Uma das questões bastas vezes discutidas sobre a banda desenhada enquanto texto publicado num objecto é o modo como as características desse mesmo objecto, a sua camada paratextual, muitas vezes contribui desde logo a um jogo de associações e até de interpretação desse mesmo texto. Isto é, ao passo que num texto literário a autonomia do domínio propriamente textual (a tessitura verbal) em relação às suas circunstâncias editoriais – que se podem alterar ao longo do tempo de edição, à tradução, à mudança de região, de contexto, etc. – é (quase) total, no caso da banda desenhada essa autonomia diminui, tornando-se muitas vezes parte intrínseca do texto em si. Um exemplo concreto pode ser dado (ainda que essa análise fique suspensa neste espaço, havendo sido cumprida noutro local) com a edição original francesa e a americana de L’Ascension du Haut Mal, de David B., em que as capas dos volumes concorrem desde logo para uma interpretação do que encerram. (Mais)
Skim tem um brevíssimo pormenor, que poderá eventualmente passar despercebido aos incautos (ainda que duvide disto, sendo leitores de algo como Skim): se se retirar a sobrecapa, descobrir-se-á que a lombada uma inscrição a letras prateadas a dizer “Diário” (journal) e, como se se tratasse de uma escrita a esferográfica em seu torno, juntamente com uns desenhos, o acrescento “da Skim” e “propriedade privada”. Isto é, este pequeno pormenor de decoração do livro transforma-o, enquanto objecto, em algo que mimasse o diário da personagem principal da história que vamos ler, Kimberly Keiko Cameron, conhecida pela alcunha de Skim, que em inglês significa “escumar”, e, apesar de ser um mero trocadilho com o nome próprio da parte das personagens, acaba por ganhar um valor figurativo em relação à narrativa contada.
No imediato início do texto (propriamente dito), e em momentos cruciais ao longo do livro, tal como no início dos três capítulos, por exemplo, começa sempre com a locução “querido diário”, mas saímos muito rapidamente desse regime para penetrar numa acção que nos é oferecida sem mediação (a não ser a do meta-narrador). Logo à partida, portanto, é-nos dado acesso a um dos valores figurativos do acto de escumar, em que se aflora uma superfície para a passar muito ligeiramente e dela nos afastarmos logo a seguir, como se o que se desejasse fosse precisamente mantermo-nos nessa distância correcta, nem muito funda nem muito afastada.
Skim é uma obra que se inscreve facilmente naquele género, já não somente em expansão mas na sua própria e inerente transformação de género (algo que apenas existe e vai existindo em permanente negociação a cada novo elemento), a que se dá o nome de autobiografia, menos pela sua característica de “auto” – a personagem é fictícia, ainda que possivelmente aglomere características da(s) sua(s) autora(s) – do que pelos elementos desgarrados que vogam em torno da sua ideia central: uma voz “na primeira pessoa” que se procura a si mesma, em termos de construção e identificação, confronto e diferenciação, um certo ambiente centrado na vida de uma adolescente urbana e a sua inscrição na cultura que a rodeia – quer aquela mais socialmente aceite, como “normal” (ou “normativa”) quer a(s) que lhe são alternativa.
No tecido social e cultural canadiano, uma rapariga como Skim, asiática, comporta em si desde logo um elemento de alteridade face à hegemonia em que vive. O livro parece explorar os pequenos passos de Kimberly em direcção à experimentação de outras pequenas descobertas, todas elas relacionadas com algum grau de alteridade – de novo, em relação às expectativas sociais do que é considerado “normal”, fazendo-se aqui um juízo de valor sobre essa normalidade como algo de ridiculamente fechado e solipsista - sendo as mais visíveis a sua potencial homossexualidade e o culto Wicca.
