Um dos exercícios mais producentes nas abordagens críticas a seja que objecto for é o da comparação, o da análise dupla a um mesmo tempo, mesmo que essa comparação seja apenas tornada possível pelas circunstâncias superficiais e nada mais levasse, ou até permitisse, a que esse cotejamento se pudesse dar.
Os dois livros que aqui trazemos não poderiam parecer mais afastados um do outro. Seguramente que era possível ainda encontrar outros exemplos de trabalhos que estivessem afastados ainda mais, desde que num mesmo espectro. Neste caso, o espectro comum é o do campo artístico e social conhecido por “banda desenhada”, e ainda no seu interior uma banda desenhada que tem algum tipo de programa narrativo, de exploração da expressividade dos desenhos como elemento concorrente na criação de sentido, de fundação de actos de leitura, e por aí adiante. Estamos, portanto, quer num caso quer no outro confortavelmente encaixados em mais do que alguns dos factores correntes deste campo. Por outras palavras, não será confuso imaginar que ao entrarmos numa livraria ou numa biblioteca que encontraríamos estes dois livros na mesma secção generalista, que ao folhearmos antes da leitura os coloquemos no mesmo mundo.
Se quiseremos acreditar na redução, mesmo que seja apenas para os efeitos deste momento, que a banda desenhada é um encontro ou compromisso ou equilíbrio entre uma parte da narrativa – “contar histórias”, mesmo que se procure fazê-lo através de imagens – e uma parte da imagem – explorar as suas capacidades expressivas, mesmo que estruturando-as numa narrativa – o livro de Piquet parte da primeira parte, tal como o de Pierre Duba parte da segunda. Em termos brutos, são estas as duas grandes tendências que se poderiam eleger como os gestos inaugurais deste campo, se bem que o da narrativa, o da legibilidade, seja bem mais visível e premente. Claro está que existem outras forças em jogo, desde as do design às da associação comercial, da pesquisa poética à exploração expressiva dos materiais, mas fiquemos por estes dois campos mais imediatamente perceptíveis. Por exemplo, no interior do mercado francófono, em que Piquet e Duba se inscrevem, estas duas tendências são notáveis quer em trabalhos crassamente comerciais e de baixa qualidade (por exemplo, as famosas séries XIII e Le Tueur vivem mais pela narrativa do que pela imagem, ao passo que muitos outros autores se cultivam mais pelo pin-up do que pela qualidade literária), quer em círculos mais alternativos e/ou independentes (como no caso de uma dicotomia que se poderia criar entre os autores originais de L’Association, cuja pesquisa está mais do lado da narrativa, da construção e desenvolvimento das personagens e implicações emocionais, e os da Fréon, mais dados à experimentação visual... claro está, essa equação é incompleta, ou mesmo errónea, se der a entender que os primeiros autores não procuram soluções de imagem – com David B., Trondheim e Sfar isso é impossível! – e que os primeiros nada querem saber da narrativa – como desmentiriam os projectos de Frédéric Coché, Deprez e Fortemps).
Não estamos, pois, perante um livro em que o desenho seja colocado em segundo plano, procurando apenas uma básica utilização narrativa, um papel subsumido a algo que lhe é exterior, ou coisa que o valha. É tão simplesmente um reequilíbrio de forças, e a maior, em Les enfants de l’envie, encontra-se na sua narratividade. O desenho de Piquet é feito de um modo tão delicado – apenas linhas que servem para moldar as personagens e os espaços – , e ainda aliada a uma potencialidade de registos vários (alguns dos quais análogos na forma mas não no papel dos “chibi” da mangá), que recorda na verdade toda uma série de exercícios formais da animação mais estilizada, onde a linha impera (Foldés, Deitch, Cavandoli, McLaren, entre muitos outros). Mas no campo da banda desenhada/ilustração também tem os seus parentes diversos: Gébé, Feiffer, Sempé. Mas nada de nervoso; é algo de plástico, redondo, maleável. Uma assinatura elegante. É como se fossem apontamentos de estruturas suficientemente claras e móveis para o transporte da novela em si. Esta visita um tema relativamente “mudo” nas letras francesas, mas muito premente noutros locais do mundo: a herança que a estadia das bases militares norte-americanas, depois de um conflito, deixou e cujas repercussões se fazem sentir a nível social, cultural, político mesmo, mas sobretudo, de forma mais emocionalmente envolvente e dolorosa, em termos de filhos feitos, sejam eles admitidos ou bastardos.
