6 de agosto de 2010

Racines. Pierre Duba (Six Pieds Sous Terre)


(na continuidade do texto anterior) O livro de Duba, pelo contrário, é um livro cuja presença física e impacto gráfico se faz sentir desde as primeiras páginas (e até antes, pelos materiais-satélite). O programa narrativo pretende-se suspenso, para que a matéria visual passe à frente. Que deslize, lenta e espessa, como mel.

No entanto, permitam-me começar pelo dessarranjo dos textos “iniciáticos” (não, não é mau uso da palavra: é que alguns destes textos não se propõem simplesmente como apresentação, mas como estatutário de leitura). Quer um texto de introdução na badana quer um posfácio pretendem descrever o livro de Duba como um livro que não contém uma narrativa – “[Duba] deixa-nos, ao longo das cenas, possibilidades narrativas, movimentos, acções que se encadeiam e se misturam em turbilhão até ao seu inelutável fim”. Uma leitura apressada levaria eventualmente a concordar com essas palavras, e a pensarmos que estamos perante uma cadeia mais ou menos livre de associação de ideias visuais estruturadas na sequencialidade própria da banda desenhada) que em nada preveria a organização narrativa. Numa exposição muito recente de desenhos de Jorge Queiroz, lê-se no catálogo como o autor cria “Exuberantes ficções alheias a qualquer narrativa ou guião”. Mas se no caso do artista português a acumulação de materiais e técnicas, figurações e modos do desenho concorrem de facto para um estilhaçamento dos elementos mínimos da narrativa (por exemplo o “equilíbrio, desequilíbrio, reequilíbrio” de Brémond), no caso de Duba não se pode dizer o mesmo. A ausência de um texto contínuo, descritivo, ou até mesmo revestido de uma carga poética significativa não implica necessariamente a ausência de uma narrativa. E existem elementos contínuos e representacionais em Racines que nos permitem – sem quaisquer incertezas ou hesitações – avançar numa narrativa: temos um homem, uma máscara, uma criatura “assustadora”, um quarto que se enche de água e cuja enchente o metamorfoseia, uma passagem a um outro nível de existência, uma queda no “informe” (já lá iremos)... Perante experiências como The Cage, de Martin Vaughn-James, ou algumas das experiências de Le Coup de Grâce ou Abstract Comics, encontraremos fragmentações, esboroamentos, demolições, ou pesquisas de alternativas ao programa narrativo da banda desenhada, mas não neste livro de Duba.

A força de Duba está porém na beleza visual e material que explora essa história que nos conta, ainda assim dificilmente reduzível a uma sinopse clara (e deverão ler o texto de Domingos Isabelinho para encontrar pistas decisivas dessa beleza e fascínio). O protagonista de Racines aparenta ser um escritor, e um escritor em crise: o facto de ser retratado de costas, ou com o rosto incompleto, no centro de uma pilha de papéis acumulados (rascunhos eliminados?), e depois com a boca apagada por um traço branco leva-nos a pensar na ideia das palavras falhadas, na impossibilidade de comunicar com rectidão a poesia que se deseja expressar. Depois de deixar manuscrito (lápis sobre papel) a ideia de “matar alguém que existe em mim mesmo”, uma imagem mostra o mesmo protagonista cindido, após o que monta uma máscara ritual, selvática e tenebrosa, com a qual parece desencadear duas acções: conjurar uma criatura fisicamente aparentada com a máscara e fazer com que o quarto se encha de água caída de um radiador (e é magnífica a forma como se adia este conhecimento, suspendendo-nos como a gota na incerteza da representação). Depois disso, talvez se trate de uma fuga ou de uma viagem, ou de uma transformação do protagonista.

É preciso dizer que existem citações espalhadas ao longo do livro que são colhidas de um livro de poemas do poeta norueguês Tarjei Vesaas (que desconheço e penso não estar traduzido em Portugal). O “monstro” conjurado vomita sobre o protagonista letras (manipuladas digitalmente), letras as quais foram um turbilhão que surgirá bastas vezes ao longo da “aventura” (a palavra não nos parece descabida). Aliás, há letras que se escapam das folhas de um livro lido pelo protagonista, há letras que flutuam no ar e nas águas, há letras vomitadas pelas criaturas que vão surgindo, há letras que coalescem em nuvens abafadoras, há letras que rondam e se transformam no pó que ocupa todo o plano das vinhetas e das pranchas do livro, como se elas pudessem invadir totalmente, ameaçando-a, a obra do próprio Duba (tratar-se-á assim de uma “angústia da influência”?).

