13 de agosto de 2006

Jimbo's Inferno. Gary Panter (Fantagraphics)


Jimbo já esteve no Inferno e voltou. Bom, na verdade esteve, de acordo com o título dessa antologia de 1988, no Paraíso (Jimbo. Adventures in Paradise, publicado pela Raw/Pantheon), mas tendo em conta os vários espaços que atravessou – então, La Bufadora, The Crash, a pré-história, as planícies dos povos aborígenes da América, e o desolador palco da destruição nuclear - é bem mais próximo do Inferno que qualquer outra coisa. Este novo Jimbo’s Inferno é, todavia, mais infernal ainda, e de facto muito mais próximo com o sistema espacial erguido por Dante. Mas como o próprio autor adverte na nota de introdução a este volume, estar em busca dos pontos de ligação é, a um só tempo, fácil e impossível, mas acima de tudo, despropositado, escusado, infrutífero. Fácil porque se espalham as referências dos Cantos pelas vinhetas mais apropriadas, que nos tornam cristalina a ocupação mundana de ligar a personagem de Panter à da obra de Dante, assim como se indicam as datas de produção (estratégia que Panter sempre usou – e que assim nos revela que o Inferno foi feito antes do Purgatory). Impossível e escusado porque essa “caça à referência” apenas nos levaria ao próprio material do jogo de Panter, mas não à obra que se nos apresenta. Sigamo-lo, pois, nessa ideia, e mergulhemos noutras considerações.
Assim, poder-se-á considerar que a trilogia chega ao fim. Porém, nada nos impede de desconfiar que, sendo Panter, esta sua trilogia tenha mais que três partes e que Jimbo ainda possa se desdobrar em mais aventuras. Ainda podemos estar a leste de outro Paraíso.
Como já havia sido discutido noutros momentos, o objectivo de Panter não é que os livros (ou pranchas, seja lá como surgirem os objectos textuais onde Jimbo entra) sejam legíveis, como se se tratasse de um romance, de uma narrativa linear, organizada e unitária, uma espécie de grande work-in-progress onde testemunhássemos um Bildungsroman sobre Jimbo. Não, porque Jimbo não aprende nada e não tem memória dos episódios anteriores. São apenas sequências não-narrativas de acontecimentos, de blocos de acções (e de sensações, já agora). Que demonstram a inexorabilidade do tempo, mas um tempo vazio, que não se constrói sobre si mesmo, complexificando-se, mas assume de um modo total a sua natureza de flecha. Ou seja, sem história, apenas direcção. Nesse aspecto, poder-nos-á recordar duas figuras extremas que trabalharam precisamente a relação dos homens com as suas sociedades, quando estas pouco ou nada se importam com os seus habitantes, e continuarão a funcionar independentemente das vidas desses homens: por um lado, Kafka, claro, talvez o escritor que melhor trabalhou o constrangimento e o horror que ele provoca nas vidas (de cada dia) dos homens-tornados-funcionários-da-máquina, quer se rebelem quer não se rebelem (na verdade, em Kafka, jamais se rebelam, a não ser superficialmente; o “K.” de Welles é mais Welles do que Kafka); por outro, é o Jacques Tati de Mon Oncle ou de Playtime, uma espécie de Kafka bem-disposto, que trabalha o constrangimento ao contrário, demonstrando como o ser humano consegue manter-se, acima de tudo, humano, independentemente da maquinização da sociedade.
Gary Panter segue profundamente o seu manifesto famoso, o Rozz Tox, onde termina assim: “O capitalismo é, para bem ou para mal, o rio no qual ou nadamos ou nos afundamos, e que enche os supermercados”. Trabalhando no interior do capitalismo, do sistema que se ergue à sua volta e de que nos é impossível escapar, mas claramente consciente disso, Panter constrói a figura de Jimbo e dos espaços transfigurados por onde ele atravessa. Jimbo, enquanto personagem-actante, aparece como um módulo vazio que se vai adaptando a tudo, mas rebelando-se com tudo ao mesmo tempo. Uma espécie de é/não é, de nim, que se recusa a algo mas educadamente pedindo desculpas. Mais, uma das personagens femininas com quem Jimbo se cruza logo nas primeiras páginas deste livro chama-o de “presunção de Adão”, sublinhando precisamente essa qualidade de aquém-de que Jimbo configura.
