O Macaco Tozé foi descrito, vezes várias, como sendo “escatológico” ou “pornográfico”, mas uma leitura mais atenta e sem moralismos apriorísticos revelará algo de mais complexo. Nenhum desses géneros, ou pelo menos categorias descritivas, se aplica correctamente na obra maior de Janus (desde já dizemo-lo, entendendo que o traço de Janus recua – por força de variadíssimas circunstâncias que apenas pertencem às condições de produção, importando apenas os resultados, menos densos, escuros, sólidos do que em trabalhos anteriores). Pornográfico não é nem no sentido da mera representação do acto sexual em todos os seus gloriosos pormenores físicos e excretivos, nem sequer em termos de efeito sobre o leitor, já que os momentos de sexo estão minados nesse sentido por uma procura antes dos seus aspectos mais duros, violentos e até mesmo cruéis. Mas não desapaixonados, à sua maneira, como se verá. Escatológico também é negar-lhe a natureza observacional, a franqueza com que lida com o bas-fond, com o peso do corpo das pessoas e com o peso que o álcool, o cansaço físico, a miséria ou outras estradas exercem sobre esses corpos. Não estamos a falar de Johnny Ryan ou de Mike Diana ou de Ivan Brunetti. Estamos em crer que essa forma de votar a obra de Janus a um território de “baixeza” é uma atitude de pedantismo cultural e de cegueira para com outras realidades sociais, na verdade mais próximas da realidade nacional. Janus age mesmo como um arqueólogo da cidade do Porto, dos seus bairros populares, da sua gente agreste, com um olho particular para aquelas zonas que uma nova agenda social, política, de postal ilustrado, vem querer tapar vivências que não se coadunam ao conforto burguês da maioria de “nós” (ver adiante quem são “nós”, e não nos excluímos a nós próprios desse círculo de conforto burguês). Por outro lado, talvez essa forma de encafuar o seu trabalho nesse canto seja uma forma de protecção, de querer evitar pensar essa existência real no nosso país, na nossa cidade, mesmo ali ao lado. A banda desenhada, vivendo na sua esmagadora maioria, como veículo de fantasias, procura naturalmente uma desumanização “por cima”, fazendo trazer à sua tona aquilo que se desejaria ser constante e acessível. A desumanização – a “macaquização” - de Janus faz-se por outras vias, mas precisamente para encontrar a mais elementar natureza humana. O que ele compõe é mais perturbador do que matéria de afago.
O Pénis Assassino, porém, é de outra massa. Para já, por se tratar da maior história contínua dada ao público por Janus. Logo à partida, por se tratar de algo próximo da novela, apresenta-se com uma concentração e desenrolar narrativo mais complexo, no que diz respeito aos desdobramentos de uma personalidade, a do protagonista Francisco, e as outras personagens com que se relaciona. A personagem de O Pénis Assassino é uma espécie de Macaco invertido. Se os “macacos” poderão servir, de forma mais ou menos alegórica, alertar e sublinhar a natureza humana constante – independentemente dos avanços tecnológicos ou as obras de arte e pensamento, somos ainda as mesmas criaturas que se abrigavam em peles de animais, se revezavam em violência, e temiam o escuro –, o facto das máscaras desaparecerem neste livro não deixam de lançar uma qualquer sombra pela sua ausência. No entanto, onde Tozé era uma criatura amargurada, provavelmente por ter vivido muito ao rés-do-chão da vida, este Francisco está mais próximo de um de nós (“nós” tornando-se o modelo hegemónico do leitor, se não homem branco, pelo menos da classe burguesa, minimamente confortável e com expectativas de uma existência segura social e economicamente).
A eleição do membro viril como ponto de partida de complicações não é propriamente original. Poderíamos citar O tagarela de Paolo Baciliero (por via do Brasil, “Grandes Aventuras Animal # 3”), a improvável mas existente série de histórias aos quadradinhos portuguesa Pedrinho (na década de 1970/80 de autor anónimo), de fortes contornos humorístico-corrosivos mas que seriam assaltados como mera pornografia infantil hoje, provavelmente com direito a prisão, ou então variações, desde o preservativo assassino de Ralf König ao esperma negro-mágiko da personagem Klimakks, de The Filth, de Morrison e Erskine. No entanto, se todas essas histórias pretendiam essa referência como forma de catapultar para um determinado tipo de humor (“depravado”, “doentio”, ou outros adjectivos), Janus parece querer transformar o temível bruxedo sobre o pénis da sua personagem como símbolo de um vício desesperante. Podemos ler o livro de uma forma superficial, directa, a história fantástica que se nos apresenta. Mas podermos tentar perscrutá-la como se representasse algo mais.
