Introdução. Queremos, com os três próximos textos dar conta mais uma vez de diferenciadas presenças e desdobramentos da banda desenhada japonesa, ou mangá, um pouco por toda a parte. No entanto, logo à partida essa mesma introdução revela-se problemática por, precisamente, não colocar em questão esse ponto de partida. A banda desenhada japonesa, apesar de tudo, é ainda vista como se se tratasse de uma entidade à parte de facto, isto é, como um núcleo de criação da banda desenhada totalmente independente e autónomo em relação às restantes produções. De certa forma, isso não é totalmente errado, tendo em conta o grau de isolamento do Japão e as características específicas do seu mercado interno, auto-suficiente (e cada vez mais marcado por exportações massivas), e a inércia que existe em tratar sempre qualquer objecto de análise a partir do conceito fechado de nação. Mas estamos em crer que o grau de alteridade que é dado à mangá – até pelo próprio uso deste termo diferenciador como se fosse absoluto e cristalino – vai mais além dessas atitudes expectáveis. É como se se acreditasse numa diferença não tanto de grau entre a banda desenhada japonesa e outras mas sim de natureza. Isso deve-se às várias características tipológicas, de género e até formais que lhe são reconhecidas (se bem que lhe sejam cada vez menos exclusivas e mesmo a sua génese se complique com outras tradições), também a certos temas e conteúdos, mas acima de tudo a um certo fascínio “de fora” que a torna, à banda desenhada mas também a toda a cultura japonesa, num perfeito exemplo de ex-otismo (o hífen não é gralha, mas reforça a sua literalidade). Essas mesmas características são vistas pelos seus fãs como condições necessárias para a ocorrência de um verdadeiro epifenómeno no qual se desejam integrar, mas também se coalescem, para os seus detractores, numa mole pronta-a-atacar, numa atitude próxima daquela retórica iconoclasta de que fala W.J.T. Mitchell enquanto retratando o “idólatra” (no nosso caso, esta outra banda desenhada) como “infantil, feminina e narcisista”. Cada um destes termos levanta questões complexas que têm a ver com a centralidade de um suposto modelo (homem, adulto, heterossexual, racional/positivista, etc.) contra o qual qualquer diferença é vista como um suposto desvio ou inferior. Se a banda desenhada já vive, em si mesma, arreigada de uma certa centralidade ou pelo menos presença franca na cidade das artes, a mangá vive por seu turno numa esfera lateral a outras que ocupam a percepção mais normalizada, quer para o bem quer para o mal (as mais das vezes é para o mal, seja pela cegueira que a torna “desprovida” de atenção merecedora seja pela cegueira de um fascínio-obsessão que impede de a entender como outro qualquer campo artístico, diverso, amplo, vivo, etc.).
Se chamámos “epifenómeno” à mangá não é por mero acaso, mas sim porque estamos informados pela monumental publicação do sociólogo italiano Marco Pellitteri, The Dragon and the Dazzle, que explora uma perspectiva específica sobre esse universo de criação, num livro que se torna desde já obrigatório a quem desejar fazer um seu estudo de um modo inequívoco, intelectual e culturalmente sólido e consequente. Foi essa a nossa primeira leitura. Depois seguir-se-ão as notícias e leituras de dois “clássicos” (mas será preciso qualificar esse termo) recentemente publicados entre nós pela Asa, Astro Boy e Dragon Ball, dois títulos que poderiam bem servir de casos de estudo da matéria de Pellitteri, e finalmente de uma antologia de banda desenhada underground/independente japonesa contemporânea, a AX, que escapa de certa forma a esse radar centralizado.
Astro Boy. Mais de meio-século se passou para termos, em Portugal, uma tradução e edição nacional de um dos maiores ícones da banda desenhada e animação modernas japonesas. A razão desse “atraso” é muito complexa, factores óbvios misturando-se aos obscuros, mas o que importa, em parte, pelo menos, é celebrar essa chegada.
