Muitas vezes surge a discussão sobre se poderá existir “poesia” em banda desenhada. A pergunta em si mesma é problemática, pois obrigar-nos-ia a apresentar uma eventual e utilizável definição de poesia. Se escolhermos a ideia base dos modos clássicos, fazendo-a distinguir-se da narrativa e do drama, estaríamos tacitamente a querer logo afirmar que a banda desenhada terá afinidades mais imediatas com esses dois outros modos do que com a poesia (por razões óbvias em termos históricos e genéricos, mediáticos e de suporte comunicacional, e até pelas suas raízes na modernidade). Poderíamos apalpar terreno à procura de características “líricas”, certos usos metafóricos da palavra, mecanismos formais como rimas e figuras de estilo, mesclas entre o silêncio das palavras e estruturas musicais, magias de transformação e transfiguração da linguagem... e aos poucos, ou a cada elemento desses identificados, encontrar-se-ia um ou dois exemplos provindos da banda desenhada. Esse será o caminho “lírico” de Heine: “Onde faltam as palavras, começa a música; onde as palavras esbarram, o homem não pode senão cantar”. Olhamos e procuramos a música na banda desenhada, encontrando-a nas magníficas composições de Winsor McKay, nas experimentações gráficas/plásticas dos Abstract Comics, nas “rimas internas” de Chris Ware, nalgumas composições de página ou moldagens figurativas desviantes da narrativa em Breccia, Mattotti, Ricci, Abranches, Feuchtenberger, e outros. (Mais)
Mas antes do canto, no intervalo entre a música e o fim das palavras, também poderia estar aquele “balbuciar” de que fala Deleuze (e Guattari), uma transformação da construção sintáctica da língua/linguagem para fundar uma “língua estrangeira” no interior da língua, “fazer balbuciar a língua de forma a elevá-la a um certo nível musical” (in L’Abécédaire), exercer uma pressão numa língua dominante que a leve aos seus extremos e limites” Esse é um outro caminho, ligeiramente mais complicado (in Kafka. Para uma Literatura Menor). É a experimentação no seu mais puro, cujo resultado é sempre nómada de si mesmo, apenas no fim do seu acto se comprovando qual havia sido o seu desejo.
Tentar descrever a história (a narrativa) deste pequenino livro não é de todo difícil, e, ao fazê-lo, não apenas revelaremos aquelas informações diegéticas objectivamente presentes - através das palavras ditas e escritas, através das imagens visíveis - como ainda as linhas que as ligam, uma qualquer interpretação, uma perspectiva geral de um corpo que na verdade não se apresenta senão fragmentado, indeterminado, flutuante. Ou seja, a imposição dessa sinopse será sempre uma violência de “certezas” sobre o modo como The Whale respira, que é a de uma calma tensa, uma lentidão breve. Podemos imaginar o seguinte: uma mulher jovem vive isoladamente numa casa perto do mar, sobrevivendo ao que parece ser um acidente de automóvel, no qual “S.” morre. Alguns amigos telefonam-lhe, preocupados, mas a jovem mulher não deseja encontrar-se com ninguém, e apenas viver essas emoções sozinha, na companhia do cão, arrumando as coisas de S., pensando sobre coisas… Mas estamos a tentar adivinhar, pois não saberemos jamais como se chama a mulher, qual a relação exacta com S., se se trata de facto de uma ausência marcada pela morte. Derik Badman, nas suas usualmente excelentes críticas, aponta as suas próprias dúvidas e, mais ainda, quais os pontos em que encontra razões para sentir que dos trabalhos de Koch em vários mini-comics, e que desconhecemos, este é o menos livre e que procura até mesmo algum grau de explicitações (por ser o maior trabalho da autora até à data).
Sendo um livro pequeno (menor que 21 x 16 cm), e tomando em consideração a importância do formato publicado (segundo uma lição de Pascal Lefèvre), não poderemos esperar que a composição das páginas procure uma forma totalmente liberta, tabular, explodida, tal como se encontrariam em trabalhos em formatos gigantes (como se esperava do derradeiro número da Kramer’s Ergot). Isto não significa que a autora não explore as várias soluções possíveis neste formato: existem páginas, mesmo duplas, ocupada por apenas um desenho, desprovido de qualquer material verbal, outras páginas divididas em pequenas grelhas de três vinhetas horizontais, ou quatro rectangulares, ou outras combinações, sendo algumas dessas vinhetas mesmo ocupadas apenas por texto (usualmente que percebemos pertencer as reflexões da protagonista). Essas divisões procuram respeitar, a par e passo, ora a focalização ocular da mulher, ora modos de pausa associados ao seu estado de espírito, ora ainda a modos de dar a ver as suas reacções e pequenos gestos.
Uma página de maior compartimentação, por exemplo, aponta para os vários objectos que S. coleccionava (pedras, conchas e pedaços de madeira fustigados pelos ares frios e pelo mar), com as respectivas palavras em vinhetas ao lado. A imitação mesmo que superficial dos gabinetes de curiosidades é óbvia, e essa página quer apontar para um gesto de organização do mundo, de construção de um Atlas que era buscado por S., mas desfeito pela mulher, ao “devolver” todos esses objectos aos seus pontos de recolha. Esse abandono dos objectos é transposto a outro nível pelo que parece ser uma tentativa de suicídio e de identificação com uma baleia tropical perdida, que havia dado àquela costa e morrido. Não haverá maior “desfazer do mundo” do que a morte do si, mas ao mesmo tempo a liquefacção do si num outro, mesmo que esse outro seja o mar, é um transformar-se, previsto também no modo como a mulher se deseja libertar de todos esses grilhões da memória, evitada mal surge neste livro. Mas todas estas leituras não são directas nem líquidas, pois são mais os pormenores de silenciamentos e ausências do que os elementos oferecidos à re-construção de um sentido passível de tratar com uma sinopse.
O desenho de Koch é muito simples e legível, e os seus trabalhos de lápis colocam-na tanto ao lado de Blaise Larmee (de resto, o seu editor) como de Vähämäki (e outros). Se bem que esta linha que procuramos desenhar sobre a poesia pudesse ser encontrada com outros autores mais dedicados à demolição das ideias centrais da banda desenhada (como aqueles do D&I) ou à exploração plástica das potencialidades desta arte (os autores afectos à Frémok), Koch fará parte sem dúvida daqueles autores que não se sentem em nada obrigados a perseguir uma noção de banda desenhada reduzida à sua prestação narrativa e genérica. É um outro modo, dentro da banda desenhada, de fabricar uma sua língua menor, estrangeira. É, pelo menos, querer abrir esta porta nessa direcção: “Encore heureux/Qui peut trouver la porte/Et pleurer devant elle” (Guillevic, 1963; “Feliz ainda quem/Pode encontrar a porta/Chorar diante dela”, em tradução de David Mourão-Ferreira).
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