Em muitos aspectos, os ensaios reunidos neste volume fazem convergir em vários objectos - de banda desenhada - instrumentos e metodologias polidos noutras áreas de investigação, da literatura ao cinema, e passando mesmo, ou sobretudo, por testemunhos não-ficcionais. Assim, convergem aqui áreas tais como a autobiografia (Philippe LeJeune, Gillian Whitlock), os trauma studies (Cathy Caruth, Dori Laub, Shosahan Felman) e a psicanálise, que subjaz a essas outras áreas. Os resultados são muito diversos, oscilando entre ensaios bastante longos a curtíssimos depoimentos, mas essa mera descrição em nada revela o valor dos mesmos, como se verá.
Apesar da autobiografia em banda desenhada ser um tema suficientemente aberto para encontrarmos na sua história exemplos recuados (Bordalo Pinheiro, Fay King), ela só se coalesceria enquanto género continuado a partir da década de 1960 nos Estados Unidos (com Harvey Pekar e Robert Crumb) e no Japão pelo filtro da auto-ficção (Hayashi, Tatsumi, Tsuge) e um pouco mais tarde em França (com tentativas de vários autores, incluindo Moebius mas encontrando em Baudoin o seu farol mais visível e sustentado), e com um crescimento internacional e exponencial nos anos 1990, um pouco por todo o lado (não sendo Portugal excepção, apesar dos parcos exemplos, como Marcos Farrajota e, mais tarde, Marco Mendes).
Em termos históricos, esta colecção concentra-se mais na banda desenhada das últimas décadas, e não tanto na possibilidade de investigar casos mais recuados ou que tornem problemática - e mais interessante, operativa e aberta - a concepção de autobiografia, com uma excepção (é portanto, um sinal diferente dos ensaios de Laurence Grove e Jan Baetens na Belphegor, no. IV-1).
E, como será de esperar, há uma maior concentração em produções norte-americanas do que de outras paragens, e destas, apenas as que atravessaram tradução para inglês e alguma exposição mediática. Consulte-se aqui para o índice.
A grande exposição pode mesmo ser um ponto de partida excelente, e sem discussão, como já havíamos visto a propósito de The Rise of the American Comic Artist, Maus, de Art Spiegelman, ocupa um lugar de proeminência muito especial. O retorno, quase sistemático, a essa obra para auscultar o estado dos estudos de banda desenhada, moldados por variadíssimos prismas e metodologias, é quase obrigatório, e é por essa razão que a primeira secção deste livro lhe é dedicada. Paul John Eakin fala das camadas entrosadas de tempo e criação que estão implicada na leitura de The Complete Maus, edição com CD-Rom e variadíssimos materiais de trabalho e desenvolvimento do autor (estamos em crer que o projecto MetaMaus não apenas revisitará esses mesmos materiais, como torná-los acessíveis nas plataformas tecnológicas mais actuais, o que torna o CD-Rom problemático, como o próprio Eakin discute numa nota final; Marianne Hirsh, uma importantíssima referência dos Trauma Studies, pela sua noção de “postmemory”, fala precisamente desse mecanismo na narrativa que mescla as experiências de Art e do seu pai Vladek e, muito incisivamente, demonstra como os papéis femininos são subalternizados nessa mesma construção (não chega a ser misoginia propriamente dita, talvez, mas uma secundarização que não procura um equilíbrio de agenciamentos; seja como for, é algo muito claro sob os filtros freudianos); em dois curtos textos, Erin McGlothlin e Bella Brodzki estudam a mais recente história de Spiegelman, “Portrait of the Artist as a Young %@&*!”, incluída na nova versão da antologia Breakdowns, o primeiro focando sobretudo no aspecto de re-criação gráfica, a segunda encontrando na desarrumação cronológica da sua memorização pistas para a educação artística de Spiegelman.