Uma das pistas de interpretação que nos parece óbvia a informar esta obra é a da herança da culpa católica. Numa conversa informal com o autor, sabemos que a educação católica teve um papel na sua vida e é ele próprio quem admite esta possibilidade de transformação da ideia de culpa como ponto nevrálgico de O Pénis Assassino. Mais, é o autor que nos diz que “A Culpa” foi, num momento, um título hipotético. Assim sendo, é como se fosse um fantasma da ética católica que se instalasse na personagem principal e que, a cada momento do seu orgasmo, essa culpa se substancializasse de imediato. Penso que todos os homens se reconhecerão na frase de Flaubert, “uma onça de esperma perdida cansa mais que três litros de sangue”. Ou a ideia de Bataille, por via popular, da “pequena morte” (L'Erotisme): “o orgasmo [é] quebra, um ficar fora de si, abandono da identidade. O orgasmo também provoca um colapso do eu. No esgotamento, o corpo deixa-se cair no fluxo das correntes que o atravessam, ele regressa ao modo vegetativo” (com Bataille, seria interessante encontrar onde se encontra a dissolução do eu de Francisco). O orgasmo traz sempre ao homem uma fraqueza (no caso da mulher, na esmagadora maioria dos casos, é antes uma electricização adicional), e, dependendo da situação, sentimentos de incompletude, culpa, insegurança, retorno a um qualquer perigo. Parte dessa situação é fisiológica, alterando a actividade cerebral, eliminando a ansiedade no seu momento mas trazendo uma enxurrada nova de mais ansiedade depois; a própria composição do esperma contém substâncias como a putrescina e a cadaverina que aponta para aspectos mais negativos da sexualidade (em termos simbólicos, pois nada têm de negativo, são naturais). Mas parte é também cultural, e um elemento substancial desta nossa cultura é a herança do Cristianismo e os seus vários teores de culpabilidade, as mais das vezes relacionadas com aspectos sexuais.
Independentemente da origem do seu problema estar possivelmente no “mau olhado” da bruxa, uma doença demoníaca instalada no seu membro viril, é possível invertermos a situação da origem e encontrar no próprio protagonista a responsabilidade máxima. Francisco sente-se culpado na expressão física da sexualidade, do seu amor pela noiva (e depois pelas outras vítimas, mais ou menos indesejadas, mais ou menos responsáveis pela sedução, tornando Francisco sempre um instrumento ele-mesmo do seu membro, por sua vez utilizado de modo utilitário pelas mulheres: haverá aqui um qualquer grau de misoginia mágica?, de transferência da culpa?; a maioria dos capítulos refere-se sempre a uma figura feminina). Então o seu orgasmo é transformado numa explosão mortífera. Nesta ideia, estamos possivelmente a reduzir os acontecimentos de O Pénis Assassino a uma espécie de metáfora. Talvez o seja, mas talvez sejamos mais honestos para com a obra se levarmos os acontecimentos como reais, pelo menos no seu universo fictício. É entre a redução ou uma leitura chã que nos dá este universo fantástico, ou um qualquer grau de escavação que permite ir ao encontro de outra leitura. O leitor oscilará onde melhor encontrar o seu próprio equilíbrio, numa obra que pretende retratar os muitos desequilíbrios que espreitam a cada momento das nossas relações, estas mais símias, aquelas mais humanas.
Nota: agradecimentos ao autor, pela conversa. Imagens retiradas do blod da chili com carne.
http://janus.freevar.com/7luas.html
ResponderEliminarNa verdade, queria ter-vos deixado um link para o site do autor, até para conhecerem as suas animações, das quais espero vir a falar. O Paulo Dionísio (a.k.a. Janus) fez esse favor.
ResponderEliminarObrigado.
pedro