Por um lado, é algo estranho falar de “obra-prima” em relação a Alec, tendo em consideração que se trata de uma colecção de muitas, muitas histórias curtas (algumas de apenas uma página), publicadas ao longo de quase 30 anos (de 1980 a 2002, para ser mais preciso, excluindo-se por um lado o The Fate of an Artist, de 2006, por ser a cores, mas incluindo-se depois aqui 35 páginas inéditas), em diferentes condições, formatos, circunstâncias e até mesmo contextos no que diz respeito à realidade social da banda desenhada, enquanto meio, e em termos mundiais. Há ainda diferenças visíveis no estilo, no humor e nas abordagens à matéria, e até quem sabe da “qualidade”; já no compromisso do autor, não. Por outro, que outra palavra singular empregar quando a leitura de um só fôlego nos permite uma experiência que não corresponde àquela da sua leitura compartimentada, por mais separáveis e autónomos que sejam esses livros? É essa experiência que nos faz considerar Alec, The Years Have Pants, talvez em conjunto com From Hell, a colaboração de Campbell e Alan Moore, a sua obras-prima.
Um tema recorrente nas discussões sobre a banda desenhada, quer no interior dos territórios dos fãs quer, sobretudo, noutros círculos, e que infelizmente ainda não se dissipou, e que é explorada num momento deste livro (pelos lábios de Moore) é o facto da banda desenhada ainda não ter criado a sua “Mona Lisa” ou “Em Busca do Tempo Perdido”. Ora, já noutra ocasião havíamos discutido o grave problema de misturar géneros, modos e linguagens, e a necessidade de criar instrumentos e focalizações que tomem em consideração as obras que se produzem no interior de um campo artístico (não que as comparações entre meios seja impertinente, mas terá de procurar um equilíbrio correcto). Campbell, sobretudo no livro/capítulo How to be an artist (um dos mais belos tratados de criação que conheço escritos por um artista, e que nada tem a ver com fórmulas, fama ou sucesso financeiro, mas sim com os mais profundos imperativos da criação, tanto raros como intransmissíveis), tem a oportunidade de mostrar o que pensa sobre o próprio meio, sobre quais pensa serem os autores e obras maiores deste campo, mas poderá passar a considerar – impedindo-o a humildade que apenas se espera do artista – a sua própria obra como parte desse panteão em contínua reformulação e movimento.
Alec é, a um só tempo, um dos títulos percursores da banda desenhada autobiográfica (os autores do livrinho Egoístas, Egocéntricos y Exhibicionistas. La autobiografía el el cómic. Una aproximación, s.d. [2008] irmanam-no a, com correcção, Edmond Baudoin; o próprio Campbell distancia-se de Harvey Pekar, talvez o ur-percursor, mas as razões desse distanciamento escapam ao foco deste texto presente) que viria a marcar a produção em língua inglesa dos anos 1990, como é também uma sua inflexão muito especial, quer dado o seu escopo amplo no tempo e na rede em torno da vida de Campbell quer ainda pela sua própria natureza. Na verdade, nem todos os livros são propriamente do ciclo “Alec”. Se alguns dos livros, sobretudo os primeiros, se podem considerar antes como uma pequena incursão pela auto-ficção (em que um autor se reinventa enquanto personagem de um universo narrativo fictício) ou pela biografia velada (alterando nomes e circunstâncias, à la Fabrice Neaud no seu Journal), tendo Alec Macgarry como o seu alter-ego, outros, os últimos, assumem abertamente “o pacto autobiográfico” (Lejeune) que embrulha numa só entidade autor, narrador e protagonista. Isso poderá levar ao perigo de nos julgarmos íntimos do autor empírico, mas esse é um dos riscos da auto-biografia íntima (Joe Matt, Marco Mendes, Fabrice Neaud, Matt Konture, etc.) e é uma responsabilidade crítica não nos deixarmos tentar por isso.
