2 de julho de 2010
Art in Time. Unknown Comic Book Adventures, 1940-1980. Dan Nadel, ed. (Abrams ComicArts).
O editor desta nova antologia, Dan Nadel, referindo-se à anterior experiência com Art Out of Time, explica que este volume não pretende ser um seu complemento ou continuação, mas antes um “companheiro”. Se em relação à outra publicação o propósito de Nadel era “ampliar a discussão sobre a história e possibilidades da banda desenhada [e...] aquilo que ficou de fora das várias histórias ‘oficiais’ da banda desenhada”, desta feita pretende focar o próprio meio em si, como veículo físico (atentando aos empregos da cor, da linha, etc), como plataforma de trabalho (focando histórias de autores mais conhecidos por outros títulos ou personagens, como no caso de John Stanley ou Bill Everett), e como domínio dos géneros (explorando exemplos profundamente enraizados neles). Ou seja, não se estará aqui a perscrutar a obscura história gigantesca da banda desenhada dos Estados Unidos à procura de pérolas que tenham ficado esquecidas pelo brilho ofuscante de outras referências, mas antes à procura de exemplos que, apesar de menos brilhantes, contêm em si um qualquer valor que Nadel compreende como digno da nossa atenção.
Alguns destes autores e trabalhos têm expostas, de uma forma muito visível, na sua superfície, as razões pelas quais não pertencem àquela linha de obras recuperadas pela tradição, pela referência histórica, pela memória da banda desenhada. Ora pela fraca arte, ora pelas narrativas derivativas ou nem sempre bem geridas, e sobretudo pela sua natureza profundamente enraizada no seu tempo, de um modo que não as torna sobreviventes para além dessa circunstância – daí ser uma “art in time” –, há sempre um domínio qualquer de fraqueza que lançara estas obras no esquecimento. O que o editor nos pede, porém, é um esforço suplementar. Em cada um dos pequenos textos de introdução a cada autor ou história, Nadel apresenta uma meia-dúzia de linhas, algumas analíticas, que nos fornecem os instrumentos e as razões da escolha, de forma a que compreendamos esse gesto e nos apercebamos do que pode ser (ainda) recuperado. Apenas a título de exemplos, não se trata de uma reintegração intelectual, como sucede com a obra de Masereel, nem “fora”, como com a de Hank Fletcher (aliás, Nadel não se pauta por géneros únicos, como ocorre em algumas antologias de banda desenhada de segunda categoria, como Supermen! The First Wave of Comic Book Super Heroes; ele percorre-os a todos), ainda que sublinhe o factor ou o prisma da “aventura” comum a todo o material aqui reunido. Trata-se mesmo de enfrentar a história da banda desenhada norte-americana com tudo aquilo que ela tem de cultura popular inscrita no tempo e insustentável com o avanço permitido pelas sucessivas conquistas sociais. O racismo, o machismo, a apologia da violência estão aqui presentes, mas também a ingenuidade hippie, e a confusa amálgama das culturas e dos espiritualismos associados à geração de 1968-69 de São Francisco. Também um entendimento do típico anonimato ou mero trabalho da “indústria” é exposto, ao discutirem-se autores que ou são obscuros (por vezes em extremo, ainda que esta questão seja discutível, uma vez que existem artigos, fanzines e livros de história que mencionam estes autores – simplesmente não estão na “linha da frente”) ou que não assinavam os trabalhos ou cujas obras noutros locais eclipsavam outros. É um olhar sem desculpas sobre estas obras obscuras, mas o mesmo permite, talvez, uma pequena reinscrição, uma imagem ligeiramente diferente, talvez mais ancorada na realidade, do que uma atenção exclusivamente marcada pelos “Mestres”, a qual aliás leva a uma visão ahistórica e desequilibrada.
O livro está dividido em quatro secções, cada qual dedicada a um prisma em particular, mas isso não impede o editor de vogar por entre eles, chamando a atenção, através desse prisma, para essa mesma dimensão num trabalho apresentado numa secção anterior. Encontrar-se-á, portanto:
Uma primeira secção intitulada “Demand and Supply” (“Procura e Oferta”) mostra-nos dois exemplos de comics no seio da indústria comercial e genérica, cujos autores tentavam, de uma forma ou outra, providenciar com uma visão mais pessoal. Em primeiro lugar temos duas histórias do obscuro Harry Lucey, dois casos de Sam Hill (de 1950), um detective algo bruto e com um rosto parecido com o de Robert Mitchum. Em segundo, um super-herói criado por H[arry]. G. Peter (mais famoso por desenhar a primeira Wonder Woman/Mulher Maravilha, de Marston), e chamado Man O’Metal (três episódios consecutivos de 1942), cuja origem e poderes poderão eventualmente parecer mais ridículos do que o habitual, precisamente por força do hábito em relação a outras personagens mais famosas. Misturando os géneros do super-herói e do detectivesco, e com uma trama onde o recurso ao deus ex machina é imperioso, e onde parece que as surpresas e continuidade da história são imparáveis e infindáveis, o interesse reside no seu estilo gráfico, misturando nitidez de figuração, contornos grossos e composições dinâmicas, o que influenciaria sobremaneira Jack Kirby (nestes anos ainda com o seu desenho “esquálido”).
