17 de maio de 2009

Le Goût du Chlore e Dans mes yeux. Bastien Vivès (Casterman)

Estes dois livros estão na sequência da “tendência” que discutimos no post anterior, fazendo parte, portanto, de aproximações estilísticas, narrativas e de atitudes que encontraram a sua origem em editores e autores trabalhando em plataformas independentes, que foram posteriormente apropriadas pelos grandes agentes do mercado da banda desenhada, apropriação essa que tem tanto de inevitável como de expansão como de deterioramento da pulsão real dos movimentos originais.

Bastien Vivés parece aproximar-se de estruturas narrativas cada vez menos clássicas, se bem que o tipo de liberdade ou experimentação a que se entrega não ser radical, mas de um desvio controlado, afável, cartografável, e ponderado, permitindo sempre a sua reconstrução, e a emergência de um sentido nítido, o qual aceita sempre um grau determinado de respostas suspensas, de aspectos jamais revelados, e até mesmo de irresoluções, daquelas mais expectáveis por pertencerem à esfera das que ocorrem na vida de todos os dias.

Le Goût du Chlore é visto como uma redução do Bildungsroman, e com razão. Toda a sua estrutura fulcral se encontra aqui, se bem que despojada de todos os parâmetros usuais (longos, complexos, detalhados) dos romances que pertencem a essa tipologia literária. Um jovem homem vê-se obrigado a utilizar uma piscina como local de terapia, mas rapidamente esse local se torna palco de, a um só tempo, ritual de passagem e de descoberta do amor. O livro não é totalmente desprovido de diálogos, mas estes ou se vêem reduzidos ao estritamente necessário ou ganham contornos secundários, e há longas sequências – as da natação propriamente ditas – sem quaisquer diálogos ou palavras. Não são “mudas”, pois a perspectiva do protagonista, a forma como essas observações nos vão ajudando à construção da sua visão de tudo o que o rodeia, e especialmente a atenção que se vai centrando na rapariga (mais madura, livre) que lá conhece, como se costuma dizer, “diz muito”. A piscina é tratada como um microcosmo, ou pelo menos uma micro-pólis na qual as relações estabelecidas mimam aquelas que ocorrem em círculos maiores, mas na qual também não se estabelecem laços de verdadeira sociabilização: são mais ténues as relações que todos nós estabelecemos no interior de uma outra relação social (aulas, ginásio, igrejas, lojas, etc.), e desejos tais como o amor, que depreende um maior conhecimento mútuo, não podem de modo algum funcionar aí. É o que acontece na piscina, de “gosto de cloro”.

Dans mes yeux é ligeiramente diferente mas parece também desejar explorar margens da narrativa clássica, e o silêncio ganha um corpo particular, a saber, o do protagonista: apesar de vermos tudo “dans ses yeux”, sendo o objecto do possessivo o “ele” que deveria constituir-se no protagonista mas se preenche com a ilusão de um “eu” que vê tal como “nós”, os leitores, nunca escutamos a sua palavra. Eventualmente poderíamos encontrar nessa narrativa também o cumprimento da ideia de ritual de passagem, se assumirmos que todas e quaisquer experiências no amor que tenhamos – a sua primeva queda e a eventualidade de uma subsequente felicidade ou privação – constituem uma passagem desse tipo.

Ambas as narrativas parecem colocar – de modos diversos, em graus diversos – os seus protagonistas na senda de algo (em ambos os casos, uma mulher, um amor), de um modo expresso, para depois se o poder perder, igualmente de modo expresso. Ou seja, é como se o intuito de ambas as obras fosse dar a ver a perda no momento da sua formação. Nada disto tem a ver com uma reacção, que se o fosse seria ingénua e inócua, contra o “final feliz”, mas sim com uma tenção particular para com a constituição dessa perda. E se em Le Goût du Chlore esse “encontro” jamais é feito (isto é, não se dá início a uma relação amorosa correspondida ou cumprida de qualquer modo), em Dans mes yeux o signo da perda está permanentemente presente mesmo nessa relação. A ausência da representação do protagonista enquanto “na terceira pessoa” apenas torna essa inevitabilidade mais pungente. Penso que esta “terceira pessoa” é fácil de entender: mesmo quando estamos perante um livro cuja personagem principal relata os acontecimentos ou os comanda, mesmo quando estamos perante uma autobiografia, em banda desenhada essas personagens são representadas no mesmo plano visual que as restantes. No caso de Dans mes yeux, todo o plano visual é aquele que corresponde ao que é visível pelo protagonista, por isso jamais o “vemos”, correspondendo a nossa visão, ponto por ponto, à dele (Eisner e Marco Mendes têm histórias com esta estratégia visual, mas Vivès transforma-a permanente ao longo destas mais de 100 páginas).

Apesar de partilharmos o campo visual com o protagonista, na verdade, nada sabemos dele, ou pouco: nem o aspecto físico, pois jamais “nos vemos” ao espelho, nem o que pensa, pois não temos acesso a nenhuma voz narrativa... No entanto, isto não é totalmente verdade: algumas das frases ditas pela rapariga com quem o protagonista constrói a sua relação permitem-nos adivinhar, com algum grau de segurança, aquilo que teria sido dito por ele. Muitas das sequências, dando-nos a ver aquilo que “ele” observa, o modo como observa, o modo como apaga os rostos e as palavras de quem rodeia a rapariga levam-nos à construção a posteriori de uma personalidade não apenas apaixonada mas que coloca essa paixão no centro do que ele mesmo é. Ou seja, é um puro personagem ficcional, reduzido à função necessária para a construção da ficção em que se insere, da qual é motor, charneira, pedra de toque e de fecho. E também é uma prova de que um diálogo, para ocorrer, entre dois ou mais interlocutores não tem necessariamente de ser feito verbalmente... (tornado ainda mais claro no "diálogo subaquático" do primeiro livro).

A perda, nos dois casos, é atingida sempre na ausência de “razões”, ou melhor, de “explicações discursivas”. No primeiro livro o fecho da relação tem a ver com uma incapacidade física que se traduz na impossibilidade de conquistar a mulher, no segundo a decisão é unilateral, mas imaginamos que definitiva.
Vivès parece, logo, ser um autor que aproveita bem o caminho aberto por muitos autores que o precederam – os fundadores das “tendências contemporâneas” – para poder explorar um caminho que lhe poderá ser muito próprio. No entanto, apenas o seguimento dessa sua obra o poderá comprovar. Em suma, não sendo propriamente estes dois livros cumpridores de uma inventabilidade inédita, eles mostram-se capazes de herdar o peso dos que abriram o caminho, e sobretudo mostra-se capaz de utilizar essa abertura prévia para a continuidade de uma experimentação plausível, consolidada e sustentada.

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