De seu título original (em transliteração latina) Tetsuwan Atomu, esta é uma banda desenhada do inefável Osamu Tezuka, sobre o qual já tivemos a oportunidade de escrever bastas vezes neste espaço. No entanto, esta é talvez a sua criação mais famosa, quiçá por ter sido aquela que contribui também para a fama do seu criador. A história editorial desta personagem é algo conturbada. Em termos factuais, ela surgiu em 1951 na revista Shonen Magazine (a mítica publicação da imensa Kodansha) sob o título de Capitão ou Embaixador Átomo, apenas passando no ano seguinte a chamar-se Átomo Poderoso, sendo este último adjectivo também eventualmente traduzível por “férreo”. Mas se nessa primeira série nem sequer o Atom era a personagem principal e alguns dos temas não eram discutidos nas histórias, teríamos de esperar a segunda e definitiva para a consolidação dos seus traços… Se o desenho de Tezuka sempre foi devedor à animação norte-americana (os seus primeiros trabalhos são como que “desenhos animados não-animados”), sobretudo às produções da Disney e Fleischer e quejandas, esta segunda fase levá-lo-á a arredondar ainda mais as suas personagens, a suavizar os contornos e os seus movimentos, e a salientar ainda mais a expressividade melodramática dos seus rostos (sobretudo num dos decisivos contributos de Tezuka para a mangá moderna, que é a preponderância dos olhos das personagens, de resto, herança igualmente da indústria da animação norte-americana).
A série em si, a de banda desenhada, teve um sucesso estrondoso, e, em conjunto com outras duas séries da mesma altura, a saber, Kimba da Selva (de 1950 a 1954) e Princesa dos Laços (Ribon no kishi, 1953-1956), foram as que consolidaram a carreira de Tezuka, permitindo-lhe abrir um estúdio propriamente dito (e não o trabalho que fazia disseminado por variadíssimos editores em condições menos felizes). Não será displicente notar desde já que cada um destes títulos pertence a géneros totalmente diferentes (ficção científica, fábula animal/Bildungsroman, e ficção historiográfica melodramática) para se acentuar a capacidade de Tezuka em navegar em várias águas, bebendo de várias fontes e devolvendo valores variados. Mas a outra grande contribuição de Atom para o sucesso de Tezuka seria a produção de animação que sempre almejara: em 1963 estrearia a série no Japão, com realização do próprio Tezuka e, no mesmo ano, seria distribuída (com trabalho de edição local) nos Estados Unidos sob o título de Astro Boy. É essa passagem que cria talvez a primeira grande ponte popular entre a banda desenhada e a animação japonesa e a ocidental (para já, a norte-americana). O fascínio que criou então não pararia de se expandir. E Atom/Astro Boy é o seu ícone (não sem razão é ele quem está na capa da The Anime Encyclopedia).
Algumas das personagens - e este é um dos traços reconhecíveis de Tezuka - são recorrentes de título para título (o Doutor Ochanomizu, o professor Bigodes, outros), mesmo que desempenhem papéis diferentes. São, como já indicado por outros escritores sobre Tezuka, verdadeiros “actores de papel” que são como que convidados a participar em vários projectos. Muitas vezes, são elas mesmos que o afirmam textualmente, criando essa ironia conhecida na obra do autor japonês. Acrescente-se a isto as cameos do próprio Tezuka em “cena", e consolidaremos ainda mais essa vertente cinematográfica amada pelo mangaka.
Ainda um outro aspecto a sublinhar é o facto de que aquelas transformações narrativas em relação à personagem se fizeram acompanhar de recriações ou correcções a nível gráfico (aliás, bastará olhar para as lombadas destes três volumes da Asa para notar em algumas diferenciações, que oscilam entre as várias proporções clássicas (que funda mesmo) das personagens infantis da mangá e animé: entre 4 a 5. Essas reformulações mesmo a nível gráfico em nada deverão surpreender os leitores, já que é conta corrente em muitos outros “clássicos” da banda desenhada mais comercial, afectas ao trabalho de estúdio, passe pelas revisões constantes de alguns dos álbuns de Tintin, passe pelas reformulações da Turma da Mônica. As versões que agora a Asa publica corresponde à sua última versão, mais modernizada, idêntica – se bem que não seguindo a mesma ordem e plano de edição – àquela da Dark Horse.
