É nossa crença que a banda desenhada consegue auscultar a contemporaneidade, mas os seus instrumentos são bem diversos dos de outras áreas mais dadas a abordagens críticas intelectuais institucionalizadas, como as ditas “artes visuais”, o cinema ou a literatura. As crises e arranques desta nossa área em especial não foram partilhadas noutros campos, e, para todos os efeitos, a banda desenhada é uma linguagem “velha”, cuja sobrevivência no mundo de hoje passa não tanto por uma sua reinvenção dramática e explosiva, mas antes por múltiplas pesquisas, as mais das vezes calmas e até quase pouco notadas, de pequenos desdobramentos possíveis. Extravasamentos (ora narrativos, ora gráficos, ora estruturais, ora em todas as suas possíveis frentes) daquela comunicabilidade simples que lhe pautou a vida durante tanto tempo. Aquela falta de atenção a essas experiências, reais, consultáveis, e com a sua própria história sustentada e autónoma, é mesmo, as mais das vezes, sobretudo sentida naqueles que mais “adoram” a banda desenhada, isto é, que a consideram um veículo privilegiado da sobrevivência de certas (as suas) fantasias ou projecções. Não é que ela não possa ser veículo de desejos (enquanto modo de expressão e arte é-o necessariamente), mas estes desejos é que podem ser mais específicos e pessoais do que formulaicos. A ressonância desses desejos, paradoxalmente, é maior quanto mais particular for a sua matéria e expressão.
Estes próximos dois livros são irmanáveis numa superfície comum. Ambos são livros que vivem na possibilidade contemporânea, não apenas técnica, mas estética (atitude, escolha gráfica, expressão, comunicativa, afectiva) de apresentarem desenhos no seu estado de inacabamento aparente. As técnicas não existem isoladamente, mas entrosadas numa sua expressão. É apenas analítica e abstractamente que as poderemos cindir e encontrar, como se de uma película se tratasse. Se nos fosse possível reduzir a história desta abordagem expressiva, ou técnica, numa só frase, poderíamos apontar para uma sua suposta origem na técnica dita “autográfica” de Töpffer, que aliou técnicas corriqueiras de impressão de documentos para a factura dos seus livros, mantendo a sua qualidade manuscrita. Uma importante inflexão é a carga de “pressa” e, logo, de “autenticidade” que viria a marcar certo registo jornalístico de uma fase da imprensa gráfica (cf. este ensaio de Alexander Roob). Depois da história constrangida da banda desenhada enquanto veículo especializado do escapismo claríssimo de aventuras infanto-juvenis de cariz masculino (desde a década de 1920, quer na Europa quer nos Estados Unidos), seria preciso chegar aos anos 1970 para ver o despontar simultâneo de vários experimentalismos gráficos, sustentados no tempo e na produção, que permitissem verdadeiras alternativas e linguagens outras no interior deste território (isto é, excluindo experimentações que se foram dando ao longo dos tempos, mas que estavam alheadas dos pólos centrais da sua produção). Finalmente, uma dessas linguagens, técnicas alternativas, possibilidades estéticas seria alcançada há relativamente pouco tempo, com a possibilidade de digitalizar e imprimir, com clareza e nitidez, arte que havia sido desenhada apenas a lápis, grafite ou carvão. Estamos sempre a falar da sua aplicação na banda desenhada, na qual o “lápis” era visto como uma mera fase de arquitectura primária, votada à ocultação de gestos técnicos posteriores. No momento em que ele se torna igualmente passível de se tornar veículo de transmissão de pleno direito do sentido (seja este mais ou menos narrativo, mais ou menos experimental), o que se dá a ver é uma certa camada de incompletude, de visibilidade dos processos estocásticos de procura, de pensamento no seu próprio desenvolvimento activo, uma espécie de sismografia do processo enquanto tal.
Essa técnica é visível nos trabalhos de Amanda Vähämäki ou de Marco Mendes, que tendem a incorporar as correcções e as rasuras, ou as primeiras decisões posteriormente abandonadas, no mesmo plano visível de composição do texto final. Quer o caso de Blaise Larmee quer o de Chihoi apresentam uma mesma abordagem material, tecnicista, mas não processual: se ambos os casos são livros desenhados somente a lápis, abrem-se menos à ideia de “rasura” dos autores citados.
