Quando falamos em tendências contemporâneas, é preciso entender a primeira palavra e o modo como a segunda a qualifica. No dicionário Cândido de Figueiredo, encontramos esta palavra explicada como “força que determina um movimento de um corpo”, o que faz eco com outros sinónimos aí propostos, como inclinação, propensão e até vocação, que é um movimento feito com ou pela voz. A sua origem etimológica alcançará o latim tendere, “esticar” (como quem diz, “tender a massa”) e o grego tasis, a um só tempo “tensão” e também “esticamento”. Guardemos portanto a ideia de um movimento que tende para uma mesma direcção, depreendendo-se disso que existem vários elementos convergindo nesse movimento. É costumeiro olharmos para trás, para a história, e reduzir os seus agentes, os seus objectos, a elementos tão básicos que nos permitam uma sua colação, aproximação e amalgamação, até a um ponto de sermos capazes de entender facilmente (porque, repetimo-lo, redutoramente) essas tendências, as características comuns, talvez o estilo, a temática... Erroneamente ou não, mais ou menos violentamente, essa amalgamação é, todavia, necessária e natural ao olhar taxonómico do ser humano, até mesmo imperativo se se pretende uma primeira abordagem, que depois será, deve sê-lo mesmo, corrigida, qualificada, expandida.
A associação dessoutro termo complexo, “contemporaneidade”, serve aqui apenas de complemento qualificativo, de mera baliza temporal, que procura uma coincidência com o presente tal como consensualmente experienciado por nós, que o vivemos (não significa isto “estar vivo no presente”, mas “vivê-lo” o mais intensa e implicadamente possível, sentindo-nos inscritos neles, desprovidos de nostalgias, incompreensões, e a sentimos acronológicos). Esta proximidade radical impede-nos eventualmente da distância crítica necessária para a confirmação de ideias mais redondas, mais organizadas, e poder-nos-á levar a erros de percepção e de apreciação. Porém, presumimos que a indicação deste caveat nos permite poder incorrer nesse pequeno perigo.
Não é surpresa nenhuma para ninguém que a banda desenhada, naquele pedaço do mundo a que se chama o estranho nome de “mercado franco-belga”, vive uma férrea saúde comercial, marcada por altos e baixos, é claro, mas caracterizada sobretudo por uma continuidade inabalável, isto é, pela sua própria existência. A plasticidade desse mercado à procura é também reconhecida, e são cada vez mais as estratégias para se conseguir a fabricação de livros “para todos os gostos”. É, ou deveria ser, óbvio, que essa aparente ecumenicidade é, no fundo, enganadora, e que premeia mais a existência de produtos de qualidade medíocre ou mediana, do que aquelas regidas por parâmetros de excelência – literários, estéticos, plásticos, intelectuais, filosóficos, aqueles que vos mais aprouver, mas que são sempre dominados pela “exigência” que, por mais paradoxal pareça, nos exigem, enquanto leitores. é possível que seja difícil encontrar um domínio e um acordo entre que parâmetros serão esses, e até mesmo poderão surgir acusações de elitismo, mas enquanto leitores activos deveria ser mesmo essa a direcção do nosso caminho: sermos cada vez mais exigentes. O que não nos impede de dar atenção e valor a trabalhos cujos propósitos não são os mesmos de um certo tipo de experimentalismo (menos ou mais radical, como no caso, se mo permitem, dos autores reunidos no Impera et Divide) ou de uma certa densidade existencial (como, por exemplo, em Feuchtenberger, Tsuge, Baudoin ou Vähämäki). Talvez possa insistir junto aos autores reunidos na Frémok como aqueles que exploram as linguagens mais inesperadas e, por isso, mais surpreendentes e fortes, das potencialidades artísticas da banda desenhada, mas experiências como as de Sfar ou de Hornschemeier não são de desprezar.
Já havíamos indicado a existência de uma tremenda discussão iniciada (ou coroada) por Menu, sobre o aproveitamento das grandes editoras francófonas pelas “tendências contemporâneas” trazidas a lume pela primeira vez por outras plataformas editoriais, mais independentes ou marginais (L’Association estando no papel principal dos “formadores do gosto”, já que a as linguagens propostas da Frémok são de uma ruptura tal que dificilmente são “aproveitáveis” pelo mercado... e ainda bem?; mas veja-se o caso de Deniz Deprez). Também já havíamos debatido como existiam cada vez mais artistas na esteira de uma “linha caligráfica do desenho”, a nosso ver cuja origem - se não estilística (essa primazia está nas mãos da UPA, de Feiffer, por exemplo) pelo menos em termos de ultrapassagem de um crivo de aceitação mais alargado – se encontra em Joann Sfar, e que se pode exemplificar em Mathieu Sapin, Jérôme Dupré de la Tour, Gipi, Kerascoët, Christophe Blain, Lucie Durbiano, Clément Oubrerie, Bastien Vivès, entre outros. E Frédéric Rébéna (aliás, poderíamos quase acrescentar que tem sido este estilo contemporâneo aquele que tem ocupado o papel da “linha clara” nos nossos dias, no que diz respeito à ideia de legibilidade, aceitabilidade comercial e... exacto, “tendencial”). E temos observado ainda como o mercado francês, a par do norte-americano, tem procurado cada vez mais a anulação das fronteiras entre a banda desenhada, a literatura e o cinema, de animação ou não, transformando todas essas linguagens em territórios de exploração comercial e que se cruza entre si. Como se um desses territórios servisse de modo de sedução para o outro.