No que diz respeito ao escopo, é relativamente fácil detectarmos os seus contornos. Ler Alec na sua íntegra (esta até à data) significa testemunhar a vida de Campbell desde a sua meninice (em analepses esparsas ao longo da obra), até à sua vida de estudante de artes, de jovem adulto vivendo os anos áureos do punk e do novo inconformismo face ao crescimento económico do novo mundo ocidental [mas um punk ternurento à The Boys Next Door], a primeira maturidade, o casamento, a paternidade, a gestão familiar, a fundação de uma auto-editora, a mudança para a Austrália, o crescente gosto, cultivado, exigente, medrado, pelos vinhos, o flutuante reconhecimento artístico, as relações criativas, e o lento mas inexorável caminhar para uma maturidade que começa já a ser tintada pelo receio das certeiras decrepitude e morte (em After the Snooter e The Dance of Lifey Death, este último, confessemos, tendo sido o primeiro livro lido com atenção por nós de Campbell, e a impressão que então causou não se dissipou e é até mesmo a fonte de influência de algum trabalho contínuo e outros futuros)... sempre pontilhado pelos pequenos episódios ditos “slice-of-life”, como o vocabulário da filha, a espera pela abertura de uma garrafa que se adivinha superna, o fabrico de uma nova cadeira, a salvação de um crucifixo de ser varrido, ou o ressonar de um colega.
Já a natureza obriga-nos a um escavar mais cauteloso. Campbell faz parte daqueles autores a que temos vindo a chamar de “desenhadores calígrafos”. Em rigor, deveria ser colocado na lista dos seus percursores na banda desenhada, e estipulando ainda que tal aproximação deve tomar em conta o trabalho gráfico de ilustradores tão diversos como Joseph Pennell, Edward Ardizzone e Paul Hogarth (este último foi autor de um livrinho muito interessante, intitulado The Artist as Reporter, que se associa a uma das reflexões sobre os artistas-jornalistas por Campbell em “The Court Sketcher”, parte de After the Snooter, e que é o garante de ancoramento dessa pesquisa e inscrição). De novo, recordemos a condição para essa classificação: o perfeito equilíbrio entre a linha da escrita e a do desenho, onde o pulso, os gestos, a memória física, a respiração é precisamente a mesma, respeitando-se o invisível contínuo entre a figura e a letra desenhada, ambas da mesma mão (nada tem isto a ver com o ter sido a mesma pessoa, nem pertencer ao mesmo texto a ler, mas sim com um plano de afectos apenas existente nas dobras estéticas do trabalho).
A estratégia, digamos, comunicacional (temos algum receio desta palavra, mas não tem apenas a ver com o seu programa de expressão, estético, gráfico, estrutural, e cai mesmo na categoria do discurso transmitido) de Campbell é relativamente homogénea: as páginas apresentam-se em grelhas de 3 x 3, com vinhetas ora do mesmo tamanho ora de dimensões negociáveis (a primeira é por vezes ocupada totalmente pelo título), com legendas narrativas por cima, num tom externo, explicativo, omnisciente e retrospectivo, e na vinheta desenrola-se como que uma punchline ou ancoragem gráfica do que havia sido descrito. Pode ou não conter uma fala directa, e às vezes essa situação desenhada é um contraponto, irónico, humorístico, ao que havia sido dito pelo narrador. Como se existissem duas faixas a decorrer ao mesmo tempo e criando uma textura mais densa. Esse movimento contrapontístico, até no seu sentido musical, que implica duas harmonias independentes, é corroborado pela estrutura narrativa global, ou melhor, por aquilo a que se dá o nome de “escrita”, a escrita de Campbell. O autor, trabalhe nos seus próprios projectos pessoais e intransmissíveis (Alec, Bacchus), em adaptações ou abordagens mais ou menos conseguidas (The Black Diamond Detective Agency, The Amazing Remarkable Monsieur Leotard), sobre personagens/marcas registadas de companhias comerciais (Batman, John Constantine/Hellblazer), consegue arrastá-los todos para o fantástico lodo campbelliano, pejado de um humor muito próprio. Nesse sentido em particular, ele está muito próximo do seu companheiro, o “magus” Alan Moore, menos no que concerne às estruturas perfeitas, simétricas e intricadas do escritor de From Hell, mas antes no que diz respeito à sua capacidade da integração de todo e qualquer trabalho num longo e unificado poema onde reencontramos referências comuns, imagens e temas recorrentes, fraseados duplicados. Música.
