Como muito exactamente apelida o autor e ao mesmo tempo intitula o seu prefácio a este livro de Leonardo De Sá, o jornalista do Público Carlos Pessoa, especializado em banda desenhada, fala do “investigador paciente”. No reduzídissimo panorama português afecto a uma abordagem mais constante e coesa da banda desenhada – falando aqui de crítica, investigação, pesquisa histórica, académica, levantamento bibliográfico, colação de documentos, preservação da memória, garante do património – o papel de Leonardo De Sá é fundamental, e a “paciência” a que Carlos Pessoa se refere traduz-se pela afincada, persistente, cuidada (senão mesmo febril) e, esperemos, coroada tarefa a que este investigador se tem dedicado há décadas.
Pela falta de apoios e condições para a investigação e estudo da banda desenhada, seja por organismos estatais ou mais circunscritos, académicos ou especializados, é difícil acreditar em esforços titânicos que não procurem uma recompensa imediata, mas que se movam por uma vontade indómita e um interesse genuíno por uma área em particular. Todavia, é precisamente esse o espaço que Leonardo De Sá ocupa.
Se os leitores me permitem, gostaria de deixar claro que em algumas ocasiões me socorri do apoio dos conhecimentos de Leonardo De Sá para confirmar ou aprender uma informação sobre um autor ou um trabalho de banda desenhada, e sabemos, por experiência de terceiros, que o seu conhecimento e poderes de navegação bibliográficos são não apenas amplíssimos como exactos. Repescando uma pequena piada, se este autor nos indicar que a vírgula lá está, ela lá estará.
Leonardo De Sá tem alguns trabalhos cuja capa se orna com o seu nome, de catálogos e monografias ao fundamental Os Comics em Portugal e o Dicionário dos Autores e Banda Desenhada e Cartoon em Portugal, ambos fruto da sua colaboração ou trabalho de edição sobre a matéria de António Dias de Deus (todos os acrescentos e informações para as épocas mais contemporâneas são de Leonardo De Sá). A existência de um livro é sempre o corolário de um trabalho longo que acaba por se tornar invisível para além dos restritos círculos da especialidade, e são estes os gestos que permitem alargar o público a que se chega. Este pequeno volume reúne e expande os artigos que havia publicado no BDJornal, de Machado-Dias, também editor da Pedranocharco, mas esses mesmos artigos fazem parte já de um arsenal, ou melhor, do aparato crítico com que De Sá executa as suas investigações, arqueologias e escritos.
Os verbetes, se é que assim os podemos chamar, oscilam entre termos relativamente centrais e recorrentes no estudo e discussão da banda desenhada (“balão”, “vinheta”, “sequência narrativa”), outros mais circunscritos a realidades nacionais (“fumetti”, “tebeo”, “gibi”, “mangá”), passando por termos histórica e politicamente mais carregados, ora mais genéricos (como, precisamente, os géneros, de “ficção científica” a “western”) ora mais ligados a esta área (“graphic novel”, “novela gráfica”, “linha clara”), discutindo termos que terão a ver com o mundo da edição mas que importa dominar com correcção para um melhor estudo da área (formatos, tipos de papel, de impressão, a questão do “Direct Market“, etc.), e ainda expandindo a atenção para com outros objectos que de uma forma ou outra tocam a banda desenhada, a complicam e a tornam parte de um corpo cultural mais vasto (“cromos”, “desenhos animados”, “fotonovela”, “caricatura”, etc.) ou áreas cuja circunstancialidade nacional explica a sua inclusão neste volume (“problemística policial”). Ou seja, existem pontes de acesso aos vários domínios histórico, formal, estético, genérico, sociológico, económico, artístico, da banda desenhada. É claro que sendo verbetes – uns mais desenvolvidos, outros mais curtos – não podemos estar à espera de textos que procurem uma integração mais espraiada, pautada e desenvolvida na convoluta história desta arte, mas mesmo os textos mais pequenos providenciam-nos com as pistas mais sólidas e amplas para fazermos um estudo atento e correcto. Leonardo De Sá em caso algum, mesmo os mais complexos como “comic books” ou “graphic novels” ou “super-heróis”, se coíbe de alargar a perspectiva, demolindo sem perdão os muitos mitos que se repetem nos textos mais diversos sobre banda desenhada. E mesmo quando não lhe é possível pôr em causa de uma forma mais expandida um qualquer ponto, a sua escrita cheia de apartes irónicos aponta porém à virtualidade desse posicionamento: por exemplo, em relação à expressão “9ª arte” (que nós, noutra ocasião, também procurámos desmontar), o autor chama “lunática”; e referindo-se ao Super-homem, explica que para além da kriptonite, o famoso personagem pode também não ser invulnerável ao desinteresse generalizado e à repetição cansada das fórmulas narrativas…