A segunda secção, “Where they were drawing from” (“Onde encontraram inspiração?”), foca numa mão-cheia de artistas muito diversos, mas tornando-os como uma espécie de “mediadores”, ou “vasos comunicantes”, quer associando-os a autores anteriores (fontes) e posteriores (descendentes), complicando ou matizando a história das fontes, uma das linhas ainda hoje mais fortes da investigação da banda desenhada. Assim, temos o Golden Lad (1946), um super-herói adolescente com uma história tão cómica como heróica, da autoria de Mort Meskin, que se encontra numa linha que vai de Milton Caniff-Noel Sickles e de Joe Simon-Jack Kirby para desembocar em Steve Ditko e Alex Toth (de uns herdando o chiaroscuro e o diálogo com o cinema, por um lado, e o dinamismo da acção, por outro, e aos outros oferencendo perspectivas cinematográficas radicais – parece que Meskin estudou cinema e viu 15 vezes Citizen Kane/O Mundo a seus pés, o qual trouxe à oferta visual um grande espectro de experimentação –, conceitos estranhos, um sentido integrado do design, incluindo a utilização de padrões e cores).
Pete Morisi também parece estar muito próximo de Toth, mas não atinge a candura e souplesse desse artista. Inscrever-se-ia na mesma família de autores que se poderia apelidar de “linha clara americana”, no interior da qual se procurava a maior clareza possível na figuração... O que aqui é apresentado seu é um detective duro, de pala no olho e cigarro no canto da boca, que dá pelo nome de Johnny Dynamite (duas histórias de 1954), devedor de toda a literatura policial do costume e com algumas soluções gráficas curiosas, mas sem grande lustro, a não ser o cinismo com que abraça a violência necessária das suas tarefas.
Sam J. Glanzman está presente com um homem das cavernas – literalmente, uma vez que é um sobrevivente Neanderthal – cujo nome é, acreditem ou não, Kona (história de 1962). Nadel associa-o às ilustrações pós-vitorianas de Joseph Clement Coll, e sublinha o dinamismo e a figuração poderosa das suas personagens, aparentando-o a Joe Kubert. Apesar de ser mais uma dessas figuras que cabem no saco com Tarzan, Ka-zar, Conan, Sheena, e outros, e apesar ter um limitado conhecimento da gramática do inglês contemporâneo, Kona revela-se uma espécie de filósofo cheio de Angst, com comentários sobre a natureza violenta do homem, a incompreensão da guerra, e observações sobre a violência do homem em comparação aos restantes animais. As pranchas são também extremanente curiosas, pois Glanzman procura toda a espécie de combinações e arranjos gráficos para poder compor esta história, claramente parte de um arco maior.
Um autor relativamente afastado desse território “pulp” é Michael McMillan, influenciado por alguns dos artistas do movimento Hairy Who e criando histórias que cruzam a alucinação poética contemporânea com os géneros de outrora – ficção científica, super-heróis e aventuras – para criar estranhos objectos que teriam todo o lugar nos circuitos alternativos de hoje. Chegaram mesmo a aparecer em publicações como a Funny Aminals (“corrigido” para Funny Animals na nota deste livro), Arcade e Short Order Comix. Não fosse o seu interesse não se prender somente a essa área criativa, encontraríamos mais trabalhos de McMillan, mas fez pouco e esporádico trabalho. Aparenta-se com alguns trabalhos de autores dos anos 80 de algumas bandas desenhadas em circuitos mais estreitos, com ideias e presenças fortes, mas que encontrariam noutros caminhos artísticos maior apelo.
