14 de março de 2011

Les Noceurs. Brecht Evens (Actes Sud).

O título original, em flamengo, desta obra, é Ergens waar je niet wil zijn, que significa “Onde não queres estar”, e é esse o sentido que tem sido mantido na maioria das traduções, excepto esta, a francesa, que o nega totalmente e escolhe uma descrição mais objectiva (no sentido do objecto retratado) da trama e das personagens, os “foliões“ ou “pândegos”.
A ideia não deixa de ser justa, pois as três linhas narrativas que se unem em torno de um só nódulo vogam em torno de pessoas em festas, e as sensações e humores que com elas estão associadas. No entanto, essa opção perde acesso a uma condição poética que o autor procurou tecer nas palavras escolhidas como título, e nas malhas de cor que cobrem estas páginas.
A história em si, fosse ela resumida e transformada num pequeno texto, tornar-se-ia algo banal: o primeiro capítulo mostra um grupo de amigos a reunirem-se numa festa, no apartamento de uma personagem, Gert, festa essa que parece ser morna demais por não estar presente um tal de Robbie, que todos parecem admirar; o segundo segue o périplo de uma das convivas anteriores, Naomi, que de patinho feio se transforma em ninfeta da noite, se dirige à discoteca Disco Harem, e lá é conquistada pelo mítico Robbie (conquista essa que nasce de um outro engano); o terceiro ainda se desenrola na mesma discoteca, sob o signo da festa, mas já aponta um seu possível fim, com Gert a encontrar-se com Robbie, e a conversarem - ou melhor, com cada uma das personagens a emitir um discurso totalmente incompatível - para se aperceberem-se que não já há ponto de encontro entre os dois, apesar de ambos o pensarem. Finalmente, o livro ainda tem uma mão-cheia de páginas que mostra um diálogo entre Naomi e a sua amiga cabeleireira, com quem fora à discoteca, a discutirem por telefone os acontecimentos dessa noite (que nós testemunhámos e agora não escutamos). Será algo de desequilibrado dizer que o livro é sobre Robbie, ou sobre a relação de Robbie e Gert, ou Robbie e Naomi, ou outras combinações desta espécie. Robbie é a quintessência do folião - a maneira de se vestir, o seu espírito, a sua disponibilidade para as festas, tudo parece transformá-lo num modelo a imitar pelos outros, a admirar, a tornar-se objecto de desejo, ele é o hedonista total… Gert é um homem mais apagado, com responsabilidades diárias, que tenta seguir ainda um qualquer espírito de festa mas que sempre falha, pois a sua coragem e entrega (como na desistência do salto final para cima das pessoas na discoteca) não é jamais verdadeiro. Ou seja, cria-se aqui uma dicotomia algo simplista, e até pateta, entre “aqueles que crescem e se tornam cinzentos” - Gert é desenhado a cinzento - e os outros que “resistem na festa”, mais coloridos. Há, portanto, uma redução do espírito humano, uma perspectiva algo adolescente da vida, entre os que ficam e os que partem.
No entanto, Les Noceurs tem uma força magnífica que reside não nessa camada, cujo exercício de (nossa) redução textual poderá enfraquecer, mas antes no seu como, na sua matéria visual e transportadora. Este livro é literalmente uma orgia de cor. Evens utiliza ecolines, aguarelas, aguadas, tinta-da-china para construir malhas apertadas das mais variadas cores, estas sombrias, aquelas vivíssimas, aqui espalhando-se numa composição livre e abarcando as duas páginas visíveis, ali estruturando-se em várias vinhetas regulares… Numa entrevista (citada na crítica de Ng Suat Tong no Hooded Utilitarian), Evens explica como a origem desta abordagem de transparências se encontra em George Grosz, numa das aguarelas de Ecce Homo. No entanto, se no caso de Grosz essas transparências vivem a sua força na sua dimensão formal, o facto de estarem sob a alçada de um programa narrativo nas mãos de Evens transformam o propósito dessas mesmas transparências, ou pelo menos daquela função que poderá ser alvo de interpretação.
Apesar daquela introdução pela sinopse, essa interpretação não é totalmente linear (como nenhuma obra de arte, enfim) nem simplista. Há mesmo escolhas estruturais, moleculares, que levam a vacilações curiosas. Por exemplo, nem sempre é claro como deveremos atribuir as falas às personagens visíveis (apesar das cores ajudarem), e torna-se frágil uma associação directa e descomplicada entre as histórias individuais delas, mas parte dessa confusão (mimada pelo uso das linhas-cores) é propositada, e aproxima-se do cerne de Les Noceurs. Há um momento em que uma história é contada, sendo atribuída ao quase-mítico Robbie mas que afinal pertence a uma outra (assim colocada numa posição subalterna em relação a Robbie). São essas distracções, erros de atribuição, trânsitos e transparências que parecem constituir a matéria que Evens pretende explorar. A leitura de Tong, aliás, é intrigante e estimulante, e os instrumentos provenientes da mitologia e da religião (a tal história mal-atribuída pode, de facto, ser lida como o comportamento dos mitos), empregues em torno da personagem Robbie, são um excelente ponto de partida. No entanto, perguntamo-nos se o peso dessa leitura não se escapa da malha deste livro, já que se explora antes uma certa leveza, sublinhada pela sua dimensão visual. Devido às sobreposições (é possível ver os contornos de um móvel através dos corpos de uma personagem, ou os pormenores de uma personagem através de outras, etc.), “as pessoas são transparentes”, apetece dizer. E isto seria não só um rápido descritivo formal mas já estaria a apontar a parte do assunto que se desdobra nestas páginas...