Também em Os Comics em Portugal, já citado, se notava este tom de exaustão e completude. Nem sempre isso torna a leitura “por atacado” mais agradável, mas o propósito do Léxico Disléxico é a sua consulta, sobretudo. Por outro lado, e neste caso em particular, não poderemos dizer que a matéria esteja verdadeiramente assinalada pela marca do trabalho de historiador, que requer um outro tipo de respiração e integração, onde a importância do conhecimento nominal está subsumida a um entendimento mais geral e orgânico, com vista à interpretação (essa já província, discutivelmente, de outras disciplinas). Nesse sentido, seria incomportável, por exemplo, desdobrar os géneros nos seus sub-géneros (o do western nas epopeias dos colonos, conflitos com os povos nativos americanos, duelos, vingança, etc.), ou integrar o desenvolvimento da banda desenhada japonesa na história da arte específica ao complexo asiático, averbando as artes imagéticas autóctones, as tradições literárias, o desenvolvimento social e estético local, os pontos de contacto com outras culturas e até mesmo a emergência dos discursos nacionais face às suas próprias artes. Mais, e como não poderia deixar de ser por se tratar de uma obra composta por apenas uma pessoa, a sua personalidade é assinalável, e todas e quaisquer selecções ou ausências, estruturações e chamadas internas, são da sua responsabilidade, isto é, não poderão ser vistas como fechamentos das mesmas questões, mas antes pontos de partida pertinentes à sua discussão. A título de exemplo, é notável uma espécie de preferência ou de atenção maior para com exemplos mais históricos e clássicos da banda desenhada do que de experiências mais desviantes ou contemporâneas (apesar de se citar Martin Vaughn-James, quiçá por insistência do trabalho de Domingos Isabelinho entre nós), ou a inclusão de exemplos muitas vezes obscuras e de interesse em si mesmo relativo, mas que compõem a complexidade do tema, e são como que alerta para a ideia de que é possível tomar decisões finais ou fechar as descobertas de supostas origens. Essa perspectiva, ainda assim, é salutar no sentido em que sempre alarga essa visão mais global e providencia-nos com instrumentos e exemplos surpreendentes. Todavia, se todos esses objectivos não se podem exigir do Dicionário, e esses desvios existem mas não minam o projecto global, esta pequena grande obra atinge com precisão e felicidade os objectivos a que se propõe, e é desde logo um instrumento indispensável em qualquer bibliografia básica que se arrogue de estudo desta área.
O autor afirma não providenciar uma bibliografia a este volume por se tratar de uma longa jornada por entre centenas de livros, artigos, e conversas pessoais com alguns dos intervenientes do meio a que se dedicou estudar, e não temos quaisquer dúvidas de que a sua inclusão tornaria este volume no dobro do seu tamanho, senão maior, e de uma quase inavegável lista de trabalhos consultados. Todavia, confessemos que em alguns casos gostaríamos de ter aprendido de onde viria uma certa citação, que título ou artigo procurar para aprender mais sobre um assunto, que edição consultar, etc. O material dos verbetes é original mas sabendo nós que existem livros, sobretudo estrangeiros, sobre determinados temas, desdobrando-os e integrando-os num contexto necessariamente mais desenvolvidos, essa “perseguição” seria aconselhável. Só nos resta esperar que esta acção faça despertar o interesse de um projecto editorial com a capacidade económica em tornar possível a edição (e manutenção continuada) do projecto maior em que este “glossário enciclopédico” se integraria como prefácio (!), segundo Carlos Pessoa, o inédito Dédalo: O Catálogo Enciclopédico da Banda Desenhada em Portugal.
A palavra “universal”talvez pareça relativamente exagerada, tendo em conta logo à partida o tamanho e a centralidade da tarefa, mas não deixa de ser justa no esforço e alcance, já que algumas entradas se referem a tradições menos imediatas e alguns dos termos abrangem linhas associadas a vários países, mostrando não apenas a erudição do autor como também o seu desejo em que se considerem, de facto, essas várias tradições como parte de um todo, independentemente de se terem verificado ou não ligações e descendências directas. É nesse sentido que universal é um apodo justo e que torna esta publicação numa ferramenta cujo desejo de ver traduzida em outras línguas menos periféricas que a nossa não é de todo displicente.
O problema paradoxal é que o léxico disléxico é, a um só tempo, ponto de chegada da longa, aturada e consistente pesquisa de Leonardo De Sá e ponto de partida para todos aqueles que desejem estudar esta arte de um modo similarmente cuidado. Mas estamos seguros que o próprio autor considerará esta edição como mais um passo à sua sempre continuada procura por uma maior exactidão e completude.
Nota: agradecimentos à editora e autor, pelo envio, repetido por culpa nossa, do livro.
15 de janeiro de 2011
Dicionário Universal da Banda Desenhada. Pequeno léxico disléxico. Leonardo De Sá (Pedranocharco)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:17 da tarde
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