Estas indecisões e ligeireza (no sentido de súbito, inapreensível, mutável) dos sentidos impedirão, então, uma leitura mais limitada e regrada (da parte do crítico), e consequentemente a limitação de uma abertura livre do leitor (dito comum)? Não. Mas penso que a promessa, logo à partida, de total liberdade tende a confundir o que significa uma leitura/interpretação. O conceito de Umberto Eco de “obra aberta” é bastas vezes citado, mas as mais das vezes desvirtuado no seu propósito. Eco pretendia apontar para uma certa descentralização permitida, ou criada, pelas obras de arte contemporâneas, que as libertavam do espartilho ora proposto pelos próprios autores ora imposto por alguns dos seus leitores, usualmente aqueles que exerceriam uma certa autoridade (a Academia, portanto, ou as Ordens, Guildas, etc.). Num outro escrito mais tardio, intitulado Interpretação e Sobreinterpretação, Eco como que procuraria corrigir as más apreensões desse seu conceito. Para além da intenção do autor (difícil de determinar e muitas vezes enganadora) e da do leitor (eventualmente pautada por interesses extra-literários), existiria a única “intenção” passível de interrogação verdadeira e permanente, a saber, a da própria obra.

É nesse sentido que se terá de caminhar. Trata-se menos de querer impedir a interpretação livre de um qualquer leitor, mas desejar que esse leitor exerça a sua liberdade sobre aquela obra em particular, e não empregá-la, numa falsa ideia de liberdade, como trampolim para chegar a um fim pressuposto. A interpretação deverá criar-se sobre algo existente, elementos presentes, analisáveis, objectiváveis e partilháveis, e não meras impressões vagas que apelam a uma ideia de sensibilidade superior (da parte do crítico, do professor, etc.). Mesmo que estes elementos sirvam para auscultar os limites do analisável, para perscrutarem as zonas abissais do silêncio, dos não-ditos, conseguindo erguer instrumentos com uma força de pressão suficientemente forte para arrancar algo de concreto do “buraco negro” dessas zonas indescerníveis das obras artísticas e que fazem delas a ressonância fulcral e viva que faz da arte arte. Como um voo de papagaio de papel, cuja elegância apenas é possível pelos movimentos gráceis mais seguros que a mão exerce sobre o fio. É preciso prendê-lo para que voe. Liberte-se o fio e o voo é totalmente livre, mas cedo significará a queda ou a perda.

Para além da influência literária directa e citada de Vesaas, uma outra eventual fonte, ou pelo menos outro cotejamento possível em torno das afinidades, é entre a viagem final do protagonista de Duba e o Virgílio de Broch. No romance do escritor austríaco, A Morte de Virgílio, que visita os últimos dias do poeta latino em Brundisium, o último e quinto capítulo, intitulado “O regresso”, distintamente curto mas densíssimo (quase cinquenta páginas compostas por meia dúzia de parágrafos) e sob o signo do elemento do “éter” (depois dos quatro elementos fundamentais), esse capítulo, dizíamos, retrata as impressões mentais de Virgílio num espaço-tempo que já não é o da vida mas ainda não é o da morte. Encontramo-nos com ele num espaço intervalar alongado em que tudo está suspenso e aberto e passível de metamorfoses mútuas. De certa forma, aquelas ligações entre percepções, memórias, ilusões, sonhos, reflexões, a que aventámos a propósito do livro de Piquet, encontra na prosa intricada e belíssima de Broch a mesma redução (não é a palavra certa; transfiguração absoluta?, essencialização?) a um mesmo heteróclito plano. Nesse superno capítulo, Virgílio mergulha no absolutamente informe: aquele fundo do universo onde se exerce a violência de todas as formas abertas umas às outras, a revisitação possível a todos os níveis da existência, do mineral ao vegetal, do animal ao humano até chegar ao espírito, e finalmente o Verbo, “inconcebível e inexprimível pois estava para lá da linguagem” (última frase do romance). “Informe” não significa “disforme”, mas sim “passível de todas as formas”. O livro de Duba parece por vezes querer explorar, no interior dos seus instrumentos, esse fundo informe. A presença de águas turvas, de sombras, de letras flutuantes, de sangue, parece concorrer para essa ideia. A transformação dos personagens dúbios, a presença de uma boneca infantil que parece enviar para um momento antes das palavras, as palavras do autor que apontam para sinestesias, as citações (supomos) de Vesaas que falam de palavras que não conduzem à compreensão racional, são ainda outros elementos do mesmo movimento.