Encontra-se nesta mesma secção a pièce de résistance de todo o volume, na nossa opinião: Adventures of Crystal Night, de Sharon Rudahl. Esta autora pertenceu à geração de artistas femininas associadas ao movimento do underground comix dos anos 1960-70, participando em projectos como Wimmen’s Comix, Snarf, e Bizarre Sex. Em 1980 publicou este one shot comic-book, pela Kitchen Sink, uma espécie de ópera espacial que reúne preocupações sociais, políticas, ambientais, raciais, etc. Apesar do desenho solto, quase despreocupado (Aline Kominsky e Trina Robbins participam da mesma dscontracção, mas Rudahl publicaria um livro maior recentemente, A Dangerous Woman), o resultado é uma história densa, que atravessa décadas através de uma cadeia bem estruturada de nós narrativos e elipses, que parte dos pressupostos da ficção científica para criar um comentário ao seu próprio tempo (como, aliás, quase toda a ficcção científica, melhor ou pior). No entanto, como escreve o próprio Nadel, o problema foi ter publicado este trabalho depois dos tempos gloriosos do underground e antes do advento a ferro e fogo dos alternative comics; aparecendo num interregno de atenção e companhia, acabou “abaixo do radar crítico”. Aqui está recuperado.
Segue-se a secção “It’s All in the Routine” (“Faz parte da rotina”), revelando trabalho de autores mais conhecidos por outros territórios em géneros mais espartilhados e dentro das convenções que lhes pertencem. O que se encontra aqui é mais da ordem da “curiosidade” associada a esses autores, ainda que cada um deles revele formas muito particulares de expandir o género em que operaram.
Em primeiro lugar, temos duas histórias de John Stanley (mais famoso pelas suas histórias da Little Lulu/Luluzinha e outras séries infantis) de terror (ambas de 1962), uma desenhada pelo próprio e outra por Tony Tallarico. Se bem que ambas se pautem pelo “final-choque” expectável (e cujo desfecho é apresentado na página da direita, tirando um pouco do choque permitido pela splash page final), o que importa reter é a forma como em tão curto espaço/tempo Stanley consegue construir um ambiente adequado e personagens “redondas” correspondentes.
Incluem-se duas histórias de Matt Fox (de Adventures into Terror e de Uncanny Tales, ambas de 1953), mais famoso pelas suas capas da Weird Tales. As histórias em si nada têm de surpreendente, e roçam mesmo o demasiado previsível, e até o ridículo, mas a forma como preenche cada vinheta – sobretudo na primeira história – com texturas carregadíssimas de traços paralelos e estratégias visuais antiquadas – mantendo sempre a mesma distância em relação às personagens – e outros pormenores, tornam-no um estranho achado. Essa primeira história é quase como se fosse uma imitação de Alexandre Alexeïeff, se bem que Nadel aponte antes a ilustração vitoriana e o cinema mudo.
John Thompson é conhecido pela edição do título Yellow Dog, um jornal/revista de banda desenhada do underground de 1968, mas não era um dos melhores autores presentes. No entanto, é a publicação em 69 do seu Cyclops Comics que o editor recupera. Trata-se de uma espécie de Promethea avant la lettre, no sentido em que é uma história que tenta fazer convergir as tabelas de correspondência de livros místicos (anjos, pedras, o zodíaco, os escritos bíblicos, várias personagens historicamente relevantes para o misticismo ocidental) com a história possível dos ciclopes. É uma amálgama confusa desses princípios, apresentados com soluções gráficas quer próximas de Crumb (a figuração das personagens, a criação de volume com pontinhos) quer de Moscoso (formas livres psicadélicas), com composições quase de design de posters de concertos, recorrendo mesmo aos alfabetos grego e hebraico e outros sistemas inventados, mas sem atingir jamais a clareza eventualmente alcançável desses outros autores (ou a verdadeira alucinação que lhe permitiria outra força). Nadel explica como foi a dislexia de Thompson que o colocou na senda da banda desenhada como forma de comunicação liberta das regras da linguística, e talvez seja aí que reside a razão desta massa amorfa de imagens e texto. No entanto, é precisamente essa falta de forma que o torna hipnótico e ressonante.
A quarta e última secção é dedicada às “Expansive Palettes”, nas quais, de uma forma ou outra, os autores reunidos demonstram as capacidades exploratórias e expressivas que se conseguem atingir com os comic books, no que diz respeito à cor e às texturas, mesmo a preto-e-branco.
É por demais a forma como o trabalho de Pat Boyette (uma história da Charlton Premiere de 1967) recorda a figuração de Alex Toth, já várias vezes citado aqui. Mas a razão disso é explicada por Nadel, que o coloca como discípulo desse artista e ainda de Steranko; mais, o facto de “Children of Doom”, uma dessas histórias de ficção científica admonitórias à la Ray Bradbury, ser escrita por Denny O’Neill (sob pseudónimo), torna essa malha de referências ainda mais apertada. O aspecto sublinhado pelo editor é o uso generoso de retículas e os apontamentos de cor de quando em vez. Se bem que estejamos longe de uma experimentação ou níveis de expressão permitidos pela cor, no interior da banda desenhada, de um Conefrey, Mattotti ou Breccia (cada qual a seu modo), o uso de Boyette não deixa de ser curioso, para mais no quadro limitado das técnicas de impressão da sua época.