Às páginas tantas de um livro que descobri recentemente, de 1877, intitulado Caricature and Other Comic Art, de James Parton, e que faz a história precisamente daquilo que se pode entender amplamente por “caricatura” desde a antiguidade greco-romana até à sua contemporaneidade, o autor diz o seguinte: “A book with original life in it becomes usually the progenitor of a line of books” [“Um livro que contenha vida original torna-se normalmente no progenitor de uma sucessão de livros”]. Se bem que original possa ser traduzido como “original”, e assim sendo assume-se com toda a razão que surgem pontual mas excepcionalmente obras que marcam um ponto de início daquilo que mais tarde, retrospectivamente, se pode chamar de uma tradição, de um estilo, até mesmo de uma escola – o caso máximo (mas discutível) é o da “linha clara” de Hergé, baptizado após a sua existência consolidada por Joost Swarte – à mesma palavra poderíamos atribuir o significado mais específico e problemático de “originário”, confluindo em si uma força permanentemente de renovação própria. Isto é, livros verdadeiramente “originais”, no sentido mais banal da palavra (mas não por isso menos pertinente), de que não fazem escola. Já falámos aqui de alguns desses livros, sendo o exemplo de The Cage de Martin Vaugh-James o eterno paradigma. Mas a obra de Panter, cada vez mais, também pertence a essa categoria, de obras que não abrem caminho a novas e derivadas obras, precisamente porque a sua força originária é tão potente que se torna centrípeta, como um buraco negro, absorvendo para si mesmas as possibilidades das linhas de fuga que seriam eventualmente exploradas e vividas por outras obras, se tivesse um campo de forças mais fraco que permitisse a essas linhas, justamente, fugir de si para se reinstalarem noutras obras. Disse “cada vez mais” pois se podemos ver as anteriores aventuras de Jimbo (in Paradise ou o comicbook na Bongo, de Matt Groening) como ainda balizadas por alguns elementos narratológicos de organização – uma certa unidade nos acontecimentos – estes dois últimos exercícios tornam-se fechados sobre si mesmo mas numa infinitude de associações a que somos tentados de dar o nome de rizomáticos, para nos associarmos a um discurso à la mode da filosofia contemporânea, mas que também pode ser baptizado como “desalinhado”, “não-linear”, “cristalizado”, etc.
Tenho algum receio de empregar a palavra “evolução” nos trabalhos dos artistas. Já acentuei o facto de que Panter data todas as suas vinhetas, por isso é claríssima a organização cronológica do seu trabalho. Pergunto-me é se essa organização ajudará a ler melhor o sentido das suas obras.
No entanto, duas ou três notas de aproximação e distância entre estes dois livros publicados pela Fantagraphics: se em Purgatory há uma bem mais sentida invasão de referências externas (da cultura popular, de massas, da música, da literatura clássica e moderna, do cinema, etc.), em Inferno há uma maior incidência à memória pessoal da obra de comics de Panter (com pequenos papéis de variadíssimas personagens de trabalhos anteriores, como Hup, Fluke, Grud(t)en e Zipper, Pee-Dog, e ainda a sua reutilização de kaiju ou monstros de séries japonesas de televisão) - o que não é de estranhar, na reutilização do que havia sido publicado na série Jimbo da Bongo, de que se dá aqui a capa do no. 7, coincidente com a capa do presente livro. O facto de que Inferno segue aparentemente uma grelha simples e regular (usualmente uma típica grelha de 2x3) – ao passo que essa estruturação em Purgatory é ainda regular mas mais “tabular” (Fresnault-Deruelle*) - parece ser uma paródia da desorganização interna a que Panter vota os seus trabalhos. Por esses dois factores, É-se tentado a fazer uma interpretação da viagem, pela ordem da Divina Comédia de Inferno → Purgatório, de um gradual abandono de um estreito círculo de Jimbo para o do mundo... seguindo-se o Paraíso, uma diluição total no que é outro. Valise, o Virgílio de Jimbo, desaparecera na prancha 27 de Purgatory, dando lugar a figuras femininas (as Matelda e Beatriz desta personagem); e Inferno termina no mesmo espaço onde Purgatory começa. Repito-o, imagino que a viagem de Jimbo não tenha terminado sob o céu estrelado do exterior do Inferno nem nas fontes das águas da memória do Purgatório, mas que sigam ainda mais passeios no futuro, desta feita pelas rosas de luz do Paraíso.
(Nota: mais uma vez, os dourados da capa não surgem bem no meu scanner)
(Nota *: tinha escrito "Peeters", que a emprega nos seus escritos; mas havia sido um termo cunhado por estoutro autor sobre estética; agradecimentos a D. Isabelinho pela falta) Posted by Picasa

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