Após a leitura de Composition, é-nos impossível olhar novamente qualquer página ou presença de banda desenhada sem entender, de imediato, as estruturas propostas por Chavanne. Elas irradiam uma luz específica que se torna identificável muito facilmente depois do seu estudo aturado tal qual apresentado de modo nítido pelo autor. É como se este imenso livro fosse um daqueles aparelhos de optometria, os óculo de prova, em que se vão tentando várias lentes até acertar com a graduação correcta. No caso de Composition, a graduação, ou escala, é a do espaço de composição, o qual, se classicamente é a “prancha” (uma página completa), pode assumir várias dimensões e configurações, como veremos. “A banda desenhada (…) permite construir uma representação do mundo a partir da organização de fragmentos coerentes” (pg. 11), diz ele ao início. É essa organização o alvo do estudo. [na verdade, uma metáfora mais correcta seria a das lentes múltiplas de um microscópio ou de um telescópio, mas o erro está feito].
Renaud Chavanne inscreve-se directamente numa tradição francófona (para não dizer francesa) plenamente ancorada na abordagem pós-estruturalista da análise da banda desenhada. Apesar de ainda acrescentarmos nós o nome fundamental de Pierre Fresnault-Deruelle (cujo binómio linear-tabular teve grande fortuna), o autor cita Benoît Peeters como fundador do estudo da composição de página (em Case, Plance, Récit), e Thierry Groensteen nas inflexões que o seu Système de la Bande Dessinée permitiram sobre os campos delineados por Peeters. Claro, Chavanne indica ainda o seu trabalho anterior sobre Jacobs, para com esta nova obra expandir o seu foco em termos de quantidade, diversidade e eficácia. Não estamos, contudo, perante uma alucinada fantasia formalista. Tal como Peeters e Groensteen, o autor não deixa de fazer sempre chamadas pertinentes para a história da banda desenhada. [veja-se, na “conversa” com Chavanne, adiante, as distâncias inteligentes que o autor coloca entre si e esses outros analistas]. O seu objectivo é “iluminar as formas da composição e os princípios que as animam, assim como o desvendamento das mutações sucessivas dessas formas e a explicitação das razões que fazem com que, em determinados períodos, algumas delas sejam mais usadas que outras” (57). Note-se desde logo a dimensão da história. Esta não será nunca uma análise superficial, “procu[ra-se] a razão, e não [somente] a observação” (141) das estruturas. O que implica que a descrição formal se associe de imediato aos conteúdos temáticos, figurativos, semânticos da obra em questão. Chavanne não pretende, todavia, apresentar-se como um investigador que tenha esgotado todas as possibilidades de análise: “O nosso propósito não é cobrir a totalidade das modalidades potenciais da composição, mas de fazer compreender os princípios, através dos quais, por seu lado, oferecem àquele que os domina a compreensão das razões da imensidade do campo dado pela fragmentação no que diz respeito à organização das imagens” (145). Esses princípios são “um factor de complexificação” (173), e o autor - apesar de não criar qualquer hierarquia em termos de força estética, predominância histórica ou de veiculação semântica - vai organizar o seu livro desde as estruturas mais “simples” (as pranchas ditas regulares, ou “de grelha”) a composições de grande complexidade, como a “ultra-tira” ou até composições que metem em causa a raiz básica da sua proposta, que é a de que é a estrutura-tira que subjaz a toda a composição na banda desenhada.Há duas palavras importantíssimas nesta obra, chaves mesmo. “Prancha” e “tira”. Planche e bande. Estamos sempre aqui, quando nos queremos referir a páginas de banda desenhada, a falar de “pranchas”. Como explica Charles Hatfield em Alternative Literature, o facto dos franceses utilizarem esta palavra em vez de “página” (page) aponta desde logo a uma capacidade de, no âmbito da banda desenhada, se estar a pensar numa unidade de composição visual, e não somente num suporte material. Isso é fulcral. Dizemos “na página 34” deste livro de banda desenhada para localizar, mas “a prancha 34” para a ler e analisar. Quanto a “banda” ou “tira”… Recordemo-nos de que o termo português é a uma só vez uma tradução literal e homofónica do termo original francês bande dessinée, que é por sua vez tradução do termo específico, em inglês, “drawn strip” (e não genérico, como comics). Ou seja, na verdade, em termos linguísticos deveríamos dizer “tira desenhada”; mas isso demonstra de imediato o foco limitado. Nas nossas mentes, hoje em dia (mas provavelmente não para aqueles que empregam termos como Histórias aos Quadradinhos, ou outros), a banda desenhada é vista como um território mais alargado, incorporando as tiras. Apesar destas não serem historicamente anteriores às páginas de banda desenhada (a história é demasiado convoluta, mesmo que se queira partir de Töpffer como se fosse ab ovo), o que Chavanne pretende é que se retorne à máxima atenção ao primeiro termo, bande/tira, como unidade primeira de composição da página/prancha. Daí que reafirme, já depois de ter avançado substancialmente pelos seus modelos e contramodelos, que “a construção da página, mesmo nas estruturas complexas e extremamente instáveis que as composições retóricas fragmentadas podem ser, devem conceber-se fundamentalmente como a articulação de tiras sucessivas”.
