O desenho do autor de Honk Kong Chihoi distingue-se do de Larmee não em termos técnicos mas de acabamento. Chihoi desenha apenas a lápis, criando impressões de sombra, volume e texturas através da grafite, inclusive (imaginamos) manchando de carvão algumas partes do desenho, mas subsume tudo a uma maior clareza figurativa e estrutural. A própria escolha em ter sempre duas vinhetas oblongas por página (com raras excepções, marcando extremidades narrativas) força esta ideia rítmica e organizada – imitando, talvez, o movimento sempre constante do comboio do título?
O volume indica que a história é uma adaptação - “encomendada”, se assim se pode dizer – de uma novela do poeta, escritor e realizador de Taiwan Hung Hung, que é traduzida por Carrossel no livro em si (tradução italiana) e Cavalos de madeira numa separata (tradução em inglês; a razão é simples: a palavra composta em chinês associa o ideograma “árvore/madeira” ao de “cavalo”), pensamos que na íntegra, composta por dezassete fragmentos, todos tecidos em torno de uma enigmática viagem num comboio de longa distância. Parece inscrever-se, esta novela, numa tradição da literatura do absurdo, mas há um grau de diferença entre o tom de absurdo da prosa de Hung Hung (em que se instala sempre a dúvida, a perspectiva fechada e somente verbal do narrador) e as decisões de mostração dos desenhos de Choihoi (eliminando a indistinção, ancorando os objectos e os eventos numa realidade material).
O leitor é convidado, depois de ler os textos de Hung Hung e a adaptação de Choihoi, a considerar o grau de distância e proximidade entre um e outro. Apenas diremos aqui que se a prosa estabelece um círculo referencial maior do que o do próprio comboio, a banda desenhada se encerra nele com apenas uma brevíssima – na abertura e no fecho – perspectiva para além dele; e onde a prosa parte de uma perspectiva relativamente impessoal, e voga por atenções a várias das frentes sociais criadas no microcosmo deste comboio, a banda desenhada segue um circuito mais clássico de organização centrada em personagens, diálogos, e psicologizações.
Até certo ponto, Il treno faz-nos recordar Voyages, de Yokoyama (leia-se o posfácio de Chihoi para as associações e influências e crises), não apenas pela óbvia associação da viagem de comboio (mas se fosse apenas isso também se falaria do Transperceneige), mas por que ambos remetem a universos diegéticos que se iniciam sem grandes prólogos ou explicações, e nos lançam a meio de um movimento, sem quaisquer hipóteses de recorrer a construções certas da sua lógica, razões ou contextualização. Yokoyama, porém, dispensava a matéria verbal e transformava todo o seu acto numa construção formal de design em prol desse mesmo cinetismo. Choihoi pretende recriar uma outra ilusão, moldando personagens, tecendo uma rede de relações, fazendo adivinhar crises e desenvolvimentos e resoluções dessas mesmas relações, abrindo mesmo espaço a preenchimentos psicológicos da parte dos leitores. Mesmo que para depois os negar, deixa que se forme essa vontade e primeiros passos.
O comboio parece vogar ao acaso, ou num circuito fechado ou num circuito permanentemente aberto. Não estamos num mundo límpido. Os comboios agregam carruagens perdidas, aparentemente ao acaso, levando a migrações entre hostes de passageiros, cruzamentos, confusões e desencontros. Cada mudança faz revelar novos jogos de carruagens diferentes (restaurante, sala de jogos, biblioteca, sala de cinema, karaoke, lojas, sauna, supermercado...). Em dois momentos distintos, pós-mudança, a personagem principal dirige-se à carruagem-bar para reencontrar, depreendemos, uma mulher. De ambas as vezes, apresenta-se, mas a mulher, que chora, não o reconhece, e outro homem senta-se ao seu lado. E ele pede qualquer coisa para comer e retorna ao seu lugar. No entanto, leia-se: da primeira vez apresenta-se como “Cheng Yik, amigo de Tze Wah”, da segunda, como “Tsang Lik, amigo de Lok Shan”. Jamais o perdemos de vista, apenas vimos uma nova turba a penetrar no comboio. Haverá alguma duplicidade? Perdemos alguma transição? Falta-nos a compreensão sobre as transfusões? Tratar-se-á de uma realidade paralela? Poderá, ainda, tratar-se tão-simplesmente de uma distracção do autor?
Esta última explicação é a mais tola, claro. Todavia, as outras falham. Quem sabe, nenhuma delas faz sentido... o aparente sem-sentido poderá não ter uma causa lógica.
Mais do que um jogo de enganos, ou uma deliberada mentira ou disfarce, talvez seja esta uma exploração daquele grau de fantasia que pode ocorrer em plataformas de mobilidade extrema, como estações de comboios ou aeroportos. Quando esperamos pela nossa entrada num desses meios de transporte, o grau de fantasia – muitas vezes englobando aquelas de cariz amoroso, se não mesmo sexual – é proporcional em relação ao grau de diferença da viagem para o viajante (das banais, quotidianas ou habituais às inéditas e drásticas). A observação dos outros e, nos casos em que acontece, as trocas de olhares (ou mesmo de palavras, de um fumo, um endereço, um telefone), reveste-se de uma carga eléctrica “do que poderia ser”, cuja verve apenas se torna mais forte quanto menos “pode mesmo vir a ser”. Movimentos naturais nos nossos ambientes sociais modernos, claro está, e matéria para reflexão filosófica (os “não-lugares” de Marc Augé, em certo aspecto pontos nodais de auto-ficcionalização da experiência, recriação da identidade, ainda que a negatividade dessa noção e a incompletude das considerações de Augé face à modernidade devam qualificar com cautela o uso desse conceito) e criativa (os trabalho de Filipa César, hoje esbatido pelas experiências videográficas amadoras da geração youtube). Seja como for, são as máscaras dessas fantasias que parecem ser moldadas, vincadas e que ganham contornos de narratividade na adaptação de Chihoi.
O final do autor da banda desenhada enfraquece a presença da prosa, de certa forma, uma vez que opta por um tom, para mais verbalizado, de “explicação”. Ele próprio explicita no posfácio as transformações necessárias, a resposta que o grafismo concreto impõe na metáfora aberta do conto. A suspensão dessa nota final tornaria mais efectiva a natureza de toda a narrativa, mas a beleza e delicadeza dos desenhos de Chihoi tornam este Il treno numa leitura necessária.
Nota final: agradecimentos a Marta Monteiro, pelo empréstimo do livro.
17 de setembro de 2010
Il treno. Hung Hung e Chihoi (Canicola)
Publicada por Pedro Moura à(s) 4:16 da tarde
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