Como em qualquer círculo artístico, para mais determinado ou por uma tecnologia ou por um meio de difusão – e se bem que a banda desenhada não seja determinada tecnologicamente como o meio do cinema, por exemplo, ou a sua difusão não obedeça aos mesmos princípios rígidos da rádio ou televisão – é inevitável que a sua transmutação em “canal” ou “linguagem” lhe permita tornar-se veículo de obras que comecem a integrar instrumentos relativamente avessos àqueles que a sua história nos havia habituado, digamos a sua “constelação central”. Esse desvio pode revestir-se de contornos que estejam relacionados com o experimentalismo formal, passando mesmo por uma aparente desestruturação (o cerne da nossa atenção em Divide & Impera), ou por a sua redução a instrumento comunicativo básico (quando é empregue numa publicidade, num anúncio institucional, numa propaganda médica ou política), ou pela sua instrumentalização a conteúdos, digamos, “artisticamente neutros”, ainda que claramente narrativos (o que foi discutido a propósito de Oishinbo). Ou seja, nem sempre tudo o que é banda desenhada tem de ser banda desenhada... ou arte, se preferirem. Ainda que soe presunçoso, é o mesmo que distinguir um “filme” (ou uma “fita”) de “cinema”. As mais das vezes, é possível que leve a discussões insustentáveis e inargumentáveis, mas serve um propósito de esclarecimento no tipo de abordagem, na natureza do objecto, na mais certeira estratégia da sua discussão. O que nos importa, porém, para a presente discussão, é o facto de ao alargar-se o círculo social e estético do seu uso, a banda desenhada dá origem a objectos de conturbada natureza. Sem entrar em juízos de valor (apesar desse ser um dos papéis da crítica), o desafio da leitura de The Art of Pho lançou-nos precisamente na aporia da sua interpretação.
Este livro não se reveste de uma força estética significativa, como, por exemplo, os livros de Warren Craghead, dos autores da Frémok, ou de toda a tentativa de tecer bandas desenhadas abstractas. Também não se trata ora de um virtuosismo absoluto na sua linguagem clássica (à la Matt Madden) ora de uma sua desconstrução (à la Niklaus Rüegg). Não é dessas frentes que ele parte.
Intentemos uma sua descrição. Este livro parece nascer de uma premissa que é a do diário de viagem. Mas em vez de tornar as impressões da passagem por um país – neste caso, o Vietname – num bloco de desenhos, apontamentos, e um plano narrativo na primeira pessoa, o autor procura uma sublimação de todas essas impressões na criação de um objecto heterogéneo, que por um lado se reveste claramente pela dimensão da ficção e por outro de retrato específico de um aspecto da cultural local: a culinária (mais especificamente, as iguarias disponibilizadas nos stands ou quiosques-motocicletas, algo muito típico nas ruas dos centros urbanos do sudoeste asiático).
A parte da ficção desenvolve-se em torno de uma criatura, misto de roedor, Rato Mickey, e gnomo, que dá pelo nome de Little Blue, o qual, abandonado no meio de uma cidade, vê-se impelido a procurar uma nova vida, para mais na esteira de uma aparente amnésia da “vida anterior”. O que se segue é, portanto, um movimento imediato – afinal, ele tem de viver, de se alimentar, de se abrigar – e, mais tarde, a exploração do seu ego começa a desdobrar-se em várias facetas até redescobrir as suas origens, optando por fim por uma espécie de resolução.
A outra parte, da culinária, está presente em várias formas: receitas, tipologias de certos pratos, tipologias dos stands. Podemos mesmo segui-las e utilizá-las para fazermos os pratos indicados (rolos de vegetais em papel de arroz, molhos vietnamitas, etc.). A razão desse cruzamento, no interior do livro, prende-se com o facto da personagem encontrar na culinária não só uma forma de subsistência, como também como fonte de aprendizagem da cultura (a criatura voga num intervalo entre o forasteiro e o nacional), e ainda como ponte de comunicação entre as pessoas que vai conhecendo. Se quisermos até, a culinária surge como inspiração amorosa ou resgate espiritual e emocional.
Apesar do autor nos providenciar com algumas pistas visuais para imaginarmos a partir do quê ele moldou esta sua personagem, no momento em que esta ganha todas as características antropomórficas de um ser humano, e tendo em conta os vários elementos narrativos, as formas de relações encontradas entre as várias personagens, as falas, por vezes nada subtis, não será de modo algum complexo chegarem os leitores à conclusão de que se tratará de uma projecção semi-autobiográfica. O tema recorrente é dado pelo lema “everyone goes away in the end”. E as leituras que se conseguem depreender, e repetimos, de modo pouco subtil, deste livro são precisamente os temas sempre revisitados pelos backpackers de todo o mundo.
De facto, a experiência da viagem à backpacker, estes munidos ou não de um Lonely Planet, com a necessidade quase doentia de ter de consultar o weblog e postar fotografias, e fazer todos os esforços por conhecer a “cultural real” do local (ainda que com o conforto da rede de regresso, por mais protelada que seja), essa experiência, dizíamos, molda-se numa camada de clichés revisitados. As conversas repetem-se: há quem viaje para “se encontrar a a si mesmo” (o que pode levar a uma piada recorrente também: “o que dirás a ti próprio quando o encontrares?” ou “pagas-lhe o bilhete quando voltarem?”), há quem viaje para “crescer espiritualmente” (sendo usualmente cego ao facto de que as religiões dos outros são tão falsas, mesquinhas ou profundamente espirituais como as nossas, há quem queira aventurar-se (sempre naquela rede de segurança do homem/mulher branco/do mundo ocidental)... etc. “Porque viajas?”, “Que procuras?”, são perguntas constantes. Romances de viajantes, idem. E um grau de cegueira perante o facto de que a experiência de um país percepcionado sob viagem não é de forma alguma o mesmo que sob outras condições menos móveis (trabalho, estudo, vida): o síndrome de “a galinha da vizinha é melhor que a minha”. Ora, é partir destes elementos apresentados sucinta e desorganizadamente que se compõe a matéria narrativa, relacional e dialogal de The Art of Pho.
A própria forma do livro ser construído, quer em termos de estrutura narrativa – capítulos, oscilando entre sequências narrativas claras e episódios menores e interrupções temáticas – quer em termos de grafismo – colagens ou imitação de colagens, fotografias, esquemas e grelhas, ilustrações de página inteira, letra manuscrita sem grande desenvolvimento estilístico, páginas de banda desenhada mais clássica e abordagens mais livres (algumas recordando Marc Bell, mas sem a mesma desenvoltura) –, concorre para essa ideia de apontamentos à medida que as ideias surgem, dando a este livro não propriamente uma natureza de projecto medrado e orgânico, mas de uma ficção leve que nasce do acto de mostrar as fotografias de uma viagem a alguém que a não fez. Uma espécie de partilha, que seguimos com alguma distracção mas que de quando em vez revela um elemento que guardamos com mais atenção, talvez porque se associe a algo que nos faz lembrar.
Nesse sentido, The Art of Pho, não sendo de modo algum um marco de alguma espécie no território da banda desenhada enquanto modo de expressão, é não obstante uma experiência, em si mesma, pessoal, específica, e livre. Talvez resida aí o seu interesse.
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