Como dissemos acima, o autor integra-se numa continuidade com outros autores (de uma forma, é preciso dizê-lo, mais sustentada - no que diz respeito à imediata aplicabilidade da teoria/estrutura em casos exemplares, concretos e diversos), sobretudo Peeters, o qual em Case, Planche, Récit, havia avançado com uma forma basilar e importante de pensar as estruturas da banda desenhada. Importa recordar, ainda que numa brevidade redutora, a tipologia das pranchas de acordo com Peeters. Para este, o encontro na banda desenhada de uma faixa visual e outra narrativa criava dois eixos, um primeiro de domínio de uma sobre a outra (casos em que a história é mais importante que as imagens, ou casos em que as imagens têm primazia sobre a história), um segundo de trabalho independente ou de interdependência de ambas (ora conduzem na mesma direcção, ora apresentam vários graus de autonomia). O cruzamento desses dois eixos leva à emergência de quatro tipos de pranchas: convencional (domínio da narrativa + autonomia entre narrativa e imagem: as vinhetas têm sempre o mesmo tamanho), decorativa (domínio da imagem + autonomia entre narrativa e imagem: a prancha apresenta-se, em primeiro lugar, como uma unidade visual), retórica (domínio da narrativa + interdependência entre narrativa e imagem: as vinhetas assumem tamanhos e formatos conforme o seu significado interior) e produtiva (domínio da imagem + interdependência entre narrativa e imagem: há uma preocupação primeira na estruturação da página e depois um “preenchimento” conceptual). Não podemos, aqui, alongar-nos em demasia sobre o poder e a fragilidade dessa tipologia, mas Chavanne procura responder com precisão a este edifício conceptual, assumindo algumas dessas classes e desfazendo-se ou transformando em profundidade outras (também Groensteen havia operado, em Système de la Bande Dessinée, a uma correcção, por assim dizer, de Peeters, mas Chavanne é mais exaustivo).
Assim, Renaud Chavanne propõe a seguinte série de tipos de prancha, sempre baseado na ideia de que a unidade primária é a da tira - um conjunto de vinhetas posicionado num eixo ininterrupto horizontal, mesmo no interior de uma página (o trabalho de Jacobs era claro, na sua história interna de publicação, mas o autor encontra esse princípio estrutural em toda a banda desenhada). São elas as modalidades de composição regular (as vinhetas são sempre do mesmo tamanho), semi-irregular (há diferenciações internas, expansivas ou inflacionárias, a partir de uma matriz regular, isto é, através da fragmentação e da fusão das vinhetas), retórica (idêntico a Peeters, ou seja, adaptabilidade da vinheta à acção representada), fragmentada (irregularidades no eixo vertical da composição, obrigando a movimentos ópticos curvilíneos, e não somente de recuo-e-baixar), e finalmente uma classe sem nome, que o autor reúne num capítulo intitulado “compositions à l’oeuvre” 153 e ss.). Os modelos depois são descritos com um chave numérica que corresponde a uma tira, com cada número referindo-se ao número de vinhetas que existem nessa composição. Por exemplo, uma tira de três vinhetas seria 1/1/1; uma tira idêntica mas em que a última vinheta fosse dividida em dois seria 1/1/2; podendo haver depois segundos, terceiros ou ulteriores graus de subdivisões. E garantimos que é muito mais simples do que parece nesta breve descrição (curiosamente, o acesso rápido a cópias digitais dos livros, permitindo uma consulta com imagens pequenas, ou “thumbnails”, permite-nos compreender de imediato essas estruturas).
