado, amuralhado não só pelas regras da guerra mas pela neblina da cidade). As transições entre a vigília e o sonho são sempre paulatinas, e o leitor tem de ser atento para perceber o momento em que já caiu no interior dos sonhos do protagonista, os quais emergem lenta e insuspeitadamente, recuperando elementos que entretanto foram alvo da matéria narrativa anteriormente exposta... isto é, o autor procura que uma das funções do sonho – criar uma “ideia”, “organizar” o que se percepcionou no dia – seja partilhada entre protagonista e leitor. O equilíbrio entre as vinhetas com texto e as “mudas” é sempre de uma construção rítmica excelente, assim como o equilíbrio entre os diálogos e os monólogos interiores de Burma, o focalizador de toda a acção, como se espera numa novela policial. Outra forma de cumprir essas expectativas encontra-se nos retornos de vinhetas anteriores em novos contextos, não só como recapitulação da parte de Burma, mas muitas vezes como forma de repensar o mesmo evento ou desvendá-lo de modo diferente. A peça de resistência encontra-se na posição de Heléne, uma das peças centrais do puzzle, e muito parecida com uma actriz de então, levando a que surja reptidamente quer a imagem dela quer a da actriz de forma a confundir quem é quem ou que papel ocupa cada uma. Visualmente, a pesquisa de Tardi leva-o a incluir cartazes de cinema, políticos, anúncios publicitários, jornais, edições literárias ilustradas, e toda a quela parafernália de reinvenção histórica que tornam a experiência do livro mais deleitosa do que se despachasse o mesmo contexto visual com uma abordagem vaga. Por vezes, essa matéria toma contornos de “clin d’oeil” a extensões da obra: um cartaz fala de Le Cri du Peuple (jornal da França collabo, mas que nos recorda a adaptação que Tardi faria – décadas mais tarde – do romance de Vautrin), um dos detectives visitados (considerado “tonto”) tem o rosto de Malet, o magistrado Montbrison lê um volume de Edgar A. Poe ilustrado por Nicollet, relembrando o trabalho de Jean-Michel Nicollet, artista amigo de Tardi, o nome do autor surge como um perseguido do exército alemão, etc.
Essa consciência passa por vezes pela própria personagem, a qual se cruza ou emite ela mesmo o slogan da sua agência, “Nestor Burma, o homem que põe o mistério em K.O.”, assumindo totalmente os contornos de folhetim da sua actividade e vida.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. Este volume foi recebido em conjunto com a edição na mesma colecção/formato que Le Grand pouvoir du Chninkel (1988), de Van Hamme e Rosinski, uma pobre derivação de outros textos anteriores, d’O Incal a 2001, passando pelo Senhor dos Anéis; um inenarrável Du plomb dans la tête, de Wilson e Matz; e A Balada do Mar Salgado (ed. livro, 1975) de Hugo Pratt, cuja releitura neste formato em nada vem reescrever as suas fraquezas nem as suas forças. Aliás, se o “polar” de Tardi se presta a esta maior intimidade do livro de bolso, todos os outros, inscritos numa banda desenhada que pretende maior espectacularidade e lições de moral, é o álbum a sua província mais correcta.
Comprei este livro em Paris em Janeiro de 1989. Tinha 18 anos e foi com este, e com três Savards(Dick Herisson), que entrei na idade adulta da BD e me tornei um confesso admirador da escola franco-belga (depois de em miúdo ter devorado todos os Hergé, Goscinny e Morris disponíveis em português). Hoje, acho que mais do que a Casterman, é na Dargaud (Poisson Pilote) que encontro alguns dos autores mais interessantes, que, dentro desta escola, têm inovado, tais como o Blain, Trondheim, Bravo, etc.
ResponderEliminarAlguns desses autores contemporâneos - dessa escola mais classicista, narrativa, clara - foram já aqui discutidos neste espaço. Obrigado pelo comentário...
ResponderEliminarPedro Moura
Gosto de ler este blog é bastante interessante.
ResponderEliminarConfesso que não sou muito fã do Tardi, mas mesmo assim gosto de coleccionar os seus formatos tipo jornal como o l´étrangleur (Nestor Burma , Adèle Blanc sec), L´ hebdo de la bd ( Griffu) e putain de guerre, já referenciado neste blog.
A melhor bd que li do Tardi é « Le Démon des glaces» é muito engraçado, é a única obra do Tardi juntamente com o 120 rue de la Gare que tem lugar cativo na minha Bedeteca.
Blaise.
Caro Blaise,
ResponderEliminarObrigado pels suas palavras. Quanto a Tardi, pergunto-me, genuinamente, se é uma questão de geração. Quem lê o "Tintin" na infância-juventude, poderá querer relê-lo, mas quem não o fez provavelmente não será movido a descobri-lo tão facilmente como outros títulos que ainda terão uma qualquer pertinência. Arriscar-me-ia a dizer que Tardi é um deles... Para quem não é fã, o Blaise tem acompanhado vivamente o trablho dele! Ainda assim, se bem que conheça alguns livros melhor do que outros, e haja mesmo alguns títulos que nunca li (Griffu), sou parcial a gostar mais daqueles livros sobre a 1ª Guerra Mundial, destandado "La véritable histoire du soldat inconnu".
Até breve,
Pedro