Johnny Mack Brown é o nome de um cowboy originado num actor real de westerns semi-obscuros, e as histórias dos comic books com o seu nome são da autoria de Jesse Marsh (este exemplo é de 1950). Este autor não tem a capacidade de oferecer às suas personagens uma expressividade ou dinamismo muito felizes, e mesmo a história em si tem algumas deficiências de ritmo e carácter, mas “os locais, as paisagens e o design eram [as suas forças]”, segundo Nadel; já nas palavras de Toth (outra vez!), este autor “era o epítome da arte da banda desenhada da costa oeste, pela sua forma descomplicada de contar as histórias, através de vinhetas e páginas equilibradamente compostas”. O editor sublinha a cor das cenas nocturnas, em que as personagens são iluminadas pelo brilho da fogueira, mas pergunto-me porque é que o protagonista é iluminado em todas as cores e matizes dessa luz e o companheiro “mexicano bronco” está todo amarelo... Uma questão de estratégia narrativa-visual ou uma opção de representação política, até então “invisível”?
Bill Everett é obviamente conhecido pelos “seus” Namor e Daredevil/Demolidor, mas a história aqui escolhida (“Tidal Wave of Terror”, da revista Venus, de 1952) também mostra painéis cobertos pelas formas voluptuosas de violentas ondas às ordens de uma personagem fantástica. Herdeiro da tradição realista dos ilustradores norte-americanos da sua era, Everett seria igualmente influenciado pela dinâmica cinética e caricatural permitida pela banda desenhada, procurando misturas de estilos que melhor transportassem as histórias (basta contrastar a heroína desta história com a vilã). A história em particular poderia desaparecer esmagada por tantas outras, mas de facto uma rápida vista de olhos demonstrará o prazer e trabalho que o autor deve ter atravessado para construir estas vinhetas pejadas de texturas aquáticas, onde as personagens se perdem de um modo quase luxurioso.
A última história desta secção, e do livro em si, é da autora Willy (Barbara) Mendes, retirada do seu comic book de 1971 Illuminations. Trata-se de uma fábula hippie, fazendo convergir temáticas e elementos como a entrega à natureza, a importância da imaginação e da acção, o amor livre, a espiritualidade da família e o misticismo, e uma forte dose de fantasia informada pelo budismo, ou outras fontes não-ocidentais. Nadel aproxima esta história, “Johnny, Julie and Harpo” ao trabalho de Thompson incluído em Art in Time, mas ao passo que esse autor “tenta explorar e perceber a linguagem e a simbologia, [o trabalho de] Mendes é uma tentativa de explorar a nova paisagem mental e física que se tornou (brevemente) disponível no anos 1960”. Se bem que Nadel não o cite directamente, este trabalho de Mendes recorda-nos uma espécie de percursor do Frank de Jim Woodring: os padrões e texturas criados pelo alto contraste de pretos e brancos, cobertos de tramas e num equilíbrio entre expansões de preto aqui, áreas a branco ali, e um paciente trabalho de volumetria, subsumido aos conteúdos onírico-espirituais da história, aparentam-se com a exploração de Woodring, ainda que este último tenha conseguido atingir o nível de mestria plástica que se sabe. Há um pequeno momento em que as personagens de Mendes estão prestes a experimentar um balão, e os pássaros que volitam à sua volta convidam o leitor a colori-lo... Uma forma curiosa de expandir a fantasia hippie, o objecto “passivo” do livro e ainda procurar formas de interacção mais entregues entre leitor e autor.
O propósito do livro é assim cumprido da melhor forma, não estabelecendo uma linha condutora totalmente coerente ou subsumida a um só princípio organizador, estanque, indiscutível, mas precisamente deixando em aberto toda a porosidade possível, avançando sobre as fraquezas e falhanços, providenciando dessa forma um corpo bem mais heteróclito e dinâmico. Não nos quer parecer que o objectivo de Nadel seja conquistar todo um público amplo, se bem que o livro em si seja um objecto que não convida qualquer diletante à sua compra. Pensamos que será mesmo o de apresentar uma forma alternativa, mais livre, estranha, nada consensaul, em procurar dimensões outras, negligenciadas (e talvez negligenciáveis?) da história da banda desenhada, muitas vezes uma arte do seu tempo.
Nota: agradecimentos à editora pelo envio do livro.
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