Aqueles leitores que tiveram oportunidade de ler as edições francesas do trabalho de Suzuki, sobretudo Le Kimono Rouge, não serão particularmente surpreendidos pela natureza deste trabalho, mas para os leitores anglófonos, este é uma forma de conhecer o mundo fantástico e onírico deste autor japonês. Em relação a essa outra antologia, este volume da D&Q tem apenas 2 histórias em comum, logo, 9 “novas”. Tal como o volume francês, também este não contém qualquer informação específica e complementar que nos ajude a ler essas histórias de um modo mais contextualizado: não sabemos quando foram publicadas originalmente, se se tratam de peças da Garo ou de outras publicações, quais as suas datas exactas, etc. Se a ideia de se tratar de uma colheita que atravessa a produção do autor ao longo das décadas vem à tona, isso dever-se-á mais às diferenças do desenho do que de uma informação mais certeira. Mas fica-nos a felicidade de acrescentarmos mais conhecimento em relação a um importante autor de uma tipologia da banda desenhada japonesa ainda a merecer um destaque especial e uma atenção cada vez mais aprofundada, até para contrabalançar uma ideia feita que se teme venha a moldar indelevelmente a imagem da mangá em geral.
Uma das histórias incluídas neste pequeno volume, e que dá nome à colecção, “Um único fósforo”, poderá recordar-nos o famoso conto de Andresen. Um miúdo encontra-se às portas da sua vila e encontra-se com um vendedor ambulante, que lhe dá lume para um cigarro. No intervalo dessa brevíssima luz, desdobram-se imagens soltas, fiapos de memórias ou de sonhos ou de desejos. Não percebemos com exactidão quais, ou se de facto há alguma diferença, ou a quem pertencem... Essa natureza fragmentária atravessa todos os contos de Suzuki, e não conseguimos imaginar outro modo melhor que o da banda desenhada em que o autor conseguisse moldar as mesmas emoções, ritmos e toques, pois esse carácter fragmentário está presente à escala de cada vinheta: há histórias em que parece que cada vinheta não segue qualquer tipo de encadeamento lógico subsumido à vontade narrativa ou de clareza referencial, mas antes como se se apresentassem como peças soltas, as quais perfarão um tecido coeso apenas nas mãos do leitor, na sua própria interpretação (mas não de todos os leitores, talvez…).
O desenho de Suzuki não é sólido nem virtuoso como se poderá esperar num estreito prisma de referências, ou estará abaixo do desejo de beleza consensual que muitas vezes se busca nesta arte, mas é de uma personalidade equilibradíssima para electrificar a fragilidade destas personagens e destas histórias. É essa uma boa forma de as descrever: frágeis mas electrificadas. Há uma energia fortíssima, uma tensão que de tão forte acaba por tornar a sua matéria inerte, uma sequência de rochas inamovíveis. E, se realmente estamos perante um leque alargado no que diz respeito à sua cronologia de trabalho, veremos aqui histórias de várias naturezas, umas com composições de página mais clássicas, com muitas vinhetas estruturando acções quotidianas e naturalistas, e outras mais suaves, digamos assim, com um número reduzido de imagens, mais inclinadas à emergência de uma sensação do que de um evento.
Como dissemos, atrás, aquela noção de vagueza informativa, ainda que plasmando-se na perfeição à obra de Suzuki, deixa-nos todavia perplexos em relação a alguns aspectos. Perguntamo-nos se alguns dos aspectos, elementos ou acontecimentos das histórias não poderiam, dado um maior contexto ou informações culturais específicas, tornarem-se mais claras. Isto é, até que ponto será a vagueza, a indefinição, o texto “aberto”, não fruto da própria intencionalidade (e intensidade) onírica e poética da obra, mas de um mais básica incompreensão cultural? É aí que tememos poder haver o perigo de uma sobreinterpretação cuja contextualização histórica resolveria e tornaria mais ancorada. Não há dúvida de que existem escolhas do autor em construir com mais solidez os ambientes, um espaço envolto numa bruma de sensações, do que uma decidida diegese. “Fruit of the Sea” parece ser aquela que mais avança uma história concreta, passível de ser tratada por uma sinopse clara, mas mesmo assim prefere seguir uma dimensão acrónica. Eventualmente, “Mountain Town” e “Crystal Thoughts”, mas também “Town of Song”, serão aquelas com traços mais autobiográficos - sobre uma infância pobre, revelando uma relação de uma criança com desejos como as outras crianças mas incompatibilizadas com a miséria do pai, e mesmo abertamente em conflito com as escolhas e personalidade do pai (nesse aspecto, o retrato social que faz do Japão do pós-guerra inscreve-se numa veia mais realista, o que é inédito ou menos comum na banda desenhada japonesa da sua geração, sempre favorecendo géneros escapistas, mais ou menos adultos) - mas não sabemos até que ponto é que a ficção também se joga nesse campo. Essas histórias contrastam com um par de outras de contornos literalmente surrealistas… Em “Evening Primrose”, uma jovem mulher encontra-se com o seu namorado, que nada mais é do que uma cabeça flutuante; em “Tale of Remembrance”, duas personagens, uma menina e um menino, parecem encontrar-se, ou talvez recordarem-se um do outro, para se dissiparem no céu nocturno, mas sob uma narração que não sabemos a quem entregar. “Color of Rain” começa por mostrar uma criança a sofrer uma febre, e a encontrar-se com o seu irmão mais velho… que nunca teve, negligenciando assim os cuidados que a velha avó lhe presta: as duas perdas misturam-se, a distracção por uma pessoa pauta-se pela obsessão por outra.
Oji Suzuki, através de todas e cada uma destas histórias, faz um retrato dos traços mais profundos das dúvidas ou temores morais que nos atravessam enquanto seres humanos, nas relações ou nas pequenas lutas quotidianas, mas sem nunca construir retratos directos dessas mesmas realidades. O autor prefere percorrer caminhos desviantes, de elementos mais rarefeitos, mas que possivelmente chegam de um modo mais penetrante e que atingem efeitos mais duradouros. Sentimentos mais próximos da angústia, da depressão, da tristeza, e da resignação, do que de qualquer outras emoções marcam o tom destas histórias. Se alguma alegria houver, será sempre mascarrada por uma dor qualquer, uma ausência, uma perda… A matéria é a dos sonhos, da poesia. A condição humana é transfigurada pelos caminhos da poesia, tal como esta é possível transmitir pela banda desenhada.
São obras como esta que dividem os leitores entre aqueles que vêem um só fósforo, e os que vêem o brilho nele liberto.
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