O levantamento do “obstáculo”, da “crise”, daquilo sobre o que é necessário instituir o “desenlace” narrativo é bastante simples: Kim está sempre junta a uma amiga, Lisa, com a qual explora a cultura religiosa do Wicca (com graus variados de interesse, aproximação e desconfiança), e ambas estão em oposição (social ou tribal) com as meninas populares do seu colégio feminino. O que quero dizer é que Skim segue uma estrutura narrativa relativamente clássica, estabelecendo a personagem, o ambiente social em que vive, a rápida indicação de quais personagens são as deuteragonistas e as antagonistas, e depois impor uma reversão a esses mesmos papéis através de uma crise central – o suicídio de um rapaz, que jamais aparece, é uma verdadeira desculpa, um mcguffin. Obviamente, o mais importante não está nessa reversão somente, mas o que essa reversão – o afastamente de uma amiga, a aproximação de uma estranha – significa para Kimberly, o que influi nela para sua própria transformação. Num certo sentido, Skim é também um Bildungroman, um romance de formação, ainda que nem seja um romance – antes uma breve novela – nem acompanhemos toda a formação de Kim – somente um acontecimento, importante: a primeira vez que sente, verdadeira, profunda, e estranhamente, amor.
Todas estas informações parecem concorrer, porém, para a ideia de que estamos perante um livro de proporções dramáticas imensas, o que seria compreensível e até fácil. Mas não é. Parte do subtil engenho das duas autoras, as primas Tamaki (uma escritora de algum sucesso, outra ilustradora com algum reconhecimento), é criar uma banda desenhada que se joga sobretudo pela serenidade, pelo por-dizer. Bastas vezes se nota a ocorrência de um desvio, no último momento, do problema crescente para a sua dissolução, ou melhor, a sua transformação numa tensão irresolvida e que é herdada por uma atitude quase de desinteresse, mas que na verdade significa o modo como Kimberly prefere não entrar em conflito directo, ou não exacerbá-lo, pelo menos, e deixar que o seu afastamento do conflito signifique a conquista de uma dignidade maior. É nestes breves pormenores que a figura de Skim cresce enquanto personalidade. São evitadas todas as expectativas e armadilhas do sensualismo de uma adolescente asiática (coisa que ocorre em artistas como Adrian Tomine ou Paul Pope), não se procura qualquer tipo de objectificação, tampouco de vitimização ou de fragilização por se ser um “outro” – em relação à tal normalização. Mais, para além da própria personagem, são os momentos mesmo do livro que evitam cair nas armadilhas do melodramático – uma redução a “bruxas lésbicas” leva-nos de imediato a um imaginário perigosamente vazio. A maneira como o amor surge e parte, para a protagonista, não tem em nenhum dos seus passos, fases de incursão dramática intensa, sendo antes passados como inevitáveis e, por isso, tranquilas metamorfoses de uma mesma emoção. O fim do livro, por exemplo, é ofertado através de uma forma tão tranquila, quase natural, e indirecta, que torna a contínua esperança da força da personagem mais perene do que um explícito “final feliz”.
Skim é um livro de pequenas respirações poéticas, no pleno sentido da análise e desenvoltura da sua linguagem (quer textual quer imagética). “Quando digo o nome dela, sinto como se um rebuçado se tivesse escapado sem querer da minha boca” é uma frase magnífica e plenamente integrada na estratégia do desvio visual e narrativo – não demorar mais tempo ali onde dói. No fim de contas, aquilo que Kim relata ao seu diário é a mais verdadeira das lições, e aquela com que temos de viver. A que aquilo que mais nos faz feliz é também aquilo que mais nos entristece. Skim não é um livro nem triste nem feliz e, nessa in-conclusão, é tal qual o amor, que por ele podemos sentir.
13 de abril de 2009
Skim. Mariko Tamaki e Jillian Tamaki (Groundwood)
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:41 da tarde
Etiquetas: Japão
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2 comentários:
Parabéns pela ótima resenha.
Tinha visto o preview no site de Jillian Tamaki. Agora fiquei mais curioso. Bonito o texto, Pedro. abraço.
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