Ora, é no cruzamento de todas estas tendências – aproveitamento das grandes editoras por movimentos iniciados alhures, uma maior aceitação da parte do grande público por um desenho mais solto, menos “virtuoso” no seu sentido realista, mas talvez mais sedutor, e intersecções entre os domínios literário, cinematográfico e banda desenhístico – que encontramos Marilyn la Dingue. Trata-se da adaptação para banda desenhada do romance homónimo (em francês, já que o original em língua inglesa é Marilyn the Wild) do próprio Charyn, que o havia publicado em 1976. Não será surpresa nenhuma que Charyn o adapte ele mesmo, após as suas criações para banda desenhada, pela mão de François Boucq, com A Mulher do Mágico e A Boca do Diabo (talvez os seus melhores livros?). Pelo que entendemos, este é o primeiro trabalho de banda desenhada de Rébéna. Tal como ocorreu com a série Miss Pas Touche, de Kerascoët, quando o primeiro álbum surgiu, também este livro nos fez pensar automaticamente na ideia da clonagem do traço de Sfar.
Este último ponto precisa de ser explicado. Não se trata de imitação, muito menos de plágio. Nada disso. Tem antes a ver com a instauração de uma possibilidade que é garantida por um autor forte, neste caso Sfar, que é aproveitada por outros autores que têm inclinações parecidas e que vêem, subitamente, aberta a possibilidade de perseguirem essa capacidade e opção de trabalho, ao invés de terem de se alterar a eles mesmos para poderem se aproximar das expectativas do mercado... Não há qualquer vergonha aqui. Muitos dos “grandes autores” começaram os seus primeiros passos sob a sombra de outros autores, e com primeiros trabalhos quase indissociáveis do estilo dos seus “mestres” respectivos: Frank Miller e Bill Sienkiewicz sob Neal Adams, Al Columbia sob Sienkiewicz, Klaus Janson sob Miller, tantos sob Breccia.... Chris Ware abriu as comportas a um tipo de experimentação que seria imediatamente perseguida por novos autores. Apenas notar-se-á em algum tipo de “problema” se os autores em questão, em vez de aproveitarem essa abertura para o desenvolvimento das suas próprias linguagens, se mantêm sob a sombra do caminho aberto pelo artista primevo, o que os levará, aí sim, ao campo dos meros “epígonos”.
Rébéna constrói composições de página simples, de múltiplas vinhetas distribuídas de modo rectilíneo, depositando no seu interior o que parecem ser as primeiras linhas em que pensou, sem necessidade de as corrigir ou alterar, deixando assim uma certa flutuação na constância do rosto das personagens, algumas linhas de contorno ou de caracterização das mesmas batalhando pela primazia, e usando uma paleta de cores que tem tanto de “linha clara”, obedecendo ao princípio da legibilidade, como de temperança luminosa, utilizando cores pouco vivas, pouco contrastantes, muitos jogos de iluminação limitada, ora por negros e cinzas (becos, interiores), ora por azuis-cinzentos (interior íntimos), ora por vermelhos (a cena no bar). As personagens vivem num alto grau de estilização, o que as torna a todas imediatamente reconhecíveis, mas sem que caiam em estereótipos, o que seria fácil, tendo em conta a fauna aqui presente, como veremos de seguida... No caso das mulheres, Rébéna parece criar uma vitrina de tipos de beleza consensual, tipicamente eroticizadas, que verificamos também em Sfar, mas igualmente em Nuno Saraiva ou Rui Ricardo.
Acabámos de falar de “fauna”. Não havendo lido o romance original, ficamos na dúvida se o jogo de clichés é propositado, numa veia irónica e até cómica, ou se se pretende mesmo criar um universo pretensamente real, palpável, do underground do crime organizado de Nova Iorque. Italianos, judeus, negros, chineses, policiais duros e policiais pouco inteligentes, prostitutas menores e chulos estilosos, fuinhas e doidos, e até um pai que rouba o corpo e o rosto e a actividade (mas não o trabalho) a Picasso, nenhum deles jamais chegando a encher as medidas do que uma “personagem” pode ser, mas somente o espaço que cada uma dessas palavras promete em si mesma e que é empregue tal qual como função imediata na narrativa construída. Monta-se um pequeno drama pessoal, uma história de amor, em torno de uma trama policial, complicam-se as voltas através de alianças, desconfianças e falsas pistas, polvilha-se tudo de referências ao “imaginário americano”, tanto o fílmico como o da cultura popular, e eis que se constrói um sedutor e leve álbum de 74 pranchas. O facto de a primeira e a última página poderem ser lidas como uma só unidade – mas apenas depois de lermos o livro inteiro – faz-nos aperceber que, muito provavelmente, toda a história central era apenas um McGuffin tremendo para contar a história de sempre, uma de amor. A falta de surpresa, a linearidade da acção e os efeitos de malabarismo, que não de condensação, da história, leva-nos a perguntar se Marylin la Dingue satisfará os cultores do policial ou se apenas aqueles que procuram no policial o que há de caricato.
Uma forma de demonstrar que as tendências têm sempre frutos dúbios?
17 de maio de 2009
Marilyn la Dingue, Jerome Charyn e Frédéric Rébéna (Denoël Graphic)
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:57 da tarde
Etiquetas: Adaptação, França-Bélgica
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