Outros modos dessa apresentação num simples conjunto é aquela que é conseguida com estes três livros, de naturezas totalmente diversas. Uma antologia de histórias curtas, propositadamente criada em torno de um tema e personagem, com autores de um mesmo país (a Roménia), um pequeno texto de apresentação sumária da história de uma tradição de banda desenhada, profusamente ilustrado com exemplos de um outro (a Suécia) e um volume académico que procura estudar e dar a ver as especificidades culturais da banda desenhada de um terceiro país (a Rússia). Todos eles conseguem um propósito diferente, conseguido, todos eles impedem-nos de ver essas mesmas (tradições de) bandas desenhadas de um modo mais íntimo...

O conceito por detrás deste projecto é extremamente interessante e produtivo. Criou-se a ideia de uma personagem, chamada George, e faz-se a pergunta mais simples: “Quem é George?” depois convida-se um número significativo (vinte) de autores contemporâneos de banda desenhada de um país – neste caso a Roménia – e procura-se que eles respondam através de histórias curtas, abordando da sua “infância” à sua “morte”, passando pelos seus problemas, vícios, pequenas aventuras, amores, segredos, animais de estimação... Os resultados são necessariamente diferentes, encontrando desde abordagens mais familiares, genéricas, de uma legibilidade total, a experimentalismos relativamente desconfortantes, mesclando colagens e ilustração, deslocações narrativas e ecos mais ou menos reconhecíveis de trabalhos anteriores. Este retrato permite-nos perceber uma amplitude saudável na produção de banda desenhada romena, e o projecto tem

Enquanto projecto, parece um excelente ponto de partida, moldando assim um ar familiar entre os trabalhos dos artistas convidados. Mas a pulsão da criação que impera o trabalho de cada um desses mesmos autores, em termos individuais e autónomos, poderá estar sacrificada aqui em nome do projecto. De facto, é como uma embaixada: formalmente criada de propósito para vogar fora do seu país, compondo uma imagem planeada, necessariamente artificial.

Este é um daqueles autores que têm contribuído com pequenas monografias visuais dedicadas a um tema específico afecto à banda desenhada e, ainda que não apresente uma investigação revestida por instrumentos verdadeiramente académicos, ou sequer intelectuais consolidados que possa ser vista como a perseguição de uma ideia, é capaz de dar a ver uma lista pertinente sobre esse mesmo tema. Neste espaço tivemos a oportunidade de falar de um desses projectos, The Comics Goes to Hell, sobre as imagens do Diabo nesta arte, mas Strömberg fez também volumes sobre a representação dos negros na banda desenhada (Black Images in the Comics) e ainda o excelente Comic Art Propaganda. Este livro baseia-se num texto panorâmico sobre a história da banda desenhada sueca que o autor já havia publicado (inclusive no IJOCA), mas que aqui se torna profusamente ilustrado nos seus exemplos julgados mais importantes. Os fãs de Max Andersson e Lars Sjunnesson, os leitores das duas antologias, co-editadas e distribuídas pela Top Shelf, From the Shadow of the Northern Lights, dos magníficos trabalhos de Anneli Furmark, publicados na Drawn & Quarterly Showcase, ou os que se recordam do belíssimo projecto de Joanna Hellgren, encontrarão esses mesmos autores contemporâneos suecos, quiçá os mais representativos de um ponto de vista crítico, neste breve mas bem estruturado estudo, colocados num contexto muito alargado. Partindo das raízes suecas daquilo que pode contribuir para a “pré-história” da banda desenhada (as estelas cobertas de imagens e runas), Strömberg atravessa pioneiros da banda desenhada moderna europeia como Pehr Nordquist e Frederik Von Dardel, expõe o modo como autores tais como Oskar Anderrsson, Albert Engström e Oscar Jacobsson moldaram o

Apesar de ser um texto relativamente pequeno (é um livro que se lê numa só tarde), a experiência e capacidade de síntese do autor permite-lhe um equilíbrio excelente entre informação pura e dura (datas, nomes, curtas biografias, números) e uma verdadeira assinatura cultural, sublinhando ou enfatizando características que se têm mantido na produção de banda desenhada neste país, o que lhe garante uma curiosa personalidade. No entanto, esse discurso está delimitado à banda desenhada, sem quaisquer cruzamentos intermediáticos ou interartísticos. Há diversos casos que estimulam o desejo de querermos saber mais, ou de fantasiar por uma tradução numa língua mais acessível, ou mesmo supor que num contexto comercial mais feliz a Suécia poderia ser um campo de colheita de trabalhos a divulgar junto a leitores interessados.

