Os gestos editoriais de Marcos Farrajota são sempre dotados de certas características que tornam as suas edições muito particulares. Num panorama em que não se pode falar com propriedade da existência de um “mercado”, a existência de publicações que se esforçam por uma fasquia mais alta, ou até mesmo por uma fasquia diferente, são raros. Mesmo nalguns casos de projectos editoriais revestidos de princípios comerciais (penso, por exemplo, na VitaminaBD), ou na fundação de uma nova forma de olhar a possível distribuição nacional (os exemplos da Kingpin ou de El Pep/The Lisbon Studio), há sempre uma dose substancial do factor da dedicação pessoal, do risco, da aposta, o vulgo “carolice”. E depois existem projectos outros, ditos “sérios”, estabelecidos, com distribuição profissional, com contratos internacionais, etc., mas que as mais das vezes estão presos a fórmulas desinformadas e deslocadas nas novas realidades sociais da banda desenhada, acabando por serem mais contra-producentes do que verdadeiramente formadoras de novos públicos (os quais não têm necessariamente de ser “jovens leitores”). (Mais)
Dito isto, por mais vincada que seja a tribo associada à Chili Com Carne – o que na verdade é uma brutal redução, pois uma análise mais estrita revelará uma relativa amplitude de estratégias, legibilidades, actos políticos, humores, etc.; apenas uma aversão primária amalgama os trabalhos de autores tão diversos como Filipe Abranches, Joana Figueiredo, Pedro Zamith, Ricardo Martins, Ana Biscaia, João Maio Pinto, André Lemos, Jorge Coelho, Janus, João Cabaço e tantos outros, numa mesma “turma” -, a verdade é que projectos antológicos como Massive, Crack On, e agora, Destruição! se revestem de uma importância inegável no nosso reduzido panorama, e apenas uma ideia contrária à liberdade de expressão e variedade criativa (isto é, como bem escreveu o autor d'Os Positivos na secção dos comentários ao seu livro, os inscritos-espartilhados da “bd belg-o-marvel”) é que os pode ver como gestos impeditivos de outra banda desenhada. E se nos recordarmos da antologia Mutate & Survive, recordar-nos-emos que essa publicação ainda hoje coteja nas prateleiras de variadíssimos projectos europeus (Canicola, Kuti Kuti, Glomp, Strapazin, Stripburger, etc.), ainda que tenha sido uma só experiência.
Dito isto (x 2), é necessário olhar para a especificidade desta nova antologia, que tem dois factores centrais a desenhar-lhe a circunferência. Por um lado, a abordagem temática, lançada no mote do título, que permite explorar “como foi horrível viver entre 2001 e 2010”, negando qualquer abordagem de esperança delicodoce do novo milénio e abrindo à exploração do que está na mesma, apesar de todas as promessas futuristas. Torna-se divertido que a atitude “punkista” (que não propriamentte punk) aja como contraponto de vários outros projectos que desejam, logo à partida, encontrar aspectos positivos na raça humana. No entanto, essa negatividade projectada não significa que não surjam aqui histórias contrárias a essa atitude, onde vasculhando por entre a violência, o humor de lavabo, a projecção de futuro político caótico tintado por referências heavy metal, e a depressão constante que pauta a contemporaneidade, não se encontrem pequenos desvios humorísticos, gestos de inscrição, caminhos de algumas certezas.
Por outro lado, o objectivo desta publicação era ser uma espécie de showcase de alguns jovens autores que ainda não haviam publicado em plataformas mais visíveis, e apenas mostraram as suas garras em projectos de fanzines de circulação limitada (com a excepção da Ana Biscaia, talvez, e de quem já havia participado na Massive). Alguns desses nomes estão associados a alguns cursos de banda desenhada – sobretudo do curso do Ar.Co, onde passaram David Campos [ver acima, 2º parágrafo], Ricardo Martins e Sílvia Rodrigues, pelo menos. Para bem ou para mal, o ensino da banda desenhada tem a obrigação de garantir algum grau de visibilidade, por mais pequeno que ele seja, aos seus discentes, caso contrário, as dúvidas instalam-se (e, aproveitemos a franqueza, contra nós mesmos falamos). Alguns deles, Bárbara Fonseca, a resultados de concursos. Outros deles, como Rudolfo da Silva, Christina Casnellie e Ana Biscaia, vão-se tornando visíveis através de variadíssimos projectos, todos eles de personalidade bem vincada, e nada interessados em trilhar caminhos usuais ou expectáveis.
De todas as peças presentes em Destruição!, encontrar-se-ão vários géneros. Casnellie apresenta uma curta peça que parecem ser apontamentos autobiográficos ou talvez autoficcionais. David Campos apresenta também um diário de memórias sobre o que pensava, no passado, ser o futuro que é hoje o nosso presente, e revela – como penso acontecer com todos os desiludidos da realidade – quão triste é o que se nos apresenta. Bárbara Fonseca e Ana Biscaia apresentam as histórias mais moldadas pelo permanente medo instalado dito do “pós 11 de Setembro”, onde se encontram as pressões económicas, sociais e policiais veiculadas pelos meios de comunicação social. Fonseca apresenta uma pequeníssima rábula que é mais verdadeira do que se poderia pensar à primeira, e Biscaia parecem apontamentos (parecem ser reproduções directas de um bloco de desenho) de notícias reais, recentes, de Portugal, com um desvio transformativo mínimo. Ugandalebre [acima, 3º parágrafo], que fará parte de uma nova geração de autores de banda desenhada informada pela ilustração e design, mostra uma história demónica-cute, e André Coelho [a abrir o presente parágrafo] avança com uma diatribe económico-social, com contornos realistas/fantásticos e uma agenda mais politizada ambos avançam uma ideia de um futuro próximo demonizado e exacerbado. Sílvia Rodrigues, numa esparsa e silenciosa sequência, explora alguns dos temas e formas usuais da banda desenhada feminista, uma aparentemente simples, mas subtilmente conturbada representação de expectativas. Sem detrimento para as outras participações, não obstante os seus instrumentos (mesmo a variação de Rui Madeira sobre o Black Hole de Charles Burns tem características específicas), a última história, de José Smith Vargas [ao lado], a mais narrativa de todas – mas não por isso mais “naturalizada” - explora situações constantes de certos círculos criativos independentes nacionais, num misto de crítica paródica e, talvez também, de louvor e reprodução.
As qualidades são várias, repetimos. E é essa amplitude, variedade, forças, diferença, e até indiferença para com as expectativas de salvação, que tornam esta – e outras – antologia um acto nada destrutivo mas bem pelo contrário contribuidor a um panorama cada vez maior e rico.
Notas finais: através da página de apresentação deste livro no site da editora encontrarão links para cada um dos seus autores (daí as poucas imagens, retiradas ao press release; estas estão a azul, ao passo que a impressão uma um laranja como segunda cor); agradecimentos ao editor, pela oferta do livro; uma promessa também a David Campos, Sílvia Rodrigues e Rudolfo da Silva uma palavra num futuro próximo sobre os seus fanzines individuais. A capa é da Margarida Borges.
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