Há uma anedota relativa a Sergei Diaghliev, o pai dos Ballets Russes, que é algo instrutiva na leitura deste belíssimo livro. Apesar de existirem inúmeros textos, livros, e documentos fotográficos históricos dos bailarinos dessa companhia, dessa referência máxima do ballet do século vinte, inclusive do grande Nijinsky, não se encontrará um metro de filme. Diaghliev não o permitia. Tendo em conta que se trata de um período que vai desde o início do século vinte aos anos 20, a tecnologia cinematográfica apenas permitia uma captação e devolução do corpo em movimento relativamente limitada. A câmara ainda não dançava (é preciso esperar por Chaplin e, depois, Astaire). Todavia, talvez as razões fossem ainda outras, menos técnicas, e mais espirituais, quem sabe mesmo naquela crença (algo mistificada, falsa, mas ben trovata) de um certo receio em que a captação das imagens roubasse a alma original. Faria sentido.
Uma eventual oposição - nem que apenas sirva o propósito da argumentação presente - entre formas artísticas é aquela entre, por um lado, as artes da performatividade, do gesto ou da projecção gráfica, e, por outro, as das marcas, da inscrição, da encarnação gráfica. As primeiras são aquelas que se executam através do corpo, sendo os seus próprios movimentos aquilo que compõem os elementos a ler, mas os quais não deixam marcas duradouras, não deixam marcas gráficas propriamente ditas - apesar das didascálicas, das notações musicais e das tentativas em construir notações de dança. As segundas são aquelas que se executam nos resultados dos movimentos do corpo empregando instrumentos de marcação, desde materiais riscadores, pictóricos, escultóricos, moldadores, de escrita, etc. Historicamente verificaram-se muitos momentos de encontro (há quem queira mesmo ver na origem do gesto artístico actividades humanas nas quais ainda não havia qualquer diferenciação), a evolução levou inevitavelmente a uma contínua categorização e compartimentação de cada disciplina. É nesse sentido que não encontramos grandes linhas em comum que unam a dança e o desenho, seja este entendido de uma forma restrita (disciplinar) ou mais ampla (aplicado, interdisciplinar, a banda desenhada, etc.).
Se bem que possamos encontrar nas origens da banda desenhada moderna vários momentos em que o seu desenho tentava captar a dinâmica e a beleza da dança (mormente daquela elegância somente atingida pelo ballet clássico), foram raros os momentos porém em que encontrámos um diálogo mais poético e sensível (e mais os de sátira ou humor visual). Discutivelmente, um dos momentos altos desse encontro é aquele que é conseguido por Edmond Baudoin, um artista o qual tem tentado sempre transformar o (seu) desenho num instrumento de captura de modos e momentos de beleza usualmente efémeros.
Bastien Vivès parece ser um autor com um contínuo interesse pelo corpo humano, sobretudo na forma como ele se transforma num meio de comunicação nele mesmo, sem a necessidade de se associar à comunicação verbal. Apesar de Polina ter uma estrutura narrativa mais clássica do que os dois últimos livros, não deixa de empregar toda uma série de desvios criativos que sublinham essa sua visão do corpo. Este não é um livro somente sobre a dança, ou sobre uma bailarina, mas que dança ele mesmo com a sua matéria. Muitas das cenas são mostradas num fundo preto e com as mínimas linhas e manchas a branco, de forma a contrastar com o restante livro, mas como maneira também de destacar uma impressão diáfana e breve que se opera nos palcos, um relâmpago que o autor tenta assim representar.
O ballet clássico é, como dissemos atrás, uma arte de elegância, quase maximal, conforme a nossa formação, conhecimento e sensibilidade para ela (confessemos aqui que não pertencemos a esse número de cognescenti). O que vemos é a beleza, mas de perto, de muito perto, essa beleza só é atingida através de um domínio doloroso dos corpos, moldados senão torturados por anos de esforçada dedicação (qualquer documentário sobre as academias russas mostra isso). Alguma da dança contemporânea explora de forma directa e central precisamente esse esforço e essa dor, senão parte dessa “falsidade”, o que se explica por muitos dos seus conceitos de “impossibilidade de comunicar”, “impossibilidade de dançar” muito presentes em alguns coreógrafos contemporâneos portugueses (com excepções). Se bem que agora um novo fôlego tenha sido trazido pelo recente filme Black Swan, a possível aliança entre a magnificência do resultado artístico e a maldição que a sua entrega representa teve um seu tratamento anterior na ficção incomparável em The Red Shoes, de Michael Powell (por seu lado, baseado parcialmente no conto de Andersen). E Polina tem uma ligação mais forte com essa obra-prima cinematográfica - pelo lado da divisão da vontade da protagonista, das decisões necessárias mas que se anulam mutuamente, das relações que se constroem e desfazem em nome dessas mesmas decisões - do que com o filme de Aronofsky - mais inclinado a explorar as armadilhas que o ser humano lança no interior de si mesmo.
