Nas oportunidades que temos em falar da história da ilustração, com alguma especificidade em relação aos seus vários campos (infantil, científica, literária, infografia, etc.), existem alguns momentos em que certos exemplos, nomes ou obras complicam essa estratificação e tornam as categorizações não apenas dúbias como problemáticas. Um dos temas recorrentes é o da ilustração infantil russa do início do século XX, quer abordando-se as magníficas e operáticas construções imagéticas de Ivan Bilibin, antes da Revolução, quer os trabalhos da literatura infantil judeo-russa de Chagall, quer ainda a aplicação do Suprematismo de Malevich às narrativas para os pequenos, como o clássico Sobre Dois Quadrados, de El Lissitzky (que, repetimos, podem ver na íntegra aqui).
Bagagem é dos livros mais tardios das colaborações entre o artista Vladimir Lebedev e o escritor Samouil Marshak (foi editado em 1926, em Leningrado), e se existem muitos recursos online destes seus trabalhos, a sua existência numa edição mais recente e, mais importante ainda, numa língua a que temos acesso (o russo não sendo uma delas, infelizmente), torna a sua apreciação muito mais real e próxima do que a distante teorização. No entanto, não saberemos dizer se esta edição respeita a original no seu formato, técnica e paginação; esta edição Ouvroir Humoir/Frédéric Déjean Éditeur é um harmónio, preso à capa apenas por um lado, e tem uma técnica de impressão que parece imitar a serigrafia, mas cuja exactidão e suavidade leva a pensar ser off-set.
Marshak é apontado como o inventor da literatura infantil russa. Não sabemos até que ponto é que essa afirmação faz sentido, mas imaginaremos que se trata de uma apreciação entusiástica e hiperbolizada da sua obra por oposição a, talvez, obras anteriores que estivessem demasiado pautadas por encómios aos círculos habituais da autoridade (Deus e o Czar), mas também pela emergência dos programas de alfabetização, escolaridade e atenção para com as crianças e jovens na também jovem União Soviética, ainda imbuída de um espírito libertário, de experiências culturais de vanguarda cuja bateria de efeitos e estratégias serviria para a “a descodificação comunista do mundo” (esta frase pertence a Dziga Vertov). Estaline espreitava à esquina para, com o realismo socialista, acabar com essas “burguesias”.
Mas nesse momento riquíssimo, Lebedev, e os seus companheiros das vanguardas russas dos anos 1920 (Construtivismo, Suprematismo, Produtivismo), tinham uma atitude para com a arte que se associa sobremaneira ao sentido etimológico dessa palavra, com a raiz na ideia grega de “técnica”. Em vez de se referirem às suas criações enquanto object d’art, isto é, obras com uma circulação cultural cujo valor reside no seu trânsito entre instituições sociais específicas (galerias, museus, balanços estéticos), de um valor determinado - e mais tarde, totalmente comerciável - em termos económicos, preferiam vê-las como objectos propriamente ditos. De acordo com Lev Manovich, as palavras empregues eram vesh, construktsia, predmet. Isto significa que esses artistas assumiam não o papel de excepção que essa mesma função - a de “artista” - parece querer ganhar, mas o de cada factor de trabalho associado à função profissional que vestiam na acção concreta: designer gráfico, pintor, escultor, cineasta, autor de cartazes, ilustrador, artista de propaganda, arquitecto, etc. As características deste livro mostram precisamente essa atitude e trabalho.
É bem possível que Lebedev não tenha o mesmo peso na História da Arte que os já citados Malevich ou Lissitzky (seria preciso mais investigação e conhecimento para saber qual o peso se estudássemos a situação de um ponto de vista exclusivo à ilustração), mas foi um pintor que atravessou muitas das linguagens artística do seu tempo, pelo Suprematismo, Cubismo, e foi também autor de algumas das janelas ROSTA e TASS (recordem-se do livro de Alaniz para abrir esse território ao da banda desenhada e da história da ilustração e caricatura europeia), dedicando-se finalmente às edições de literatura ilustrada infantil, sendo mesmo director da Detgiz, uma das “Gizs”, isto é, editoras do estado, esta dedicada a esse território.
O poema de Bagaj é uma espécie de lengalenga, em que uma senhora rica viaja com um grupo muito preciso de objectos, aos quais se acrescenta um pequeno cãozinho de companhia, que se extravia. Cada nova estrofe repete sempre essa lista de objectos - uma caixa de chapéus, um sofá de veludo, uma sacola às riscas, um baú de viagem, uma moldura com um retrato, uma mala de couro - independentemente disso ser necessário ou não (lembra com muita precisão a letra da “Mudança do Macaco Zacarias” de José Barata-Moura); o que importa é o ritmo de repetição e ritmo que tanto enriquece esse tipo de poesia e de texto infantil (a repetição é, de resto, uma questão de intensificação constante para as crianças e não de aborrecida oferta do “mesmo”). Esse ritmo de repetição do texto é imitado pelas imagens, todas as páginas mostrando de uma forma ou outra, com variações, esses mesmos objectos, dentro ou fora da carruagem, arrumadinhos ou em trânsito ou desarrumados. Mais, o espaço ocupado pelo texto faz uma espécie de bloco, cujo posicionamento é permutável com os blocos, usualmente dois, compostos pelas imagens. Assim, apesar da existência do esquema de separabilidade entre texto e imagem, essas relações na composição parecem garantir também uma flutuação da primazia de um sobre o outro, e dos valores internos dessa mesma relação. Das oito páginas, que fazem “unidades de sentido”, seria curioso estudar com exactidão que intervalos as imagens criam em relação ao texto, e como a narrativa e emoções retratadas se instituem nesse espaço.
Bagaj, un voyage en Russie, é assim uma obra-prima da literatura ilustrada infantil, mas também das relações criativas e libertárias entre texto e imagem, de design de livro, de composição, …
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