
O autor dessas bandas desenhadas é Luís Manuel Gaspar, um nome reconhecido de certos círculos, mas arreigado das avenidas de maior fama na comunidade da banda desenhada e da ilustração, as mais das vezes perseguindo a mesmidade, e apenas ao de leve territórios de facto que procuram sendas diferentes, caminhos mais estreitos, quem sabe mesmo rotas que poderão não dar a largas alamedas, mas pelo menos a cantos cujo encanto pertencerá àqueles que se esforçam para o atingir. Esses trabalhos jamais foram reunidos em qualquer espécie de antologia, e este livro-catálogo, associado a uma sua exposição que reúne (alguns d)estes trabalhos, repõe essa justiça e torna acessível a um maior número de leitores este estranho mas decisivo contributo a um capítulo menor da banda desenhada: a sua união com a poesia. (Se digo menor, quero apontar o seu uso por Deleuze e Guattari, uma ideia que balbuceia no interior de uma linguagem segura, oficial, para conseguir dizer algo que não é apenas diferente no tom, na estrutura, mas em toda a sua condição. É aí que se instalará a pesquisa de novas ramificações (ou saídas rizomáticas, se preferirem) da banda desenhada, e esta arte em particular encontrará espaço para crescer, diversificar-se, transformar-se por dentro, partir noutras direcções).
As páginas aqui reunidas são portanto de bandas desenhas cuja matéria verbal bebe de um punhado de poemas e prosas, escolhas judiciosas, ditadas pelo conhecimento e sensibilidade do autor (que também é poeta), e talvez num ou outro caso pela circunstância da publicação. Esta antologia mínima da poesia portuguesa abre um leque variado, mas sobretudo voga pelos poetas do século XX. Como explica e nada nestas águas João Paulo Cotrim no seu prefácio, a matéria de Luís Manuel Gaspar é multímoda, procurando beber de muitas fontes e trazendo para o mesmo espaço - o da composição dos seus poemas desenhados, das suas bandas poéticas - referências que tanto podem ser vistas como contraditórias - a exactidão do traço e da trama do desenho científico e a brusca captura de um momento - como íntegras na mais profunda das justezas de união.
As leituras que os poemas e os desenhos de Gaspar permitem são muito diversas, e seria necessário uma interpretação passo a passo, talvez mesmo o repetir todos os seus gestos, para compreender a envergadura desta pequena grande obra. É verdade que existem outros autores que estabelecem elos criativos e verdadeiramente transfiguradores entre a matéria original de um poema, ou de um texto literário maior, e as suas bandas desenhadas (Dice Industries, Diniz Conefrey, von Blixen, Warren Craghead III), ou outros que procuram pulsações poéticas no seio da própria banda desenhada (Vaughn-James, Richard McGuire, Aidan Koch, Fabrice Neaud), mas tal qual como ocorre na poesia, por oposição a certos tipos de prosa (romance, géneros mais específicos), também esta banda desenhada está aberta a leituras que se alterarão a cada nova leitura, haverá sempre espaços de silêncio e de novos desdobramentos a cada nova intenção de um só leitor, e a sua transmissão ao outro encontrará sempre barreiras de mais difícil travessia. Afinal, é sempre mais fácil recomendarmos um romance a outra pessoa do que um poema, sobretudo se o outro leitor não estiver desde logo disposto a ouvir esse poema.