No mesmo capítulo de Broch, fala-se dos olhos como “estrela impossível de perder”. É por eles que tudo penetra e tudo se compreende, mesmo que não passe pelas palavras. Quando Augusto pergunta a Virgílio qual o objectivo da sua poesia, o poeta responde ser “o conhecimento da morte” e, mais à frente, explicita ainda mais: “fixar a vida, para nela encontrar a alegoria da morte”. No momento da passagem derradeira de Virgílio, são os seus olhos e não as palavras – apenas as de Broch tentam moldar/traduzir/criar as impressões do poeta – que auscultam o informe. Racines quer dizer “raízes”, claro, e há uma óbvia “descida” (catábase?) na ficção de Duba: um autor que se deixa levar por águas que lhe invadem o espaço após ter colocado uma máscara e que através de uma barca alcança um mundo subterrâneo, oculto, atrás do tempo (mostrado aqui na imagem claríssima de se esconder do outro lado do vidro de um relógio de sala). Esse fundo subterrâneo é uma ilha (a de Böcklin?) embrenhada e vários signos mais ou menos óbvios e sequenciais: uma torre, um novelo, uma boneca, uma hoste de coelhos, uma floresta embrenhada, um mineiro escavando (raízes, precisamente), uma metamorfose e um monstro de pedras ou troncos (um golem?), uma tensão entre a violência e o sexual (Eros e Thanatos), uma acção de despejo. Como alguns filmes de Bergman, os símbolos não têm vergonha de se mostrar o mais claramente e despojados possível, pois eles sabem que por mais significados “fechados” e “de manual” que lhe possam ser associados e empregues (como pela crítica, claro), haverá sempre uma margem que escapa ao programa racionalista.
A força de Racines não está tanto na destruição da narrativa, que não acontece, mas sim na criação de uma indiscutível narrativa, descritível, elementar, mas cujos objectos permitem variadíssimos níveis de implicações, que nenhuma leitura poderá jamais esgotar.

5 comentários:

  1. Caro Pedro Moura, venho convidá-lo a si e aos seus leitores a visitarem o nosso projecto bedéfilo (e a passarem por lá de vez em quando!), projecto que por enquanto está a ser testado em “formato blog”.

    O convite estende-se às vossas críticas e sugestões:-)

    http://mr-klunk-e-o-senhor-klaxon.blogspot.com/

    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Olá a ambos.
    Uma primeira visita está feita. Outras se seguirão, para perceber a relação entre as vossas personagens, que seguramente ainda terá muito para desvendar.
    Abraços,
    Pedro Moura

    ResponderEliminar
  3. Olá gostaria que nos ajudasse na divulgação da Jornada de estudos sobre Romances Gráficos que ocorrerá na UnB:

    programação


    dia 2 de setembro de 2010

    9h às 12h

    O passado no futuro: opressão de gênero e resistência em Persépolis, de Marjani Satrapi e Aya de Yopoung, de Marguerite Abouet e Clément Oubrerie

    Vania M. F. Vasconcelos

    Para além do diagnóstico: traçados de subversão em Epiléptico, de David B.

    Ludimila Moreira Menezes

    O discurso autobiográfico nos romances gráficos Retalhos, de Craig Thompson, e Epiléptico, de David B.

    Maria Clara Dunck Santos

    A poética do detalhe: retratos da resistência em Maus e Persépolis

    Larissa Silva Nascimento

    Valsa com Bashir: experiência, memória e guerra

    Pablo Gonçalo Pires de Campos Martins


    14h às 15h45


    O silêncio dos imigrantes: de Rawet a Shaun Tan

    Gabriel Antunes

    A construção de um país em Crônicas Birmanesas, de Guy Delisle

    Humberto Brauler Rodrigues Pereira

    Identidade e migração: uma leitura de O chinês americano, de Gene Yang

    Stella Montalvão

    16h às 18h

    O que realmente importa? Memória e subjetivação da arte em Le combat ordinaire

    Laeticia Jensen Eble

    A identidade em quadrinhos: a construção de si em Persépolis, de Marjane Satrapi, e Fun Home, de Alison Bechdel

    Ligia Diniz

    Memórias fraturadas: passado, identidade e imaginação em Borges e Mutarelli

    Pedro Galas Araújo

    Brasília, 2 de setembro de 2010.


    Local: Auditório Agostinho da Silva – Departamento de Teoria Literária e Literaturas – Universidade de Brasília.


    Inscrições até 31/8/2010 pelo e-mail:

    jornadaromancesgraficos@gmail.com

    Vagas: 30

    Mais informações:

    http://gelbcunb.blogspot.com

    ResponderEliminar
  4. Inaugura hoje na Biblioteca Municipal de S. João da Madeira a exposição WORLD PRESS CARTOON, Top 50 – 2010 onde estão reunidos os melhores cartoons de todo o mundo.

    A exposição é composta por três grandes áreas: desenho de humor, cartoon editorial e caricatura.

    O cartonista António Antunes fará uma visita guiada a todos os presentes.

    Esperamos por si.
    Obrigada.

    ResponderEliminar
  5. Já lia mais qualquer coisa no ler BD...

    ResponderEliminar