Imediatamente nesta abertura, temos de confessar um certo desagrado pela instrumentalização da banda desenhada para fins ulteriores que não o de si mesma. Se bem que compreendamos que qualquer objecto, inclusive artístico, por mais forte que seja a sua ontologia intrínseca, possa vir a ser empregue de uma qualquer forma que possa não ter sido prevista na sua criação, e assim sendo qualquer arte é passível de se vir a tornar um instrumento de veiculação de conhecimentos, há sempre uma perigosa secundarização das suas próprias especificidades ao ocorrer esse uso. A banda desenhada não está sozinha nesse emprego, e também o cinema, a poesia, a pintura pode emergir enquanto documento histórico, des-esteticizado, como plataforma de informação factual, etc. Porém, ao passo que essas outras áreas criativas têm uma massa crítica e interpretativa forte o suficiente para que se defendam das generalizações possíveis – afinal, posso ver cinema dos anos 30 e 40 para compreender os modos de transportes e de comunicação do seu tempo, mas há obras que não se esgotarão nessa pesquisa – a banda desenhada acaba por ser tornada uma pasta mole em que “tudo é igual”... levando àquelas centenas de texto que se iniciam “a banda desenhada, sendo uma linguagem relativamente fácil [por vezes, “universal”!], é entendível por todos”, etc. Assim, a banda desenhada, por poder, de facto, ser empregue enquanto linguagem visual, para instruir alguém a utilizar uma ferramenta, a se recensear, ou, ainda, a reduzir os elementos diegéticos de um romance num novo texto mais “curto” e “directo”, sofre dessa instrumentalização de um modo muito particular.
Quadrinhos na Educação, todavia, não apresenta esse tipo de instrumentalização; é antes uma espécie de mapa e de guia, a um só tempo. Trata-se de uma investigação dos dois autores, afectos ao círculo dos estudos em banda desenhada no Brasil (sendo o Observatório de São Paulo o seu órgão mais visível), sobre a relação entre a escola brasileira e a produção de banda desenhada no seu país. Tendo em conta o aparentemente excelente mercado brasileiro, no que diz respeito à edição (quer de autores nacionais quer de traduções de clássicos e contemporâneos), distribuição nacional, divulgação em vários meios de comunicação e imediata integração em planos de leitura e estudo, ou pelo menos um panorama mais feliz e moldado que o português, uma ajuda que categorize (mesmo que seja para depois discutir essas mesmas categorizações), organize (por mais aberta que essa organização seja) e relacione (de formas várias) todos esses livros perfaz certamente um instrumento não só válido como desejável.
Poderemos entendê-lo ainda como um modo de seduzir os alunos “para a leitura”. Manual destinado a professores, bibliotecários, divulgadores, investigadores ou curiosos em segundo grau, estará na mão desses interlocutores a procura por entre a matéria de adaptações de obras clássicas (nacionais ou internacionais), de forma a eleger qual a melhor bandeira colorida de puxar os jovens para outros territórios que lhe são alheios. As mais das vezes a banda desenhada vê-se a ocupar esses papéis, que roçam ou mergulham na tal instrumentalização, mas entendemos ser inevitável em certos passos.
A adaptação é talvez o maior e mais recorrente território de diálogo entre a banda desenhada e esse outro campo imenso, mas também elusivo, demasiado complexo para se esgotar no seu descritor, da literatura. Verter o “conteúdo” de um romance ou de uma novela num outro veículo, através de uma outra linguagem, meio, modo, não levará jamais ao mesmo lugar, ao mesmo efeito, à mesma impressão, à mesma mestria. O Berlin Alexanderplatz, de Döblin, foi adaptado ao cinema (1931) e à televisão (Fassbinder, 1980), mas nem num caso nem no outro se pôde dar conta das flutuações e rearranjos da linguagem feitos pelo autor; e mesmo a sua tradução portuguesa não poderá dar conta dos níveis mesclados do alemão. Georges Simenon poderá ter escrito uma intricada e desesperante trama em L'Homme de Londres, mas Béla Tarr, ao “adaptá-la”, fez um filme muito seu, integrado na sua própria obra (The Man From London, 2007). Todos os autores dos exercícios da colecção O filme da minha vida, da Ao Norte, não pretendem refazer filmes “em papel”, mas sim repor impressões, memórias, vivências, jogos de elementos a partir dos filmes originais num novo texto de banda desenhada. Jochen Gerner preocupa-se menos com verter as histórias do que translações conceptuais dos textos originais que usa. E assim continuaríamos... o ponto principal é que, não obstante a existência de variadíssimos exemplos de diálogos, transformações, transfigurações e desvios desses possíveis encontros, a óptica escolar procurará sempre prestações básicas, menos criativas e, por isso mesmo, eventualmente contra-producentes para o próprio meio.