A parte testemunhal é de uma importância extrema, e a segunda sessão concentra-se nessa outra faceta das narrativas não-ficcionais que desejam devolver alguma realidade do mundo. Mas o número e natureza dos objectos estudados mostra como todos esses conceitos - testemunho, realidade histórica, narrativa, ficção - podem ser postos em causa de modos bem diversos. Sidonie Smith estuda todo um manancial de banda desenhada institucional que visa educar, alertar ou promover consciência sobre direitos humanos, com trabalhos das Nações Unidas, da Ordem Mundial de Saúde, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, sobre Sida, direitos das mulheres, desastres naturais, mas também A.D. New Orleans after the Deluge de Josh Neufeld, comparando sempre com obras de maior perfil crítico (Satrapi, Spiegelman, Bechdel, etc.). Lynda Haverty Rugg estuda a fotografia de Richard Avedon que abre este parágrafo, retratando o realizador Jacques Truffaut e o seu “sósia”, não apenas actor-fetiche, Jean-Pierre Léaud, para escrutinar as fronteiras fluidas e dúbias entre auto-representação, performance, “autobiografia cinemática” através do compósito "Antoine Doinel", etc, com “picturing oneself as another”. Jan Baetens estuda a primeira obra de Dominique Goblet, Portraits Crachés, para descobrir como a vanguarda da banda desenhada, ou este caso em particular, pode minar a narrativa, as estratégias visuais e estruturais mais correntes da banda desenhada, da própria ideia de representação e testemunho do eu, mas para re-criar essas mesmas forças e formas de modos diferentes. Michael A. Chaney, o editor, opta pela leitura de Smile Through the Tears, do autor Rupert Bazambanza, um autor do Ruanda que sobreviveu ao massacre (genocídio) de 1994 e vive hoje no Canadá, criando livros de banda desenhada sobre esse mesmo tremendo evento; o estudo estuda em particular a integração dos animais como testemunhas nessa história. Stephen E. Tabachnick lê L’Ascension du Haut Mal de David B., em toda uma série das linhas de força dessa obra, desde a ausência de separações nítidas entre as representações das memórias, das fantasias e dos sonhos, e até mesmo das projecções mais tardias, contribuindo ao mesmo tempo para um aumento das possíveis categorias da autobiografia, dando continuidade a uma tipologia de William Howarth com uma nova classe, a da “autobiografia da descoberta”. Fechando esta secção, James Dorsey apresenta umas breves considerações sobre as relações da mangá com a crise social e cultural no Japão de 1960, focando sobretudo a série 20th Century Boys (e também a mais breve 21st Century Boys), de Urasawa Naoki, a qual se apresenta como uma obra multifacetada e prenha de elementos que permitem explorar não apenas a obra desse mesmo autor, mas todas as ramificações que cria com a sua cultura, tempo e área de trabalho, tornando-o num nódulo muito interessante de estudo.
Sendo a autobiografia um género que teve um crescimento exponencial particular, nos Estados Unidos, numa primeira fase na década de 1960-1970, com os underground comix, e depois da década de 1990, com a cena alternative, ele veio trazer um conjunto de instrumentos de auto-expressão e exploração do si que foram rapidamente empregues por autoras femininas, que encontraram aí - mesmo que de modos diferentes da canónica definição de autobiografia (coincidência entre narrador, protagonista e autor, segundo a imagem do “pacto autobiográfico” de Lejeune) - maneiras de criar resistência. Essa resistência foi mais sentida na primeira fase, pois não era apenas cumprida em relação ao meio da banda desenhada em geral, mas também ao movimento underground, que se se libertou de certas amarras anteriores, não era, por outro lado, menos limitador em relação à imagem das mulheres. Só quando elas mesmas assumem a sua voz é que se atinge um reequilíbrio mais significativo. Numa secção dedicada ao género, “Visualizing Women’s Life Writing”, encontraremos alguns dos ensaios, a saber, 7, mais desenvolvidos e prementes.
