6 de março de 2011

A Graphic Cosmogony (NoBrow)

O sufixo “-gonia”, grego, vem do verbo gignesthai, o qual poderia ser traduzido, para além do óbvio “nascer”, por “devir”, isto é, não fechado na sua forma substantiva e estática, mas sublinhando ao máximo o seu permanente movimento, a sua própria natureza em movimento. Não será de surpreender, portanto, que esta antologia da NoBrow apresente trabalhos que procuram o máximo dos possíveis efeitos de dinamismo e movimento permitidos pela arte da banda desenhada. Através de modos de composição regulares que tiram partido da rápida leitura sequencial e estruturas geométricas enquanto princípio de figuração, efeitos de paralelismo entre sequências que mostram observadores e o que observam, contínuas e potencialmente infinitas mise en abîme, planos de composição que tiram partido de alguns resultados visuais aparentados com certas artes gráficas (como víramos a propósito da revista NoBrow), por construções tabulares que mesclam vários tipos de imagem, inclusive a colagem de fotografias, papéis texturados, caligrafia ou tipografia mecânica, etc., apresenta-se aqui uma grande diversa de resultados, mas, mais uma vez, todos unidos na vincada personalidade gráfica e cromática do projecto em geral.
A ideia é relativamente simples: ofereceram-se 7 páginas a 24 artistas com as quais deveriam contar a “origem do universo”. Pela própria natureza estrutural do projecto, a sua ideia-base conceptual, com uma página por cada dia da Criação de acordo com o Génesis/Bereshit, não admirará que desses 24 artistas, uma meia-dúzia tenha optado por se referenciar à cosmogonia que herdámos do judaísmo, se bem que procurem versões irónicas, cómicas ou desviantes, querendo talvez com isso derrubar as fronteiras que poderão existir entre os conceitos de “religião” (os mitos em que de facto acreditamos pia e organizadamente) e os “mitos” (as religiões dos outros, selvagens), e sobretudo parodiar a seriedade com que essas vetustas narrativas ainda hoje são trazidas à consideração, sobretudo pelos ditos fundamentalistas ou literalistas. Três artistas optam por, em vez de partirem dessa tradição que nos é mais familiar (é o cadinho da nossa cultura), beberem de outras proveniências culturais, nomeadamente as culturas nórdica, ainu e mongol, para elaborarem as suas narrativas, mas neste caso são bem mais simples, adaptando esses mitos às suas páginas. Todavia, a esmagadora maioria deles inventam de raiz, apresentam scherzi, servem mesclas de várias ideias e matérias, tecem novas mitografias, algumas das quais, como disse, tirando partido das possibilidades gráficas garantidas pela banda desenhada e pelo uso da tecnologias de impressão contemporâneas (com um certo ar retro: cores planas, figurações de contornos claros e definidos, composições de página legíveis). Mas no interior dessas narrativas há também pequenas variações que recordam em muito aquelas pequenas histórias surpreendentes da EC dos anos 50 (“twist ending”), em que a ficção científica é utilizada para revelar algo sobre a nossa origem de espectacularmente inesperado.
Todas elas, porém, levantam sempre algumas questões relativamente idênticas, senão mesmo consensuais, e que apontam para algumas das questões mais profundas implicadas nestas re-imaginações das origens do universo, do mundo e do homem: como é que o erro é introduzido, porque existe a diferenciação entre os homens e as mulheres e os outros homens e as outras mulheres, onde reside o germe da nossa auto-destruição, onde está o livre arbítrio e o abandono de deus… Tal como aqueles livros de que falámos há uns tempos unidos sobre esta ideia de busca de deus, também este utiliza variadíssimos instrumentos para perscrutar questões que, por natureza, estarão sempre fora do alcance das respostas definitivas humanas.
Alguns dos autores são nomes que encontráramos nos projectos da NoBrow (quer da revista quer de outras publicações dessa casa), como Brecht Vendenbroucke, Jack Teagle, Liesbeth De Stercke, Ben Newman ou Brecht Vandenbroucke. Mas há outros que se estreiam nesse convite, como a ilustradora sul-coreana Yeji Yun, o artista de banda desenhada dinamarquês Mikkel Sommers e o português Rui Tenreiro. O design (de Alex Spiro, também editor da NB) transforma este num objecto lindo, com guardas coladas, a capa dura, com a espinha brilhantemente feita com corte italiano, em pano com impressão, e embrulhada com o papel com as imagens que fazem a capa.
Das histórias literalmente “originais” encontradas em A Graphic Cosmogony, encontramos relatos sobre como os primeiros humanos eram animais de estimação de raças alienígenas, o que a origem do universo deveu-se à união de um astronauta e um robô que mergulharam no vazio da “energia fantasma”, ou como ele é um projecto escolar falhado de um deus que não se dedica muito na escola, ou que tudo nasceu de uma onda de sangue derramado por um cervo que afoga o seu caçador, ou que tudo é uma energia vital de excrementos de minúsculas ou pelo contrário cosmicamente imensas criaturas, ou que é uma sucessão de actividades tecnicamente complexas de vários indivíduos, ou um novo mas desinteressante jogo de computador, ou ainda uma aposta feita entre dois filhos de uma divindade que acaba mal… Como escreve Paul Gravett na introdução, “talvez se leitores suficientes deste livro começarem a acreditar nestas histórias iniciem uma série de novas religiões que sejam nelas baseadas”. Amen.

5 comentários:

  1. Boa compilação. Adquiria á pouco tempo através da bookdepository e não estou nada arrenpendido. Gráficamente irrepreensível e original. Recomendado assim como as outras publicações da mesma editora. E com a presença de um autor que presumo, seja português.

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  2. Caro Eduardo,
    Obrigado pelo comentário. Se se refere ao Rui Tenreiro, ele é de facto português como indico no texto. O nome é um link para um outro livro dele de que falei anteriormente.
    Até à próxima,
    Pedro

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  3. Ich weiß nicht, was soll es bedeuten.

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