O livro de Vivès conta a história de Polina Oulinov, uma jovem bailarina russa que acompanhamos desde os 6 anos, na sua primeira audição séria, junto a um mítico professor, o exigente Bojinski, os seus anos de aprendizagem numa academia, as primeiras peças, o primeiro desafio criativo, a primeira fuga “em frente” e posicionamento face ao trabalho do ballet clássico, o confronto com a dança contemporânea e as outras vias de expressão que permite, o seu crescimento enquanto indivíduo, e, como dita o equilíbrio da narrativa, o retorno, desenlace e anagnórise. Mas a beleza de Polina está no percurso, não na mera sinopse, na trama; está no modo como Vivès mistura a matéria da dança representada e a do seu desenho. As mais das vezes, é pelos não-ditos que essa textura é cerzida. Nesta página ao lado, por exemplo, Polina readquire a força e o humor para contactar de novo o seu namorado, mas a breve simetria entre as três vinhetas em que essa força é recuperada e as três seguintes de uma derrota total, interrompendo-se com uma cena diferente onde reside a razão dessa tremenda desilusão, mostra como esse ritmo e esse tom é perseguido.
Ao contrário das vivíssimas cores expressivas de Le goût du chlore e Dans mes yeux, este livro é constituído por linhas a pretos simples, pinceladas a tinta-da-china aparentemente, sobre fundos cinzentos ou o branco do papel. Se bem que existam soberbas e detalhadas representações do interior de teatros ou de cantos de cidades, a esmagadora maioria das vinhetas mostra simplesmente fundos vazios e os corpos das personagens. E mesmo estas são reduzidas por vezes a uma espécie de representação caligráfica. Isso não significa que não haja forma de tirar todo o partido da expressividade possível. Nesta prancha Polina destaca-se das demais colegas por uma diferença na cor do cabelo, a presença e fascínio de Bojinski sente-se pela sua ocupação do espaço e a relação que estabelece com o olhar da protagonista, o movimento de espaço a espaço é construído pelo isolamento das figuras no centro das vinhetas e dos pormenores espaciais, o “rasto” do olhar e o transporte a que ele obriga modelado na última imagem, com Polina “acima” das demais bailarinas jovens… O desenho não é empregue por Vivès como o andaime de uma reconstrução sistemática posterior (como na indústria norte-americana ou na produção clássica franco-belga): ele dança por moto próprio com as personagens, e os espaços, e os ritmos que eles lançam.
O centro nevrálgico desta novela é a relação entre a pupila e o mentor, Polina e Bojinski. A dança - seja clássica seja contemporânea - uma vez que usa o corpo humano como a sua ferramenta principal, e corpos moldados de acordo com vários princípios de uma beleza largamente aceite - elegância, falta de gravidade, um carácter élfico, um domínio total do si, o apagamento da “máquina” a favor do “espírito” -, tem sempre um carácter sexual forte, mas que não tem necessariamente que passar pela sua expressão de tom mais baixo. Bojinski, para ensinar Polina os pequenos gestos, as importantes exactidões, o mais correcto dos pormenores, apoia as suas mãos no pequeno corpo dela. Todavia, este gesto tem mais a ver com o mestre que toca no barro para deixar o seu cunho do que qualquer interpretação básica sexual a que se possa chegar. É uma sexualidade mais profunda, espiritual. (e é aí que Vivès se ligaria mais depressa a The Red Shoes, magistral nesse tratamento da tensão entre Vicky e Lermontov, do que Black Swan, cuja expressão sexual é mais básica e explícita). Essa tensão, essas associações são exploradas em Polina, sobretudo na peça (dueto) que Polina e o seu namorado ensaiam, chegando mesmo a falarem de “fazer amor em público”. Quando ensaiam no quarto, poder-se-ia ler esses gestos como de uma sedução ou mesmo de consumação passional. Contudo, é por essa razão que essa expressão terá uma força mais limitada, ao passo que a relação de professor-aluna, de dois entendimentos da dança que apenas se desencontram por décadas, é a mais duradoura, e cerne do livro. Na fase final, no reencontro de Polina e Bojinski, há um momento magnífico, uma espécie de desmascaramento dos filtros que Polina havia cultivado ao longo do tempo (ou talvez desde sempre), e é como se a magia se desfizesse aos olhos dela, e aos nossos. Mas retorna. E é esse um outro gesto tocante que contribui, com os outros, para que este livro de Vivès seja uma rara e comovente história de amor.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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