Julia Watson estuda a maneira como Alison Bechdel, em Fun Home, problematiza a “herança” sexual entre o seu pai, homossexual escondido, e ela mesma, lésbica assumida; as ligações que Bechdel descobre entre si própria e o pai, a forma como ela actuava os papéis de todas as personagens, inclusive os seus familiares, para a construção do livro, é extremamente reveladora de um método raro de trabalho e de complicar as ligações genealógicas interpretáveis no seio dessa narrativa familiar. Leigh Gilmore e Nima Naghibi elegem Persepolis como objecto de estudo em dois textos diferentes, sob o foco do trauma, para desvendas representações da infância, das relações temporais entre eventos narrados e narração, de tensões de classe, de visibilidade do imaginado e censura do testemunhado, numa leitura muito poderosa. Phoebe Glockner participa com duas páginas para confessar como não é uma autora autobiográfica, levantando problemas para os seus intérpretes (tal como as suas próprias imagens, mesclando a sua profissão de ilustradora médica e autora de banda desenhada, como a que aqui mostramos, complica essas relações de poder, representação e apropriação de instrumentos de expressão) mas, ao mesmo tempo, desvelando novas pistas de inquirição sobre a sua obra, a qual é prontamente estudada num outro ensaio de Theresa Tensuan, que a utiliza como ponto de partida para a análise de várias bandas desenhadas que versam o cancro da mama e as crises que fazem emergir (ela lê sobretudo Cancer Vixen, de Marisa A. Marchetto, entre outras) para revelar, no fundo “uma espiral infindável de insatisfação e desejo” (pg. 189). Carolyn Williams estuda a obra literária de Eve Kosofsky e Donna C. Stanton a fotográfica de Joanne Leonard, mostrando assim como não apenas o estudo da banda desenhada pode aproveitar-se de muitos instrumentos desenvolvidos no estudo de outras áreas artísticas, mas como o estudo dessas mesmas áreas pode ganhar com conceitos fundados na análise da banda desenhada, no primeiro estudo as relações intervalares proporcionadas pelo espaço intervinhetal, e no segundo como se cria uma “consciência dividida entre o privado e o público” (pg. 200) através das relações da narração com a imagem.
A última parte reúne vários trabalhos que discutem as “variedades do si [self]”, a saber: a banda desenhada diária, sobretudo American Elf, de James Kochalka, (por Isaac Cates, que curiosamente não menciona de forma alguma o facto de que Kochalka se representa como um elfo, o que poderá trazer um grau de auto-ficção/auto-representação de extrema importância); o literalmente seminal Binky Brown de Justin Green, por Joseph Witek; o importante narratologia David Herman discute as obras de Mary Fleener e Jeffrey Brown para explorar a “construção de mundos” na criação gráfica; Bart Beaty, autor do fulcral Unpopular Culture, mostra os elos que une o trio Chester Brown, Joe Matt e Seth, como forma de se “reforçarem mutuamente”; Rocío G. Davis deixa uma nota breve sobre a utilização de estereótipos raciais no American Born Chinese de Gene Luen Yang; Hillary Chute parece re-utilizar o capítulo de Graphic Women sobre Lynda Barry; e é essa mesma autora de banda desenhada que é abordada num texto breve de Andrea A. Lunsford sobre os workshops, palestras e encontros com essa artista, para a apelidar de, surgindo essa dimensão como acima de todas as outras e complicando-as, “professora”.
Esta secção conta ainda com mais três artigos adicionais, que parecem estar deslocados da matéria principal ou “convencional” do livro. Um artigo curiosíssimo, bem argumentado e balizado na análise narratologia, sobre Watchmen (de Moore e Gibbons), para encontrar níveis graduais de destruturação da teleologia da relação entre autobiografia e verdade e de controle da representação do si em discursos públicos (conforme as narrativas internas na primeira pessoa de Hollis Mason, Rorschach, Dr. Manhattan - “vistos em conjunto, estes três narradores de vida criam uma tipologia de incerteza e instabilidade crescentes que desafiam a ideia de uma individualidade [selfhood] autónoma unificada, a noção de que toda a identidade humana está fundada um núcleo essencial, um conceito pessoal baseado num conjunto discreto de experiências pretéritas que são facilmente capturáveis, compreensíveis e relatadas através de memórias narrativas individuais verificáveis” (pg. 272) - e as entrevistas a Sally Jupiter/Juspeczyk/Silk Spectre e Adrian Veidt/Ozymandias). Outro em que Damian Duffy explica como construiu uma banda desenhada interactiva em 3D e que elos é que isso lança com a representação dos mecanismos da memória humana, e da representação do Outro e da experiência do si. Finalmente, Ian Gordon faz um breve elogio à obra-mestra, o livro académico Comic Book as History: The Narrative Art of Jack Jackson, Art Spiegelman e Harvey Pekar, de Joseph Witek, ao mesmo assegurando o modo paulatino e seguro com que os Comic Studies se têm estruturado nas últimas décadas.
Todos estes estudos, portanto, de vários autores, obras, géneros e linguagens, moldam uma imagem riquíssima de como “o privado deve ser um testamento, um testemunho, e um relato (…) transformando o pessoal no público através da arte” (Stanton, pg. 201), cujo contributo da banda desenhada contemporânea não é, de todo, displicente.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
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