Por seu lado, no que diz respeito às composições fragmentadas, existem modelos, como o 2/1/2 (imaginem uma tira no interior da qual se sucedem duas vinhetas, seguida de uma vinheta maior central, e depois outras duas), que são “bastante correntes” e “mais sofisticadas”, e cujo efeito é a da construção de uma “maneira simétrica”, concentrada na “parte central da tira”. Os exemplos que Chavanne dá (a prancha VII) arrola exemplos de McCay [o autor mostra apenas a terceira das quatro tiras que compõem esta página] e McCay, Got-Pétillon, Lolmède, Franquin, Charlier-Giraud, Schuiten-Peeters, F. Ayroles, Masashi Tanaka e Miller-Sienkiewicz. O que se denota assim é um efeito comum, um protocolo comum, ainda que qualificado sempre de modos muito específicos.Num modelo diametralmente oposto, ou seja, 1/2/1, os efeitos comuns seriam “a passagem entre as duas vinhetas que abrem e fecham a tira”, podendo com a “parte fragmentada [e central] da tira” “chamar-se a atenção para detalhes que não poderiam ser postos em evidência nas duas grandes vinhetas periféricas, inserir uma micro-sequência dialogante entre as duas imagens mais vastas, decompor um movimento. A parte mediana da tira pode assim ser empregue para dinamizar ou apresentar de uma forma rápida uma transição entre duas cenas menos sujeitas à temporalidade, e assim apresentar, por exemplo, a transição entre dois estados, entre duas situações” (pgs. 126-128). [o autor tem outro exemplo de Herriman, neste caso a tira superior desta página] Estas são apenas duas das modalidades abordadas pelo autor, e que no seu interior se revelam multímodas e abertas.
Como se indicara, o autor admite a existência de procedimentos composicionais que colocam em causa, definitivamente, a tira enquanto processo primário. O reinvestimento (e crise) do olhar de retorno - isto é, o movimento que o olhar faz quando chega ao fim de uma tira e se desloca para o início da tira seguinte - é o primeiro caso, encontrando nalgumas das pranchas de The Jew of New York, de Ben Katchor, um exemplo acabado. Um segundo caso é o do bustrofédon, o qual, como o próprio nome indica, imita o sistema de escrita grego de alinhar palavras da esquerda para a direita e na linha seguinte da direita para a esquerda. O exemplo para esse caso é retirado de Las Minas del Rey Salomon, de Salinas, caso gritante dessa comparticipação progressiva no interior de uma mesma obra. “Sabíamos que a ausência de homogeneidade da altura de uma tira é um factor que contribui para o enfraquecimento ao suprimir-lhe um dos seus traços distintivos. Vemos agora como essa variação da altura da tira, no seu próprio seio, pode conduzir o olhar para uma trajectória ao contrário, e construir assim um bustrofédon, que é uma outra marca do enfraquecimento da tira” (209). Seguem-se “intricações e construções centrípetas” que aumentam o grau da plurilegibilidade de uma prancha. Todos estes modelos contribuem para “essa multiplicidade de relações pertinentes [que] sobrecarregam a comparticipação da estrutura da leitura (…) [efectuando-se] a organização de uma leitura deslinearizada, múltipla, a elaboração de um discurso e de uma expressividade na qual a globalidade não pode ser decomposta numa sequencialidade simples” (232). Há outros aspectos que são explorados pelo autor, mas infelizmente não nos podemos alongar demais sobre esta obra monumental: as relações entre os textos e as imagens, a forma como os espaços dos textos constituem um “pavimento” especial no espaço de composição, etc. Chavanne tem aqui um modelo que apenas a leitura directa, e depois a aplicação dos seus ensinamentos, pode provar o esperado impacto.