Poderíamos quase explorar outro tipo de ritmos e distribuições em todos os poemas/prosas, como aquele logo ao lado d’As Evidências, o Nome de Guerra, de Almada: as legendas encontram-se num fluxo rítmico constante em cima e em baixo em relação às vinhetas, e onde ela não existe (a quinta vinheta) encontra-se “substituída” pelas letras garrafais das inscrições de uma loja, não permitindo assim a total ausência da palavra escrita, e curiosamente encimando o rosto de Almada, a única representação humana, e muito contrastante, dessa transformação. Mais curioso ainda, é esse rosto poder ser visto como algo que interrompe a(s) porta(s) que perdem o lugar em nome dos arcos, ou o próprio arco do olhar e da escrita de Almada, logo a seguir transfigurada na forma da ponte de ferro. E no caso de Aldeia, de Manuel da Fonseca, das ruas apertadas do Alentejo acompanhamos os “pombos bravos” para a abertura do “longe” e do “descampado”…

A preferência do artista é para paisagens de onde a presença humana é retirada, não para criar lugares sob a patina de fumos, sombras ou ecos fantasmáticos, como Atget, mas para espaços esvaziados, ou melhor, acabados de esvaziar. Isto é, não interessa tanto um fingimento de não haver marcas humanas - afinal vemos casas e ruas, algumas em ruínas, outras prístinas, vemos construções, transportes, interiores de lojas e cafés, aqui uma pega ao touro, ali o trabalho agrícola ou a faina, a pesca da baleia - mas antes uma desatenção à figura humana de um modo central. Como se se quisesse integrar na consciência de que alguém passou por ali, mas sem jamais interessar olhar para essa pessoa passando. Claro que nem sempre isto se verifica: vemos um casal dando as mãos, vemos homens em busca e capturando a baleia e a luta com o touro nas quatro pranchas de Mau Tempo no Canal; um retrato de O’Neill e outro de Almada nos textos respectivos; um rosto de mulher sangrando (recorda a pintura de Magritte, La Mémoire) no de Sophia; homens trabalhando n’“A ria de Aveiro” de Brandão; um transeunte em Desaparecido, de Carlos Queiroz; planos aproximadíssimos de olhos que se querem expressivos e estatuários a um só tempo. Algumas dessas actividades mostram-se ao longe (quase todas as cenas de pescadores), ou em enquadramentos que os colocam fora de campo (a tourada, por exemplo), ou em ângulos que quererão dar a ver uma perspectiva impessoal (o transeunte do poema de Queiroz). E, tal como afirmámos, os olhos que nos perscrutam intensamente são mais próximos dos de uma estátua do que os de um ser vivo. Mesmo alguns animais em vida - a cobra, o cão, o touro - , têm qualquer coisa de inerte, no sentido de se congelarem como uma palavra, passível de ser lida pela eternidade, mas revelando sempre contornos diferentes a cada passagem.
Quererão estas construções de Luís Manuel Gaspar procurar nessas estranhas inércias um espaço que pertença à morte, figura tutelar do acto poético? Será uma busca pela ausência de vida, com todo o desconforto, caos e antipatias que trazem as coisas que se movem para fora dos planos possíveis de fazer? Será uma forma de negar espaço ao humano porque ele já está prenhe de forma indelével nos próprios poemas? Este é um livro que obriga a ler em conjunto texto e imagem, não para perceber que síntese será possível - talvez nenhuma o seja - mas para jogarmos aos espelhos, retornando de um para outro incessantemente, até encontrarmos sempre novos caminhos para retornar, de novo, sempre, à leitura original.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. A capa é em tons de amarelo-creme, o scanner faz um serviço péssimo.
pedro, obrigado por este texto magnífico. um grande abraço!
ResponderEliminarOs meus textos não são mais do que meras respostas feitas no interior da obra que ecoam... pouco mais.
ResponderEliminarAbraço,
Pedro
o scanner pede sempre a ajuda do photoshop
ResponderEliminarPedro, agora por escrito: muito obrigada pelo seminário na Fluc e pelas posteriores impressões!
ResponderEliminarNão tenho facebook mas vai-nos mantendo a par destas "academicisses", por favor. Hoje Coimbra, amanhã o mundo!
Best
Cláudia Pinto
Olá, Teresa.
ResponderEliminarÉ verdade, mas não percebo da poda. Procure quem queira, possa e deva!
Cláudia, obrigado eu! Eu também não tenho (ainda?) facebook, mas darei notícias muito, muito em breve.
Pedro
entäo se näo queres saber da poda, näo te queixes
ResponderEliminarNão é não querer saber. Não tenho Photoshop nem scanner, por isso nem sempre consigo fazer essas correcções. Apenas espero que haja quem arranje melhores imagens do livro e, melhor ainda, o compre, obtenha, troque...
ResponderEliminarAbraços
pedro
ok
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