O livro de Piquet na verdade explora um segredo. A personagem principal, um jovem artista da cidade provinciana de Laon, vive obcecado com a ideia da “América”, ou melhor, uma Nova Iorque que conhece mais através dos dispositivos imaginários a que sempre teve acesso, passando pelo cinema, claro está, mas sobretudo pela memória que lhe foi, a um só tempo, incutida e ocultada pela mãe, uma vez que ele é supostamente filho de um tal de “Henry”, soldado norte-americano que por ali passou e se envolvera com a sua mãe. Dessa forma, Basile – uma mancha negra que atravessa visivelmente todo este mundo gráfico de estruturas frágeis de vidro e linhas – encontra na experiência de muitos outros rapazes da sua terra uma forma de inscrição, uma espécie de irmandande entre bastardos e abandonados, e, dessa forma, uma ligação forte com o factor que mais importância dera àquela terra. Na verdade, o segredo familair revelar-se-á bem mais complicado, novelesco, e bem mais doloroso para a mãe, mas esse fantasma tem um peso sobre Basile que não é negligenciável. Na sua vida adulta, o “agora” deste livro – apenas acedemos a todas as outras informações através de analepses ou de projecções falseadas –, as experiências de Basile aumentam-lhe a ansiedade, que se repercute na maneira como se se relaciona com as mulheres, como age sobre a sua arte (telas e telas sobre paisagens urbanas nova-iorquinas), e as brevez amizades na cidade, levando-o cada vez mais perto da resolução, que se desvenda como um tremendo desvio e derrota de todo o imaginário de uma vida. Mas, ao mesmo tempo, essa crise e trauma permitir-lhe-á dar início a um outro caminho alternativo a todos os níveis, eventualmente mais feliz.
Essa flutuação livre de recordações de várias personagens, memórias reconstruídas (nunca a partir de uma perspectiva interna às outras personagens, nomeadamente a mãe de Basile, mas construídas a partir das palavras ditas por elas a Basile, que as molda a seu modo), projecções partilhadas pela população local, imagens “enciclopédicas” (retomo um termo de Fresnault-Deruelle) que parecem querer trazer um qualquer grau de “veracidade”, ou até mesmo de “documentário” à narrativa (mostrando imagens que poderiam ter sido colhidas de fotografias ou documentos de outra espécie), vive em Les enfants de l’envie pela presença de sobreposição dos planos de composição. Independentemente de se tratarem de corpos distintos, de duas figuras ocuparem um primeiro e um segundo planos, de existir uma vinheta analéptica antes ou depois de uma no presente da diegese, ou haver uma projecção imaginária sobre um plano que corresponde à realidade ficcional, poderá dar-se o caso de vermos as linhas dessas mesmas figuras sobrepostas umas sobre as outras. Se num momento anterior às experiências e permissividades gráficas contemporâneas apontar-se-ia esta estratégia como apenas possível num momento de construção, rascunho, etc., ela hoje ganha direito de cidadania como texto final e poderá revestir-se com vários significados: continuidade da matéria gráfica, independentemente das diferenciações a nível narrativo; exploração dos elos contínuos entre percepção da realidade, memória e projecção imaginária, tudo parte da mesma coalescência da experiência humana; modos de lançar os pequenos elos narrativos possíveis entre esses níveis diferenciados; amalgamação das camadas da vida, ou melhor, vida propriamente dita.
6 de agosto de 2010
Les enfants de l’envie. Gabrielle Piquet (Casterman)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:05 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica
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