6 de março de 2011

NoBrow. AAVV (NoBrow Press)


A NoBrow é, como se apresenta, uma plataforma dedicada à publicação de objectos gráficos com uma atenção particular para com um mundo livre da ilustração contemporânea, com projectos que tanto tocam os livros para crianças, com actividades clássicas como a de colorir desenhos, como banda desenhada ou livros de artista ou projectos de desenho, buscando as formas mais belas de trabalhar quer o offset (em edições mais alargadas) quer a serigrafia (bem mais limitadas), passando por posters, livros-concertina, etc. Isto é, um projecto multifacetado que toca muito dos interesses presentes no nosso tempo e num círculo alargado de interesses comuns que atravessam fronteiras, artistas e géneros de trabalho. Todavia, no caso da NoBrow, tocando um grau de qualidade de produção muito alto, de excelentes acabamentos e com uma preocupação particular por uma noção de “beleza” muito limpa, contemporânea, urbana e cool. Nesse sentido, é relativamente expectável que conquistem um público mais alargado, em comparação a colectivos como Le Dernier Cri, por exemplo (sem querer, ainda assim, criar dicotomias ou oposições simplistas). É um projecto que se encaixa perfeitamente a nível global no que diz respeito a novas tendências gráficas, e
às quais Portugal não é alheio.
Em conjunto, optando por raríssimas repetições de artistas, acabamos por ter quatro revistas nas quais participam perto de uma centena de artistas, das mais variadas origens geográficas (João Fazenda participa no 3º número), gerações, estilos, circuitos de trabalho, etc. Elas são a primeira forma da editora colocar regularmente a circular uma espécie de showcase de alguns dos talentos que entendem ser interessantes partilhar. Os próprios editores apelidam-na de “zine”, se bem que os milhares de exemplares (3000, se não estamos em erro) que imprimem e a qualidade da publicação a retirem do círculo de possibilidades da esmagadora maioria das publicações que utilizam essa denominação, aproximando-a quase de uma espécie de directório (e não poderemos dizer “alternativo” pois muitos destes autores têm contractos efectivos com clientes comercialmente significativos).
Cada número tem uma espécie de tema, ou desculpa organizativa, que torna o resultado curioso. O primeiro número (a azuis) é dedicado a “Gods & Monsters”, e se bem que a maior parte das imagens apresentem duas criaturas em oposição, outras das participações tornam essa diferenciação complexa, difusa ou apagando-a; o segundo (a cores, mas a impressão de passagem única) está sob a égide da “The Jungle”, e são raros os autores que saem de uma gravitação literal em torno das selvagens paragens do nosso planeta; o terceiro (já em quadricromia, mas com uma paleta baça), intitulado “Topsy Turvy”, explora toda a espécie de possibilidades do assunto do mundo ao contrário, desde cenas clássicas - animais a caçar pessoas, pássaros a nadar e peixes a voar - até composições surrealistas; e o quarto número tem como tema “Night and Day”, e tira partido da impressão, apresentando cada duas páginas alternadamente a quatro cores e a preto-e-branco, ou seja, havendo impressão a cores apenas de um lado das folhas, e além disso a maioria dos artistas utiliza as duas páginas para criarem uma oposição que segue as mesmas linhas, que tanto pode ser literalmente entre a noite e o dia, ou outras dicotomias, entre homem e mulher, entre criaturas ou seres moral, cultural ou existencialmente diferentes, ou buscando formas mais subtis de criar a relação complementar entre os opostos que apresentam.
As características são bem diversas, como não se pode deixar de esperar, mas há um resultado de “ler” as revistas em conjunto, de sermos confrontados com estes artistas num só fôlego que os amalgamam numa família coerente. Não comum, nem unida numa só massa, mas sob uma mesma sensação de contemporaneidade gráfica. A paleta cromática é usualmente limitada, procurando-se a utilização de cores planas e não de gradientes na maior parte das vezes, tirando-se partido de sobreimpressões (ou de efeitos composicionais que as imitam), impressões de passagem única, o que dá uma vivacidade a cada cor quase tridimensional, criando formas encaixadas umas nas outras, e tirando partido da própria materialidade e texturas do papel, garantindo uma espécie de carácter táctil extremamente forte a toda a publicação (sobretudo a segunda e a quarta). Como vimos, as várias técnicas de cada número leva a efeitos diversos, ora com escolhas limitadas de cor ora com uma mais alargada opção, mas ainda assim explorando especificidades planeadas.