A descrição da The Anime Encyclopedia desta personagem é muito correcta, falando de uma mistura entre o Pinóquio e o Super-homem, e se se “desempacotarem” os elementos que compõem essas outras personagens clássicas, os leitores entenderão rapidamente quais os pontos de contacto. Não sendo a primeira série de ficção científica que Tezuka criou, nem sequer a primeira em que apresentou uma personagem que recebeu a simpatia de um grande público (essa será encontrada em Ken’ichi, personagem utilizada em variadíssimas histórias), nem tampouco a que colocava alguns temas significativos retirados à experiência social japonesa do pós-guerra, esta série é no entanto aquela em que esses elementos encontram um equilíbrio perfeito entre a ficção e fantasia (para não dizer escapismo) e o peso real desses mesmos temas. O carácter inocente, infantil, mas não desprotegido de Astro, a sua submissão a princípios morais e societais, a sua abnegação num qualquer combate, e a sua permanente mistura entre alegria e melancolia, são também alguns dos elementos que o compõem e aproximam daquelas outras figuras míticas da cultura popular infantil.
Estas mesmas características são o que explicam a fama transversal desta personagem (que se explicará também, naturalmente, pelos factores históricos de exposição, algo que se diferenciará nos nossos dias: esta edição não encontrará nos adultos, exceptuando os nostálgicos e os curiosos, o seu público-alvo) independentemente do seu género narrativo ou até a proposta básica do seu público leitor. Isto é, apesar da grande diferenciação de públicos em termos de idade e sexo na indústria cultural japonesa (o que não é diferente da europeia ou norte-americana, ou outras ainda), a verdade é que o encanto de Astro é bem mais alargado, convidando rapazes e raparigas desde a pré-adolescência a jovens adultos (ou para além disso) a encontrarem prazer na leitura desta obra.
Estes três livros têm mais de uma história, que se podem estender desde uma vintena de páginas a mais de cento e cinquenta. As menores são pequenas tramas em torno de episódios curtos mas que não dispensam a espectacularidade, as maiores são verdadeiros tours de force entre a simplicidade necessária a uma literatura infantil, e a capacidade em criar enredos de alguma complexidade, com suspense, volte-faces e até mesmo diálogos que expõem a política e filosofia humanista preconizada pelo autor. Uma das lições ou inflexões na cultura popular que Astro Boy inaugura é a imagem positiva dos robôs, ou melhor, ele é “um dos primeiros dos muitos amistosos robôs japoneses que contrastavam com as imagens de fobia de desumanização que dominavam a ficção científica ocidental” (como se lê na Introdução da antologia de ensaios Robot, Ghosts and Wired Dreams). Contribuiria, por exemplo, para a emergência da produção e consequente exportação a nível mundial de brinquedos sob a forma de robôs. Sem Astro Boy não haveria Goldrake, nem Tetsujin 28-Go, nem Doraemon, nem a Arale do Dr. Slump, nem os mecha de FLCL, etc., etc… E, de certa forma, não há muitas produções de ficção científica que se tenham seguido, no Japão e noutros locais, que não encontrem nesta série (mas, claro, noutros quadrantes igualmente, como a literatura) alguns dos seus modelos: de Ghost in the Shell a A.I.
No que diz respeito à inscrição desta série nos cânones da ficção científica, é preciso (será?) sublinhar a óbvia citação das três leis da robótica, tais como fundadas por Isaac Asimov. E tal como muitos autores da F.C. procurariam os espaços intersticiais e paradoxais entre essas leis para a construção de contos e novelas famosos, a história “O melhor robô da terra” (vol. 3), de cento e oitenta páginas, coloca-as no centro das discussões entre o próprio Astro e Plutão, um robô construído com o intuito de destruir todos os outros robôs famosos no seu mundo ficcional. “O regimento hotdog” é também curioso nessa vertente, sendo irmanável, num tempo e atitude diferente, com o programa de We3, de Morrison e Quitely. A origem do “mal” estará na óptica utilitária dos criadores, e não das suas criações, sobretudo quando estas começam a nutrir alguma autonomia mental e até, poderemos dizer, moral.
Um ensaísta japonês, Otsuka Eiji, estudando precisamente esta personagem, e integrando-a não apenas na carreira de Tezuka mas no seu especificíssimo contexto histórico (e todas as suas dimensões políticas, militares, tecnológicas, económicas e de relações internacionais), e ainda apontando para a importância particular do seu nome original, “Poderoso Átomo”, explicita um dos significados de maior monta dela, inserindo-a na ideologia evidente da parte de Osamu Tezuka pelo desamarmento atómico preconizado por Tezuka, lendo Astro Boy como “uma arma atómica desarmada” (em “Disarming Atom: Tezuja Osamu’s man at War and Peace”, in Mechademia 3).
Se arma necessária for, pelo menos estes três volumes serviram de munição excelente.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros.
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