Ao contrário da maioria dos autores norte-americanos (ou de língua inglesa) das autobiografias em banda desenhada, Eddie Campbell não opta pela exploração, centralizada e dramatizada, de um qualquer evento traumático (aqui entendido no sentido de algo que não faz parte da experiência comum de um cidadão das nossas sociedades seguras do ocidente), que se exploraria como o cerne de uma vida, o fundamento de um sentido, nem que este se confunda com o do âmago de um livro. É isso o que ocorre em autores como Pekar e Spiegelman, Miriam Katin, Bernice Eisenstein, Debbie Dreschler, Alison Bechdel, Al Davison, Craig Thompson, e tantos outros, e até mesmo Chester Brown, Jeffrey Brown, Joe Matt ou Julie Doucet, menos angulosos nesses “eventos”. Um cancro, a morte dos pais, o Holocausto, sobrevivido ou experienciado, primeiros amores impossíveis, abusos sexuais, droga, outras doenças, etc. Não quer dizer que parte das angústias dessas experiências extremas, ou outras do mesmo calibre, ou outras da mesma condição, não surjam em determinados momentos na longa vida de Alec/Eddie, mas não são elas quem ocupa a zona central do palco nos seus livros. Campbell parece partilhar antes de uma sensibilidade mais europeia (Baudoin, Trondheim, Goblet), em que a narrativa voga de facto por acontecimentos mais microscópicos, quotidianos, partilháveis, com outros seres humanos, na sua mais mediana existência (a verdade é que parece estarmos a atirar Pekar para esse campo “melodramático” por atacado, quando as suas histórias curtas não mergulham nesse território tanto como os livros. Incorremos nas generalizações).
A abordagem de Eddie Campbell aos seus amigos, parentes, conhecidos, não é ligeira ou instrumental, nem elogiosa nem acusatória. A velocidade com que entram, ocupam os seus lugares, saem, não corresponderá com exactidão à experiência, referencial, empiricista, do autor, mas corresponde sem dúvida à experiência humana da forma como as relações pessoais respiram, sem quaisquer ritmos ou melodias exactas e programadas. No entanto, há toda uma ternura pelas pessoas que por estas páginas passam, sejam elas necessariamente recorrentes (desde o amigo de longa data Danny Grey – a primeiríssima palavra do livro – à mulher e aos filhos – objecto, talvez, do tijolo de amor que o fecha) ou sejam absolutamente passageiras – um veterinário que salva uma cria de um cão, a vizinha sobrevivente do Holocausto da sua infância, um bêbado com quem se cruza num festival de banda desenhada... Essa ternura nota-se pela forma como ele estende o seu braço e os inclui nos episódios que resolve resgatar da sua experiência pessoal e transformar em matéria partilhável. Sejam esses episódios compreensivelmente importantes ou marcantes, ou até mesmo impertinentes e mesquinhos, farão parte da parte da vida que Eddie Campbell resolve dar-nos a ver, e, portanto, à presença dessas pessoas ele torna especial, há uma responsabilidade e autoridade que as molda para sempre.
Daí decorre o grande perigo da intimidade do leitor sobre a vida que o autor resolve partilhar na obra com a vida do autor enquanto pessoa real. É o que leva as pessoas a perguntar “isto foi mesmo assim?”. É claro que essa exposição e o acto de ultrapassar a linha (ficcional?) entre a obra/ texto de ficção e a vida propriamente dita pode levar a gestos curiosos e belos... um momento há em que Campbell fala de um vinho de Colares que recebeu de um seu leitor português (não seremos indiscretos aqui), tão apreciador de vinhos como da sua obra. A coincidência e depois descoberta que esse acto desperta leva o autor a tornar esse acontecimento num brevíssimo episódio nesta obra, cuja existência de tinta sobre papel é agora indelével.
Se bem que possamos falar de algumas experiências na banda desenhada idênticas ao género epistolar (penso sobretudo em La Diagonale des Jours, entre Baudoin e Tanguy Dohollau, ou noutro patamar em Leben? Oder Theater? de Charlotte Salomon), é compreensível que as comparações não possam ser feitas de modo directo e sem qualificações. No entanto, em alguns aspectos, a “escrita” de Campbell faz-nos recordar precisamente a experiência que se tem na leitura das cartas de certos escritores, cujas reflexões dirigidas a amigos ou familiares se desdobram a partir de acontecimentos diários para revelar pensamentos e posicionamentos e colocações profundas perante a vida, e até mesmo a arte. Pensamos aqui em Kafka, Flaubert, Virgílio Ferreira. A citação de colegas, a procura de uma construção da sua própria tradição de banda desenhada na qual se vai integrar, ora na continuidade ora na diferença, as pausas que faz em relação aos momentos que a posteriori se apercebe terem sido de charneira na sua vida, as interrupções ao fluxo narrativo através de imagens simbólicas, metáforas visuais mais ou menos complexas, aqui e ali um trecho em que as fronteiras entre a suposta realidade (sempre, claro está, filtrada) e a ficção ruem, a estruturação de um episódio em torno de uma canção, de uma anedota que lhe contaram, de notícias que vagueiam... são as matérias várias que compõem a vivência.