A última forma de dar a conhecer uma tradição nacional (nesta nossa abordagem circunscrita) é a de um volume académico. Isto é, a um grau superior da mera apresentação de nomes, datas, factos, etc., há uma procura activa pela consolidação desses mesmos factos num estrato substancialmente sedimentado, através da consulta, comparação, cotejamento com outros estudos, autores, artes e discussões com anos, senão mesmo décadas, de desenvolvimento e acuidade. Alaniz, tal como Strömberg, baseia-se em alguns dos seus escritos anteriores, se bem que no caso do especialista de banda desenhada russa, essa produção seja mais alargada e transversal e - também importante - externa. Alaniz não é russo, logo a paixão dele não se pautará por qualquer zelo nacionalista, que poderá sempre ocorrer, de modo natural e em vários graus, em qualquer um de nós na defesa da banda desenhada do seu próprio país.
A apresentação da matéria é sobretudo cronológica, se bem que seja seguida por uma parte de “close readings” que aborda os temas das relações com exposições museológicas e as artes visuais, o tratamento nesta arte dessa nova classe social a que se dá o nome de “Novos Russos”, um estudo sobre os poucos exemplos da banda desenhada autobiográfica (é o caso de Nikolai
Aquele movimento nacionalista natural nas pessoas, aliado à ainda e talvez sempre necessidade em reiterar a legitimação cultural da banda desenhada leva estes movimentos: buscar-se no conhecimento da cultura de um dado país os exemplos mais recuados possíveis para estabelecer uma superioridade cronológica e artística neste território, ou por outras palavras, encontrar os “primeiros” da banda desenhada. Strömberg havia falado das pedras vikings, os portugueses poderiam vasculhar pelas nossas escolas de iluminação, o ciclo do Senhor Roubado, e muitos outros exemplos… Alaniz encontra nas gravuras populares conhecidas como lubok, ou lubki uma das suas raízes mais recuadas, nos pequenos espectáculos conhecidos como rayok, nos trabalhos de ilustradores como Ivan

É como se existissem duas linhas evolutivas de criação da banda desenhada. Uma mais “russa”, autóctone, quer do ponto de vista formal - o esforço contra a desconfiança das imagens por uma cultura profundamente verbal (independentemente da alargada iliteracia no país antes da Revolução Soviética), a procura por um estilo propositadamente rústico, menos dinâmico do que simbólico e alegórico - quer do ponto de vista temático - bebendo de um grupo relativamente coeso de assuntos, repetindo leit motivs, personagens-tipo, ou até mesmo posicionamentos nem sempre aceitáveis (um humor brejeiríssimo, uma misoginia inveterada, não muito diferente dos nossos próprios portugueses) e outra composta por estes exemplos mais contemporâneos, influenciados por várias tradições estrangeiras (outros dos factores que Alaniz aponta como sendo um obstáculo à aceitação da banda desenhada como um meio digno de atenção naquele país), e que acabam por se revestir como meras imitações, superficialmente adaptados. Uma destas questões - a ausência de uma respeitabilidade pela banda desenhada devido à forte componente verbal, e até mesmo literária (o ensaísta aborda a característica da literaturnost, da literariedade dos Formalistas) - é relativamente estranha no sentido em que esbarra com uma outra gigantesca e magnífica tradição de um meio de narrativa visual na Rússia/União Soviética, que é o cinema de animação. No entanto, o autor jamais aborda quaisquer relações entre essas duas linguagens de um modo sistemático, e esse mesmo silêncio cria um desacerto que apenas nos deixa dúvidas e questões.

Outro aspecto menos feliz tem a ver com as imagens do livro. Quer as imagens a preto-e-branco espalhadas ao longo do texto quer aquelas a cores numa separata especial são demasiado pequenas, raramente são traduzidas e acabam por - dada a escolha particular do autor em relação aos seus objectos de estudo - não contribuir de um modo decisivo para o despertar de um desejo de maior acesso e leitura (o que não ocorre no caso sueco, por exemplo). O autor criou um blog, no qual disse que apresentaria “actualizações, correcções, e ilustrações suplementares”, mas apesar de ter algumas informações sobre banda desenhada russa, infelizmente essa descrição não é exacta. Logo, fica por satisfazer essa curiosidade natural em ver/ler mais, que esperamos venha a ser resolvida através de mais traduções, antologias ou outros gestos.
Pois é lendo a(s) própria(s) banda(s) desenhada(s) em primeiro lugar que nos podemos aproximar de um conhecimento mais directo, ainda que estes desvios nos ajudem a ler melhor ou a saber como procurar ler.
Parcialmente, como dissemos, temos alguns desenvolvimentos nesta curta entrevista com Alaniz.
Nota final: Agradecimentos a Marcos Farrajota pela oferta de The Book of George; a cópia do livro Swedish Comics History pertence à Bedeteca de Lisboa.
Muito obrigado, Pedro!
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