Se a memória não nos falha, por volta de meados dos anos 90, quando das obras no metro da Alameda, os tapumes da construção eram compostos por imensas reproduções de desenhos de António Jorge Gonçalves. Nesse tempo estávamos do lado de fora, da estrutura preparativa, ao passo que este livro agora nos mostra a arqueologia por dentro.
Essas imagens dos tapumes eram variadíssimas figuras de pessoas, uma espécie de misto de caricatura, retrato, comentário social, criação de tipos. Eram “lisboetas” (chegou a ser mesmo editada uma colecção de postais com essas imagens, da Bedeteca de Lisboa, salvo erro). Essas imagens eram pautadas por uma critividade que António Jorge Gonçalves fez exercer em A Arte Suprema, sobretudo, com um grau de distorção e exagero das formas físicas aparentadas a linguagens humorísticas, e não tanto da poeticidade primeira da trilogia de Filipe Seems ou das imagens realistas de Rei, que afagam o rosto das personagens com uma sensualidade extrema (o rosto feminino de Teresa, o masculino de Tano; na sua leitura, falámos dos signos de Barthes, hoje encontraríamos ecos do encontro entre Resnais e Beauvoir de Hiroshima, mon amour).
Por dentro é a perspectiva de Subway Life. Quem conhece o site, sabe que a promessa de um livro se arrasta há anos, logo é com prazer que vemos surgir este objecto. Talvez esteja na senda de uma cada vez maior abertura para com publicações de desenhos livres, sketch books, carnets de voyage, etc. mas este livro contribui com uma visão muito particular, como veremos.
A experiência em si, quase programática (exposta no livro: desenhar sempre quem se sentar dentro do ângulo de visão nas suas viagens de metro pelo mundo fora), é análoga a algumas outras por nós conhecidas, como a “pessoa por dia” de Jorge Colombo em Nova Iorque, por exemplo, ou as mais diversas experiências “monitorizadas” pelos Urban Sketchers. A diferença está no facto de não haver quase qualquer preocupação pelo anedótico, pelo contextual ou relacional. Com a excepção da breve referência à cidade/linha de metro em que foram “capturados” as pessoas apresentam-se isoladas, na sua personalidade o mais completa possível no interior de linhas desenhadas. Essas introduções são, em si mesmas, belíssimas explorações: as brevíssimas linhas de texto – a de Lisboa é um poema completo – e os magníficos mapas-crescendo de cada cidade, amalgamando as percepções numa única memória-objecto.
O título explica-se. “Subway Life”. Vejamos o segundo termo, “vida”. António Jorge Gonçalves não parece estar muito interessado em revelar-nos o quanto conhece uma cidade, o quanto aprende em dois dias e consegue transformar em matéria a devolver a um interlocutor (o leitor, o espectador). As explorações sociológicas de Marc Augé sobre os “não-lugares” levaram, há uns anos, ao projecto Cimêncio, de Diogo Lopes e Nuno Cera, um exercício sobre os subúrbios. Mas onde o gesto político de Lopes e de Cera era, a um só tempo, positivamente o de acusar a desumanização dessas novas tramas urbanas e, negativamente, falhar em encontrar as vivências das pessoas que os habitam (pois encontram-se do lado de fora do muro dos subúrbios, não o habitam, muito menos o vivem), o de Gonçalves mergulha na potencialidade de um lugar de trânsito impessoal e desromantizado como o metropolitano (não é o comboio, não é um eléctrico, um barco, um cacilheiro) para perscrutar e retratar a vida que por lá passa e se guarda nos desenhos. Há uma carga de sensualidade inerente ao desenho à vista, que contorna os corpos das pessoas, sensualidade essa que tem a ver com um encontro, um diálogo, uma tensão. Centram-se eles, os desenhos, nas pessoas e nada mais. Como dissemos, as pessoas retratadas são-no num fundo branco, sem referências, todas elas sentadas no vazio, mostrando apenas os seus corpos, vestes, expressões, gestos e objectos como signo do que deixam ver de si, ou que deixam que o autor consiga traduzir e dar a ver deles mesmos.
Se bem que o movimento previsto seja o do metro, e a paginação procure a constância de uma direcção, com as fileiras destas pessoas sentadas, é curioso observar com atenção para entender quais os movimentos humanos ainda fossilizados no desenho do artista: um pé que se moveu, outra perna que se cruza, um bolo que se termina de comer e um café que se beberica (é o verbo exacto), um olhar de soslaio que se faz à vizinha, um sobrolho levantado e outro carregado por uma leitura nada indiferente, um telefonema atendido (ou entretanto desligado), e a observação directa, olhos nos olhos, com o artista e, depois, com o leitor. Alguns empáticos, outros desconfiados. O autor explicita pelo menos uma dessas histórias.
Num tempo que Gonçalves tem desenhado particular e quase exclusivamente por meios digitais (e até mesmo passageiros, como nas performances de desenho ao vivo), e apesar deste livro recuar a um tempo passado, é como que um regresso também a uma gestualidade que não se perdeu, mas apenas se transformou. Um rápido cotejamento aos desenhos mais realistas, menos estilizados (e, a nosso ver, mais belos) de Rei, fará emergir precisamente os traços onde se encontram os micro-gestos que ainda pertencem à memória do pulso de António Jorge Gonçalves. Essa dimensão está presente também nas linhas diversas dos desenhos, respeitantes aos instrumentos utilizados, às margens incompletas dos desenhos que corresponderão ao limbo do limite do papel, a maior ou menor grau de acabamento de um retrato, que se associará à velocidade “de exposição” ao modelo. Nessa óptica, a “vida” vem à tona em todas estas vertentes: gesto, velocidade, cumplicidade, circunstância, observação e exploração da pessoa...
Já no segundo termo, em inglês, é curioso que se utilize em “subway life” algo de imperfeito, já que nenhuma destas figuras revela uma vida “subway”. Bem pelo contrário, são todas elas vidas acabadas acima de qualquer uma das linhas que se quisesse ver como delimitadora ou baixa. Esta é a via de cima.
Nota: agradecimentos ao autor e ao editor pela oferta do livro. Fiquem aqui com o trailer feito pelo próprio artista:
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