Gostaríamos de ter falado dos números que vão saindo da Mechademia, do Journal of Graphic Novel & Comics, o número especial da Transatlantica, mas não há tempo sequer de os ler, anotar e devolver aqui. Falemos portanto, brevemente, destes dois volumes. Ambos partem de alguns pressupostos estranhos, indicados nas respectivas introduções, que sublinham a ausência de departamentos de estudos de bandas desenhadas mesmo nas universidades norte-americanas (aquelas mais preparadas para a incorporação de novas áreas de investigação, novas metodologias, maior descontracção disciplinar, etc.) mas como se isso significasse que se está a trabalhar num (ainda) vazio de estudos. O gesto é claro: se eu disser que não há grandes desenvolvimentos de x, para depois avançar o meu próprio desenvolvimento, ele parecerá mais forte do que é. Mas isto não é honesto. Face a pelo menos trinta anos de fortes estudos de banda desenhada, que já nada têm a ver com uma especialização de coleccionador, fã ou maluquinho monomaníaco, mas sim com a construção de diálogos disciplinares entre um objecto de estudo e instrumentos testados o mais completamente possível, não há praticamente tema, vertente, abordagem, ou capítulo desta arte que não tenha sido já encetado de uma forma ou outra e, por isso, merecedores da nossa atenção e continuação. Por isso, a contínua referência – quase exclusiva – a nomes como Will Eisner e Scott McCloud torna-se um pólo de, dramatizando um pouco, exasperação. E há toda uma série de pequenas incorrecções ou afirmações deixadas por explicar que levam a pensar que poderia ter existido um filtro editorial um pouco mais apertado. Se bem que esta seja uma parte muito pouco importante, as próprias capas não abonam em favor de um posicionamento estético forte, pois usam material anódino, quase aleatório (com a excepção de uma vinheta de Doucet) e que em nada informam o interior das discussões. Isto não significa que os ensaios encontrados nestes volumes não dêem passos magníficos em relação a alguns dos seus campos, que não expandam investigações existentes, mas há algo de vexatório na forma como são apresentados no início. E a sua leitura em conjunto revela grandes afinidades (para além de autores em comum) e frutos positivos. Para mais, muitos dos investigadores destes volumes – escritos ou publicados em inglês – são de investigadores alemães, o que nos dá um vislumbre de uma escola profundíssima e fantástica de estudo deste território; infelizmente, para aqueles que como nós não sabem ler alemão é um vislumbre que apenas aguça um apetite que dificilmente será satisfeito. Fruto de seminários, encontros e workshops havidos pela Europa - o Nexus em Lambrecht, na Alemanha, o Rise and Reason por convite de dois professores da Universidade de Amsterdão – é em todo o caso um hausto novo e diferente daqueles quadrantes a que estávamos habituados e, por isso, sensivelmente mais internacionalizados desde logo.

A parte dedicada à teoria e terminologia da banda desenhada tem um estudo sobre os balões de fala que recordará os tempos áureos do estruturalismo puro e duro, mas ainda assim chegando a ideias não apenas plausíveis como úteis (Charles Forceville, Tony Veale e Kurt Feyaerts), uma discussão sobre o tempo na banda desenhada (por Kai Mikkonen, usando o livro de Guy Deslile, Pyongyang) e outra sobre a “arquitectura composicional” de Chris Ware (por Angela Szczepaniak, que encontraria um perfeito espaço de divulgação no livro debatido anteriormente). No que às adaptações dizem respeito, Dirk Vanderbeke discute adaptações de romances famosos e Dan Hassler-Forest aborda o cariz político - fortíssimo, até mais forte do que o próprio realizador Zack Snyder pretende ter - do filme 300.
Os dois outros capítulo fecham-se em aspectos de género mas para os desdobrar e abrir. Primeiro, em relação aos super-heróis, discutem-se vários clássicos (Watchmen, The Dark Knight Returns, títulos da Elseworlds) para se sondar a ideia de fim ou pelo menos de transformação profunda de um género (Andreas Rauscher), a fabulosa, até mesmo literalmente, série Planetary, de Ellis e Cassidy (por Karin Kukkonen), e as ligações que The League of Extraordinary Gentleman faz com a chamada “celebrity culture” (um termo específico dos Estudos Ingleses, por Jonathan E. Goldman). Depois, em torno da não-ficção, estuda-se a densa tessitura entre facto e ficção em From Hell (Julia Round), explora-se o “Black nationalism” numa série de trabalhos (James Braxton Peterson), as respostas ao 11 de Setembro (Christophe Dony e Caroline van Linthout) e um estudo que põe em causa, de uma maneira sólida e marcante, a inscrição da obra de Joe Sacco no território do “jornalismo” (por Benjamin Woo, e que deverá ser lido em conjunto com um estudo contrário encontrado no outro livro).