Em rigor, os autores reunidos neste volume não subscrevem esse uso mediato. Bem pelo contrário, em vários momentos alertam para o facto dos critérios e factores decisórios dos poderes educacionais serem moldados por entendimentos externos à própria banda desenhada, em vez de auscultar os seus valores intrínsecos, as suas especificidades formais, estéticas, históricas ou até mesmo os perfis exactos dos livros em questão, uma vez por outra mal integrados no seu propósito ulterior educativo. O que leva a um entendimento enviesado e até pernicioso para a apreciação total desta área de criatividade.
O primeiro estudo foca muito especificamente os Parâmetros Curriculares Nacionais e o Programa Nacional Biblioteca na Escola, ambas acções ministeriais e políticas dos governos brasileiros, iniciados na presidência de Henrique Cardoso e encontrando continuidades com inflexões importantes na de Lula da Silva. Esses planos permitem “aos estudantes o acesso à cultura e à informação e estimular o hábito pela leitura” (pg. 12), através da construção de lotes de livros, que depois seriam distribuídos a nível nacional. Os livros aos quadradinhos passaram a fazer parte desses lotes a partir de 2006, tendo começado com números relativamente baixos, mas que se tornariam aos poucos mais significativos (em 2006 eram 4,5% do total, depois subiriam, se não em percentagem, pelo menos em números absolutos). E aqui encontraremos os inevitáveis Astérix & Obelix ou obras de Ziraldo, ou clássicos infantis traduzidos como a Luluzinha (na nova integral providenciada pela Dark Horse, publicada no Brasil pela Devir), como ainda A Metamorfose adaptada por Peter Kuper, Na Prisão de Hanawa, Courtney Crumrin & as criaturas da noite, de Ted Naifeh, e obras de Larry Gonick, Eisner e Sfar, assim como obras contemporâneas de autores brasileiros tais como Caco Galhardo, Spacca, Laerte, Fábio Moon e Gabriel Bá, Hannes Binder e Lisa Tetzner. Só esse pequeno catálogo mostra desde logo a forma mais atenta e sistemática como o mercado brasileiro responde à produção internacional.
Depois seguem-se estudos mais focalizados por vários autores, abordando géneros ou famílias criativas da banda desenhada, providenciando leituras mais moleculares dos vários livros propostos ou aconselhados, apresentando uma história sumária mas excelentemente estruturada para cada um dos capítulos (aberta à circunstância internacional mas atenta à realidade brasileira), assim como exercícios de leitura e pequenas questões de estudo mais específico a esta linguagem artística, etc. Nesse sentido, temos: Biografias, Aventura, Mangá, Literatura (ou Adaptação), Infantil e Humor (incluindo o cartoon).
Trata-se de um livro que imagino ser um instrumento indispensável nas escolas brasileiras. Gostaria de o imaginar transposto, enquanto projecto pelo menos, para a realidade portuguesa, mas a falta de um mercado constante, coerente e variado inviabilizaria de raiz qualquer abordagem com a mesma qualidade.
Nota: agradecimentos ao Professor Waldomiro Vergueiro, pelo envio do seu livro.
ainda não escreveste nada sobre o valérian (christin/mézières)? vi no arquivo do blog
ResponderEliminarNão, não escrevi nada. Porquê? Faz falta?
ResponderEliminarPedro
era só pa saber a tua opinião. podias gostar ou não, podias ter curtido quando eras puto. ou não.
ResponderEliminarSim, claro que li, e gostava ou gostei (não tenho lido os últimos). A Laureline faz parte das fantasias usuais de papel, e são livros que têm ainda algum grau de interesse, misturando fc com assuntos contemporâneos políticos (de resto, como toda a boa fc). Era melhor pelo Christin do que pelo Mézières, e sei que vai sair algo de novo na colecção Público, mas duvido que me dê para falar sobre isso... De qualquer modo, este blog não é para falar do que "curto"... é outra onda.
ResponderEliminarTambém, espero, na boa.
Pedro
na boa, claro.
ResponderEliminareu li muito quando era miúdo, aquilo saía no jornal da bd, salvo erro. depois também deixei de ler. agora como soube dessa edição do público veio-me uma espécie de saudosismo. mas eles também vão editar o gato do rabi, que tou com vontade de ler.