A autobiografia (e todos os outros sub-géneros ou inflexões que lhe estão associados) faz parte também do processo testemunhal. O autor é uma testemunha cujo discurso constrói a verdade a que nos dá acesso. Ou melhor, mais importante do que o facto de ser construído e dito, é o facto de ser endereçado a alguém, como na correspondência. Há duas dimensões que importam salientar aqui. Em primeiro lugar, é evidente que estamos afastados de um processo testemunhal afecto à reportagem ou ao ensaio (Sacco, Squarzoni, Sue Coe), mas toda e qualquer autobiografia transmite uma experiência, uma vivência e, por vezes, uma vida mesmo (nos seus casos maiores, como Campbell, como Baudoin), que se constrói de dentro para fora, formando um texto, e que apenas aquela pessoa poderia testemunhar (e isto não é da ordem da obviedade, mas do justo, do exacto). É aí que encontramos a razão, etimológica mesmo, da palavra “testemunha”, uma prova, uma vontade. Em segundo lugar, tem a ver com a dimensão discursiva do acto testemunhal. Segundo uma lição de Shoshana Felman, este acto é uma “prática discursiva”, um verdadeiro “acto”, ou processo, e não uma “teoria”, algo formulado e fechado, que se transmite independentemente do discurso, do veículo ou das condições (de resto, impossível). É sob essas condições que compreendemos a inscrição necessária de um autor/protagonista no centro dos eventos que tece à sua volta, não por uma razão solipsista ou narcisista – por isso, aquele título espanhol citado acima, mesmo que irónico, é falho de razão em relação a Campbell (e outros autores fortes da autobiografia) –, e o estilo muito próprio deste autor – os “rabiscos” – se torna de uma justeza absoluta, apontando não para um discurso que se deseja (talvez/por vezes ilusoriamente) fechado (próprio desde a ficção juvenil à Tintin e filhos ao modo problematizado de C. Ware), mas para um contínuo processo.
O autor faz acompanhar cada um dos livros com pequenas introduções, e o volume em si tem notas sobre a proveniência e alterações feitas sobre os trabalhos. É curiosa a comparação das edições originais, as primeiras edições em livro e este mesmo volume, para perceber quais essas alterações, as mais das vezes apenas retoques num rosto, numa expressão. Se há casos em que a expressão das personagens muda drasticamente, apenas no seu contexto particular poderíamos entender a amplitude dessa alteração, mas estamos em crer que o autor, havendo-a alterado, considerará o último gesto o mais exacto e justo. Como dissemos, o desenho de Campbell é caligráfico, e também afirmámos como ele se altera em termos de estilo, inscrição e forma de livro para livro, sendo mais acabado – na sua qualidade de devaneio, de assinatura rápida, de incompleto, de trabalhado enquanto esboço – nas histórias que se pretendem organizadas de um modo mais discursivo (How to be an artist), mais rápidos e quase de apontamento nas histórias curtas, adaptações, citações de Shorts e Little Italy. Porém, poderíamos dizer também o contrário, na verdade, já que Grafitti Kitchen se apresenta nesse estilo mais esboçado e veloz, só que nesse caso talvez se prenda com a ligeireza (no sentido de vivência, trabalhos curtos, relações curtas, viagens de trás para diante, mas também no de Calvino, de concentração narrativa). E, ainda corrigindo a primeira generalização, After the Snooter é composto por fragmentos de uma, duas páginas e apresenta o traço mais acabado de Campbell. Talvez porque, nesse caso, o “Snooter”, uma espécie de símbolo pessoal daquela maturidade chata que se instala nas vidas e que prenuncia a morte, se não física e real, pelo menos moral, de curiosidade para com a vida, de hausto, faz com que o autor/protagonista seja confrontado com esse medo da morte. Há uma gravidade que se instala, mas sem jamais, isso nunca acontece em Campbell, descambar no melodrama. As taças de vinho erguidas com prazer tornam isso impossível.
Só nos resta erguer a nossa, à saúde de Alec.
Nota final: a mancha vermelha da capa é apenas um acidente, feliz, na nossa cópia.
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