Poderemos partir ainda de um outro prisma. Há um momento em que as personagens, ao atravessarem os labirínticos recessos da estranha discoteca (Disco Harem), atravessam uma sala – agora de recreação – que foi um “delfinário”, depois um bar de strip-tease e finalmente um restaurante indiano. A imagem que vemos na vinheta representará um mural, e nele vemos sobrepostos elementos gráficos facilmente reconhecíveis, mas que se mesclam e entrosam, cada parte pertencente a um dos períodos mas encaixando-se perfeitamente uns nos outros como se tivessem sido feitos ao mesmo tempo (e, na camada do fabrico do livro, foram-no, claro): uma pata do tigre parece uma barbatana, os seios da mulher coberto pelo bikini parecem ser os chapéus dos dois homens de trajes indianos... A própria discoteca é paulatina e sequencialmente revelada como um espaço quase infinito, havendo várias pistas de dança, pisos para restaurantes atarefados, salas de concerto mais íntimos, salões de bacanal, uma floresta atravessada por bandas, uma galeria dos “anciãos foliões”, uma sala de esgrima (o espaço que se descreveu com as três vidas anteriores). Quererá a revelação deste espaço, aliada à técnica das coberturas de aguarelas e ecolines, servir de figura e chave a todo o livro? Serão as pessoas personagens, então, ou bem pelo contrário, densas apenas na medida em que se constroem através de várias camadas, visíveis sempre de modos diferenciados de acordo com a posição do observador? Robbie é admirado, mas é também imitado - existem imagens que mostram chusmas de sósias de Robbie, quase como num livro de Onde está o Wally? - o que nos leva a pensar que ele não é, de forma alguma, um indivíduo, mas apenas um modelo. Se ele parece sedutor e divertido, e consegue convencer Naomi a ir com ele para a cama (a cena de sexo, explícita, e variando as técnicas do desenho, é nela mesmo um momento inteligentíssimo de representação), depois disso revela ser vazio, o que é corroborado pela sua conversa com Gert, o qual, se antes parecera patético, nos surge então como uma personagem com algo para contar, mas que acaba por não ter direito à palavra no livro, e acaba por ser visto como um simples desistente.
Quem é o alvo que diz não querer estar onde está? Este Gert? Naomi, que termina a sua noite de sonho com uma dúvida terrível? O próprio Robbie, o qual, apesar de nada verbalizar nesse sentido, poderá ser visto como esse corpo “esvaziado”, por corresponder mais à imagem dos outros do que à dele mesmo? Outras personagens, algumas sendo mais identificáveis por surgirem várias vezes ou terem algumas características facilmente visíveis? Se há uma insistência, por razões óbvias, de citar Grosz como uma referência, algumas cenas - de rua, nas escadas do prédio de Gert, em filas de músicos ou de pessoas a dançar - recordarão procissões de foliões tais como ocorrerão em variadíssimas situações espalhadas no mundo (Carnaval, Anos Novos, natais de seres divinos, etc.) mas mais particularmente, e até pelas circunstâncias artísticas-geográficas do autor, os quadros das turbamultas de Ensor. Nesta imagem, vemos o que parece ser um grupo de alunos com cabeças de cogumelos, no canto uma espécie de membros de uma banda militar, acima duas raparigas quase gémeas, e personagens avulsas que se parecem gnomos, caricaturas estilizadas (Tomi Ungerer tabém parece estar por ali). E muitas outras cenas de Les Noceurs mostram personagens irmanáveis a estas, mereçam ou não nomes próprios e funções específicas, importando apenas que eles surgem para adensar o número e a massa visual do livro.
Quem dirá então, “Onde não queres estar”? Não sabemos se haverá uma resposta mais certeira, ou pelo menos nós não a saberemos. Mas como uma canção - “Estou bem…./aonde não estou/ porque eu só quero ir/aonde eu não vou” -, talvez seja o saborear do livro, à medida que se o saboreia, mais importante do que esperar pelo fim dela, ou da festa.

2 comentários:

  1. atão... (...)"porque eu só QUERO IR/ aonde não vou". inadmissível senhor pedro! de castigo vai ter de cantar 30 avé marias numa igreja protestante perto de si!

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  2. Como diria Scooby Doo, "Rorry"!
    "Avé, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre..."x 30.
    Pedro

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