No seio de algumas das tentativas de sistematizar a abordagem à ilustração num contexto escolar, na qual a procura de uma tipologia ou uma categorização é necessária como gesto propedêutico, uma das formas encontradas é aquela que havia sido proposta por Alan Male e falar de cinco “contextos” que tomam em conta as funções que a ilustração pode tomar em relação à realidade: as de informação (documentação, referência, instrução), comentário, ficção, persuasão e identidade. Não é importante se estas tipologias ou categorias são sequer necessárias, ou se não criam problemas logo à partida em relação a uma ontologia mais livre, ou até que ponto são pertinentes de um ponto de vista criativo; as mais das vezes, de nada servem para uma leitura mais livre, é verdade, mas não se lhes pode negar a utilidade, repetimos, em contexto introdutório. Muitos dos campos de ilustração, por vezes, podem participar em mais do que um contexto (ou função), ou então fazerem dois desses contextos confundirem-se. Mas depois existem exemplos de ilustração, objectos de ilustração, que apenas com muita dificuldade se encaixam nessas categorias pré-fabricadas. Os autocolantes, ou “stickers”, que servem para fazer “bombing” urbano (espalhá-los em espaços da cidade), são um desses casos: se bem que se possam revestir de um conteúdo político (persuasão) ou de ficção (criar um universo de criaturas que invadem esse mesmo espaço, como os da Pixel Population), a verdade é que fazem emergir conceitos bem diversos e problematizações dessas categorias, por causa de algumas das suas especificidades. “A experiência do mundo faz-se através da experiência das imagens”, escreve Hans Belting em Pour une anthropologie des images, “mas a experiência das imagens, por sua vez, associa-se a uma experiência dos seus meios”. Com isto, não se pretende procurar elevar a uma qualquer presença ou papel essencial, ou sagrado, a especificidade de um determinado meio (neste caso, o autocolante), mas tão-somente entender que cada meio se revestirá de um modo muito particular de tornar essa experiência mais rica e moldada, e, mais próximo do que nos interessará aqui, a saber, entender que esses meios “marginais” (adiante se explicará este vocábulo) criam especiais presenças da ilustração.
Mas uma outra tradição na criação das imagens à qual estes objectos se podem entrosar é a da marginalia medieval, desde os desenhos nos livros iluminados aos complexos escultóricos e de relevos nos cantos, pórticos, gárgulas, capitéis e cornijas dos templos. Nesse sentido, é pertinente pensar no trabalho de Michael Camille (Image on the Edge), onde esse autor afirma que “a arte das margens é desprovida da estabilidade iconográfica que a narrativa religiosa ou o ícone têm”, permitindo assim estratégias discursivas que “representam coisas deixadas de lado no discurso oficial”. Mais do que a arte dos posters, necessariamente relacionada com um qualquer evento cartografável no tempo, espaço e agenda política ou social, ou que os murais, programáticos, os autocolantes procuram de facto uma instabilidade iconográfica que passa pela maximização da multiplicidade (basta ver os múltiplos estilos atravessados pelos autores presentes em Sticker Bomb). Apesar destes autocolantes não estabelecerem a mesma relação com os locais ou objectos em que se integram - as marginalia a que nos referimos faziam, no fundo, parte de toda a estrutura, eram encomendadas ou acabavam por ser criadas no seio dessa encomenda e construção - eles são também mais criadores de um espaço ideológico que topográfico.
O facto de se empregar um verbo como babuinare permite-nos aproximar de uma outra sua dimensão, que tem a ver com uma experiência mais física, um aspecto sensual, “à flor da pele”… (não esqueçamos as hierarquias morais e de sensibilidade medievais, que associa os macacos a seres “de sensualidade” mas não “racionais”). A relação que estes autocolantes em particular estabelecem com os seus usuários é radicalmente diferente daquela prevista nos autocolantes das cadernetas. Estes últimos partilham da tarefa do coleccionador, que petrifica o objecto no interior do seu círculo mágico, a colecção. Estes termos são os de Walter Benjamin, do pequeno mas fundamental texto “Desempacotando a minha biblioteca”, sobre o coleccionador, para quem “o mais relevante destino de um exemplar é o seu encontro com ele, com o coleccionador e a sua colecção”. O coleccionismo é uma forma de renovação, de criação de uma vida nova que apenas existe nessa convergência entre o objecto particular e o conjunto pessoal. É também uma forma de conforto em relação ao universo vasto, pois controlando-se de uma forma fixa e forte um troço desse universo, emerge a ilusão de que ele mesmo é controlável e assimilável. É por isso que os coleccionadores conseguem sempre ter “tudo” do que desejam, pois alguns objectos eventualmente associáveis, se estão fora do alcance, tornam-se dispensáveis, perdem as características que os tornariam passíveis de integrar o tal círculo mágico. Ora, estes stickers são algo de bem diverso, uma vez que o seu propósito é serem abandonados, ou serem ofertados para fora do controlo do seu usuário. São mais livres e até desprendidos, pois serão sempre abandonados algures. Mesmo que se os empreguem em objectos pessoais (cadernos escolares, portáteis, bolsas, etc.), esses mesmos objectos têm uma vida limitada, ou pelo menos não presente a todos os momentos. Todavia, é como se fosse um abandono sensual de si mesmo. Uma marca de si (a assinatura do artista ou do designer) impressa na rua.
Este Sticker Bomb 2 não é mais do que uma antologia de vários artistas que trabalham nessa área particular (e outros “forasteiros“ convidados para o efeito), podendo ser mesmo considerado como um directório profissional, uma vez que os nomes dos artistas internacionais (portugueses incluídos) vêm acompanhados dos seus blogs, sites e contactos. Mas sendo composto por autocolantes prontos a serem usados, é como se exigisse ser uma plataforma a partir da qual os seus objectos possam vir a ser usados tal qual como originalmente eles foram pensados.as teremos aqui de terminar com uma confissão: que fazer com este livro? Utilizá-lo como ele próprio deseja ser utilizado, ou negar-lhe a natureza e preservá-lo apenas na sua potencialidade? Guardar ou libertar?
Pedro esta tua critica é aquilo a que chamo "Olhar para Além de..."
ResponderEliminarOfereceram-me o Sticker Bomb 1, e depois deste texto, nunca mais vou olhar só para as ilustrações dos Stickers.
PARABÉNS!
Olá, Tozé.
ResponderEliminarMaus uma vez, obrigado pelas palavras. Na verdade, não tenho o 1º volume, pois não se pode comprar tudo (chuif, chuif), nem cravar sempre todos os livros que se desejam. (mais chuifs), mas desta vez não o podia deixar passar, por variadíssimas razões...
Também tenho pena de ter colocado imagens um bocado más, mas neste momento era impossível de outra maneira.
Abraços!
pedro
tudo bem pessol,estou querendo fazer uma trabalho com esses adesivos Sticker Bomb,onde posso comprar?
ResponderEliminaragradeço
Olá, Thiago.
ResponderEliminarQualquer livraria internacional online terá as várias edições deste livro (e muitos outros similares). Escuso de fazer publicidade, são todas bastante famosas. Em Lisboa, apenas a encontrei à venda numa loja de museu (e já não têm mais); no Brasil, não faço a mínima...
Good hunting!
Pedro
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarmuito obrigado Pedro.abraços
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