A segunda secção é dedicada à esfera do “International”, sobre a banda desenhada de autores canadianos (Michel Rabagliati por Michel Hardy-Valée), alemães (Karl, de Apitz e Kunkel, por Sandra Martina Schwab), escoceses (Oor Wullie por Anne Hoyer), turcos (filmes que transformam coisas como Flash Gordon, por Meral Özçinar), indianos (uma nova casta de super-heróis locais, que bebem tanto da tradição milenária indiana como dos comics dos EUA, por Suchitra Mathur), japoneses (um excelente ainda que pequeno ensaio de Holger Briel sobre as radicalmente diferentes maneiras de ver - um processo complexo e mais cultural que físico - entre o Ocidente e o Oriente, e um outro estudo sobre o fenómeno Lolita/Rorita-con no Japão).
Uma pequena surpresa nesta secção é a inclusão de um estudo sobre Salazar. Agora, na hora da sua morte de João Paulo Cotrim e Miguel Rocha, pelo português Mário Gomes (doutorado em Bona e Florença) e Jan Peuckert. Logo à partida, é uma felicidade que uma obra portuguesa penetre neste contexto dialogante e académico, o que, sem querer transformar isso numa exagerada leitura, é uma forma de internacionalizar a criação nacional, “por cima”. O seu título é relativamente explícito: “Memento Mori: A Portuguese Style of Melancholy”. Trata-se de uma “close reading” desse magnífico livro, tentando auscultar os profundos elos entre as escolhas formais (“dípticos” e “tableaux”) e o tema em si (a morte de Salazar), revelando alguns aspectos importantíssimos, revelados por este escavar teórico. No entanto, o estudo em si revela algumas fragilidades, sobretudo pelas generalizações com que se inicia, na secção “Comics in Portugal (A Sad Comical Fado)”. Apesar de apontar algumas verdades - que a esmagadora maioria da produção de banda desenhada no Portugal contemporâneo está mais associado a uma elite artística e intelectual do que a um mercado expansivo - há outras decisões de leitura que podem levar a algumas interpretações desequilibradas. Estas nossas notas não devem ser vistas como críticas, uma vez que se trata de um curto ensaio e seria impensável exigir um panorama profundo da história desta arte no nosso país. O propósito a que se dedica é mais do que cumprido, e o estudo da obra de Cotrim e Rocha sai fortalecida deste escrutínio.
A secção ainda discute cruzamentos, por um lado a representação de europeus na banda desenhada norte-americana como vilões e/ou anti-heróis (Georg Drenning) e exemplos da mangá alemã (Paul M. Malone) e, por outro, a chamada “Brit Wave” dos anos 1980, na relação que têm com a mítica revista 2000AD (Ben Little), ou sobre autores/obras específicos (Moore, Ellis e Morrisson por Karin Kukkononen e Anja Müller-Wood).
A última secção, “Interdisciplinary”, é dedicada à apresentação das notas e conclusões de toda uma série de workshops levados a cabo em Lambrecht, com os autores presente neste volume e para além dele. Aqui teremos algumas ideias e noções sobre a possibilidade de uma “caixa de ferramentas” para o estudo da banda desenhada, o uso da banda desenhada nas escolas, o seu uso específico nos estudos literários e nos estudos cinematográficos e uma abordagem linguística sobre banda desenhada e cartoons (Christina Sanchez).
No geral, ambos os livros, com ensaios generalistas - isto é, não presididos por uma perspectiva comum e concorrente; Charles Hatfield, numa discussão semi-pública,, fala da ausência de um “centro conceptual firme” -, tentam demonstrar como o impacto entre a banda desenhada e várias disciplinas e meios pode levar não apenas a uma leitura mais rica da própria banda desenhada, como esse mesmo estudo pode contribuir para o entendimento desses outros meios ou a aplicabilidade dessas outras disciplinas. Ambos blocos necessários a este torre sempre em construção.
Nota final: agradecimentos à editora pelo envio dos dois volumes.
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