
Existem muitos artigos hoje em dia que já começam a corrigir o mito (que nunca foi mais do que isso, e repetido através da inércia da desatenção) de criação ab ovo e total da “graphic novel” por Will Eisner com A Contract with God, tal como se procuram já sistematizar questões mais prementes como a circulação do termo em si e o seu uso específico nos vários contextos, a aproximação entre o “álbum” europeu (algo que existe desde o século XIX em variadíssimas formas e que se consolidará no “48CC franco-belga”) e os TPBs norte-americanos que se querem fazer passar por “graphic novels“, uma abertura mais ampla para as primeiras compilações no início do século XX das tiras norte-americanas, os Big Little Books, as “woodcut novels”, e muitos livros esparsos de vários autores que criaram nos anos 1930, 1940e 1950 livros narrativos com imagens que podem, de todas as perspectivas (excepto as mais restritivas), ser incluídos nesta história ainda em construção. A leitura do livro de Leonardo De Sá, do de David Beronä, do de Jean-Christophe Menu, do pequeno grande guia de Seth, e da antologia The Rise of the American Comic Artist são alguns dos instrumentos que os leitores podem utilizar para compreender o complexo prisma que se pode formar nessa senda, e como é difícil (e até improdutivo) desejar uma resposta final e cabal.

Raymond Briggs é um daqueles nomes que não surge de forma repetida nas discussões sobre a banda desenhada, ou da história da graphic novel, mas quem perde é esse mesmo território, já que não podemos de alguma forma chamar Briggs de um autor “esquecido”. Autor de alguns dos mais famosos e comoventes livros ilustrados infantis, como The Snowman e The Bear (sendo o primeiro um livro de banda desenhada tout court), é também autor de uma série de narrativas de banda desenhada de temas mais adultos, como When the Wind Blows e Ethel & Ernest. O primeiro trata de um casal de pessoas de meia-idade de uma Inglaterra a braços com a guerra nuclear, e que seguem todos os passos ditados pelo governo de forma a se protegerem da catástrofe, mas cujo previsível desfecho em nada destrói a narrativa, pois o que vemos ao longo da narrativa é a mais comovente das maneiras do amor tentar superar a sombra inefável da morte. A sua adaptação ao cinema de animação é também famosa. O segundo é uma biografia dos pais do autor, explorando as aspirações e desilusões da classe proletária do Reino Unido desde as décadas de 1920 a 1970. Também essa história será alvo de um filme de animação, em 2012.

Discutivelmente, poderemos dizer que um dos últimos grandes tabus na banda desenhada - e em tantos outros círculos da cultura contemporâneo - é a velhice. Ainda que haja muito para fazer, existe espaço de expressão para toda a multiplicidade das sexualidades, para a expressão das várias feminilidades contemporâneas, de posicionamentos políticos oposicionais, perspectivas diferentes sobre as mais variadas questões. Até as doenças têm espaço para serem protagonistas da banda desenhada. Mas os velhos continuam arredados de papéis principais ou positivos.
Já aqui havíamos falado de Une Plume pour Clovis, de Gébé, que é um livro que retrata de forma positiva uma personagem velha. Baudoin é outro autor que se poderia citar nesse arrolamento, como alguns outros. No entanto, há um culto irritante da juventude que parece empurrar os mais velhos para um espaço de invisibilidade e imprestabilidade. Mesmo personagens que eram mais velhas nas suas versões clássicas, como Sherlock Holmes, o Super-homem ou James Bond, são representadas cada vez mais jovens, como se houvesse necessidade de assegurar uma visão “natural” de que apenas a juventude é capaz das suas acções (e isso relacionar-se-á com as múltiplas versões “young”: Young Sherlock Holmes, The Young Indiana Jones Chronicles, Young Bond, Young Dracula, Smallville…). É claro que a idade se move culturalmente. Ter 30 anos na Palestina do século I não era ser-se jovem, mas sim um homem maduro. Hoje muitas vezes ainda é palco de adolescências tardias. Ter 60 anos nos anos 50 era ser-se “velho”, mas hoje 60 anos não é sinónimo de “imprestável”. É óbvio que questões de saúde, classe e economia se misturam na equação (se não são esses factores sinónimos ou condições mútuas), mas em termos gerais, pelo menos no mundo ocidental, somos mais velhos mas mais saudáveis e activos.
Briggs falava de idosos num tempo em que a “meia-idade” não significava nem “novas oportunidades” nem “meio-caminho da nossa vida”, mas sim um momento de quase fechamento, de derrota. É aí que a personalidade de Jim parece ser de uma poderosa resistência.

A trama em si é linear. Jim trabalha numa casa de banho pública, e vai atravessando cada um dos seus sonhos, depois tenta realizar alguns deles, sempre encontrando obstáculos que lhe parecem ser tão intransponíveis quanto misteriosos, mas sempre encontrando em Hilda uma paciente aliada. No fim, o seu último sonho é realizado: torna-se num “highwayman”, ou seja, num assaltante montado a cavalo. Mas a ideia, mais uma vez, em nada corresponde à vida romanceada de Dick Turpin, e Jim acaba por ser preso.
A ligação entre o bravo cavalo de Turpin e a pileca do pobre Jim inscreve-o naquela classe de personagens literárias cujo âmago tem a ver com a ilusão literária invadindo as suas vidas: Quixote, Bovary, o detective Paul Auster d’A Cidade de Vidro. E aí reside grande parte da força gráfica de Briggs. As duplas páginas são tratadas como uma unidade, muitas vezes, mostrando como o sonho “invade” o plano da realidade. Ainda que o tratamento de suaves lápis e cores texturadas de Briggs seja uma constante, de quanto em vez ele procura uma variação nesses episódios de sonho, como os tons dourados e cromados sobre os “executives”.



Nota final: agradecimentos a Nuno Franco, pelo empréstimo do livro.
Este senhor é um dos autores de BD que deveria ser mais "falado" e comentado.
ResponderEliminarExcelente artigo Pedro.