Young Lions, do autor americano-japonês (mas isso não é importante) Blaise Larmee/Rarmee, é uma pequena novela muito afecta a um certo círculo das artes contemporâneas, no qual se encontram as novas gerações gerindo um certo sentimento de mal-estar que tem menos a ver com a insatisfação ou a angústia do fin de siècle, do dada ou do punk, do que com o entendimento de que se chegou tarde demais. Instala-se o desencanto e ausenta-se a ingenuidade e frescura de uma expressão genuína. Toda a gente é blasé. E o trio de performers/artistas Wilson, Alice e Cody, e mais um quarto membro, a “mascote” Holly (todos eles com ar quase impúbere, o que aumenta a carga sensual em certos passos do livro e lhes agrava a auto-consciência, para não dizer presunção, que revelam em muitos outros), é muito provavelmente um espelho, signo ou mesmo retrato directo de pessoas reais dos meios da arte: fala-se de projectos artísticos, performances, museus e galerias, vernissages e discussões estéticas. Uma road trip transforma-se numa procura interior e lançamento de redes de novas relações (ou pelo menos elos de maior profundidade), mas há sempre uma devolução qualquer de ideias e reflexões sobre o mundo artístico. O nome de Yoko Ono, apesar de ser dado como morta, surge várias vezes, e talvez seja ela uma musa distante – daí a sua “morte” – das buscas de novos processos artísticos (para a esmagadora maioria das pessoas que a conhece como “a mulher de John Lennon que destruiu os The Beatles”, aconselha-se a descoberta da excelente artista visual, por exemplo, pelo vídeos da Fluxus disponíveis na Ubuweb; será o facto de Ono ser japonesa uma associação étnica, tão importante e claro em autores como as irmãs Tamaki, Gene Luen Yang e Derek Kirk Kim?).
A narrativa é, em mais do que um aspecto, frágil. Não é que é isso seja um problema em si, mas parece-nos que Larmee não se lança de um modo totalitário a uma possível liberdade, nem seguindo modelos anteriores, de Gary Panter a C.F. (com quem é bastas vezes comparado), nem se furtando totalmente à narratividade. É como se quisesse, a um só tempo, não ser narrativo mas ainda contando uma história. Um ataque bem-vindo ao realismo, seja de que classe for, mas que demonstra ainda alguns “pesos” que deixa o gesto original de Young Lions por se desenvolver completamente. Ainda que haja uma estratégia fragmentária, impressionista, quase onírica na sua lógica, e que exige do seu leitor a ligação das várias linhas que se lançam, e a imposição de uma estrutura maior sempre elusiva em relação ao tempo, espaço, e até mesmo finalidade e resolução da diegese, o livro revela alguns desequilíbrios.
Ao mesmo tempo, talvez esses desequilíbrios sejam a forma mais aguda de Larmee tomar o pulso da (sua própria?) geração retratada. É como se estivessem descentrados, perdidos, soubessem que existe uma direcção geral para a qual caminhar mas não houvesse qualquer certeza quanto ao caminho, à natureza do ponto de chegada ou até mesmo à pertinência dessa ida e chegada. Cria-se uma certa densidade – presente nos temas, nos objectos, na exactidão da figuração – mas para se dissipar com rapidez – as manchas e sujidade de carvão, os balões de fala vazios, os diálogos interrompidos, as acções inacabadas, a atmosfera vaga. Há uma busca de repouso, de respostas, de construções conceptuais, de certezas até, mas o movimento (da viagem, da inquietude, dos elos feitos, desfeitos, refeitos) anula-o. Há um certo grau de rebeldia prêt a porter mas que esbarra contra uma certa natureza inanimada.
É bem provável que Young Lions seja o exercício do próprio Larmee em, através de uma constante fuga, criar o seu próprio espaço de ausência no tecido social do mundo que habita. A leitura deste pequeno livro independente não criará qualquer imagem, qualquer certeza. Mas é esse mesmo vazio o sinal que marca o seu lugar.
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