No que diz respeito à figuração, a às composições de página, encontrar-se-ão autores que optam por traços realistas, outros por vários graus de simplicidade, senão mesmo de minimalismo, uns têm abordagens expressivas permitidas por toda a manualidade do desenho a lápis, e outros constroem as imagens com ferramentas digitais, com contornos simplificados, estes fazendo composições cheias, detalhadas, texturadas, aqueles apresentando esquemas que recordam puzzles simples de papéis de lustro recortados. Essa família tão diversa faz entender que não será apenas uma razão de estarmos demasiado perto destes autores em termos de produção e tempo, mas que as próprias condições de produção, edição e divulgação contemporâneas não permitem encontrar uniões estanques de estilos, e cada autor - como em todas as áreas artísticas dos nossos tempos - bebem de vários momentos da história da arte (e da ilustração, permitindo-nos aqui a uma diferença que deverá soar insustentável), sublinhando aquele sentido positivo de pós-modernidade que torna qualquer momento anterior numa possível fonte de inspiração e apropriação, e os cruzamentos, por mais inusitados que pareçam à primeira vista, perfeitamente passíveis de existirem. Teríamos de falar de cada autor em particular para encontrar as referências mais certas, mas na leitura de todas estas páginas saltam ideias avulsas que recordam as várias inflexões da Art Deco e a revista satírica alemã Simplicissimus, a animação dos irmãos Fleischer, autores de ilustração infantil como Jean de Brunhoff, Ludwig Bemelmans, Ray Goossens e Richard Scarry, e toda a espécie de escolas da dita escola “lowbrow art” norte-americana (hot rod, tattoo art, Surrealismo Pop, designer toys, e outras referências quejandas). Aliás, é essa mesma referência que explicita a escolha do título do colectivo editorial, negando a existência de uma “high brow art” e uma “low brow art”…
Se houver algum denominador comum, será o da legibilidade. Não se procuram aqui efeitos barrocos ou de excesso (como, retomando uma questão do início, as produções da Dernier Cri ou de outras plataformas), cujo fito é bem diverso (e não necessariamente de uma valorização inferior ou superior). Bem pelo contrário, todos estes gestos, vindo de pontos diferentes, navegando mares diferentes, e embarcados em naves diferentes, aportam todos nas mesmas acalmias gráficas, o que torna todo este projecto numa suave e facilmente aprazível antologia de ilustradores.
Leitores de banda desenhada - de géneros bem diversos - reconhecerão alguns nomes, de Jens Harder (autor de Leviathan), Blex Bolex, Jordan Crane, a Dave Taylor (artista de alguns títulos com o Batman e da série Tongue * Lash, escrita pelos Lofficier), ou Atak; há também os autores que têm banda desenhada publicada pela própria NoBrow Press, como Luke Pearson, Jon Mcnaught ou Ben Newman. Há ilustradores reconhecidos pelo seu trabalho no círculo infanto-juvenil, como Marc Boutavant (do Ariol) e Isabelle Vandenabeele (premiada no Ilustrarte 2009) e muitos profissionais de ilustração editorial, de imprensa, comercial, character design, etc. Pessoas que tenham acompanhado a programação da galeria Dama Aflita reconhecerão o nome de Jack Teagle. Como já foi indicado, temos o nome reconhecível de João Fazenda, o qual, vivendo em Londres, introduz-se possivelmente por essa razão no grupo de autores aqui reunidos (muitos deles ingleses ou internacionais mas vivendo em Londres). E, claro, encontrar-se-ão muitos outros nomes que possivelmente poderão ser desconhecidos de alguns dos leitores (eram para nós), já que a NoBrow também dá espaço a artistas muito jovens, alguns deles fresquinhos das escolas de artes, mas que passámos a considerar por uma razão ou outra. Dos jovens aos veteranos, procurem-se Ping Zhu, Nomoco, Ward Zwart, Tom Rowe, Sarah A. King, Joseph Crocker…
Utilizados como directórios, ou guardados como objectos magníficos, as NoBrow são uma feira de descobertas.

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