Na continuidade, avança-se para modelos ainda mais singulares, que pedem por especificidades de leitura não convencionalizadas por exemplos mais repetidos, ou por variações estilísticas muito particulares. Um desses modelos é a “ultra-tira” (ultra-bande). Por um lado, o autor parece estar a referir-se àquilo que Peeters definira como pranchas decorativas, na medida em que são pranchas das quais (parafraseamos) “emana uma imensidade, uma desmesura que difunde o sentimento da desaparição da tira em proveito de uma construção global”; no entanto, “essa impressão muito forte não resiste porém ao escrutínio da composição e das modalidades da leitura” (173-174). Outro processo é o da intercalação [enchâssement], em que uma tira se insere no interior de outra. Os casos estudados são os de Chris Ware, cuja análise (aqui fortemente ontogenética, cf. adiante) faz emergir a ideia de composição por fases sucessivas de fragmentação interna, e cuja complexidade “faz nascer uma dúvida sobre a natureza da tira” (181). No entanto, perguntamo-nos o que se fará de um caso como esta página de Jessica Abel em que se mostra literalmente uma sobreposição. A “tira” do centro pode ser lida como apenas um objecto semi-diegético flutuando sobre o espaço de composição (um conjunto de fotos instantâneas das personagens da história), mas a utilização de balões de fala impede que essa leitura seja correcta, ou pelo menos final, exercendo um poder de gravidade que a reinscreve no tecido diegético. O autor adverte que, “stricto sensu, segundo a definição que demos da tira, não pode existir uma tira dentro da outra. Da mesma maneira que é formalmente impossível que uma página de um livro seja inserida numa página do mesmo livro.
A intercalação diz respeito às formas, a reiteração de modelos, a repetição de estruturas similares” (184). O exemplo mais claro é a de, por exemplo, no interior de uma vinheta, se representar uma ou mais páginas de uma banda desenhada (que uma das personagens estaria a ler, por hipótese). O seguimento lógico desse modelo é aquilo que Chavanne chama de “boneca russa”, que ele vê como “divertida”: “intercaladas umas nas outras como bonecas russas, podem conduzir a composições vertiginosas” (185). Um exemplo é este de Moebius.A hiperfragmentação é ainda outro desses modelos. Trata-se de uma “fragmentação muito abundante, decompondo a tira numa multidão de vinhetas, algumas claro de dimensões muito reduzidas, levando a que se dissimule a [presença da] tira nessa multiplicidade de vinhetas” (188). Os exemplos-chave são de Crepax e, mais uma vez, Ware, apontando-se como essa opção “é efectivamente uma tensão na direcção de um além da tira, o desejo ou a necessidade de uma composição ordenada por outros princípios”. Mais, apoiado nas leituras magistrais de Bruno Lecigne e Jacques Tamine de Crepax (Fac-Simile), encontra-se nesse modelo “um princípio de composição que consiste em pôr a tira em causa, empurrando-a para o excesso das suas próprias regras de estruturação das vinhetas” (189). No caso de Crepax há mesmo casos de pranchas que podem ser lidas de vários modos, todos eles possíveis e de idêntica valorização de significado (uma das formas, portanto, de através da análise encontrar em Crepax um verdadeiro reinventor das estruturas da banda desenhada, superior a outros artistas que usualmente lhe estão associados pelo lado do mais primário erotismo bacoco). “A perturbação da leitura não parte da organização das vinhetas, mas das escolhas na ordem da representação. A indecisão vem do facto que a estrutura das vinhetas oferece várias interpretações de leitura possíveis, e que o desenhador foi cuidadoso de aí colocar representações que não permitem impedir essa opção” (195). Poderíamos dizer que a estrutura se mantém, mas o mapa mudaria.
francamente experimentais a nível da composição - não os Abstract Comics, nem The Cage, nem “Here” nem Spuk, que, apesar de tudo, seguem os mesmos modelos - mas alguns exemplos do jornal Paper Rodeo, de Fort Thunder, o último número de Promethea, de Moore e Williams III, o “Playtime” de Joe Matt, entre tantos outros eventuais exemplos). Sobre o artista norte-americano, escreve o analista que “a pesquisa de soluções da organização das imagens transgredindo a tira passa por, em Ware, uma estruturação de agregados, isto é, reagrupamentos de imagens coerentes, reagrupamentos que são por sua vez estruturados uns com os outros”. Referindo-se sobretudo às enormes “távolas” de Quimby the Mouse, focam-se aquelas páginas em que as várias camadas de fundo/cenário, representação da acção e representação da memória (da personagem) se confundem no plano de composição. Por outro lado, há agregados, como o autor diz, que são como que unidades internas e flutuantes no interior do mesmo plano. Ware atinge assim algo de especial; ainda que se refira a uma página em particular, podemos encontrar nesta afirmação um princípio recorrente: “A tira é portanto marcada por uma unidade de composição, mas igualmente por uma autonomia discursiva e semântica muito manifesta” (249). Mais, “[essa] modificação dos princípios de composição tem como objectivo a elaboração de um tipo de discurso, evocando uma modalidade particular de funcionamento do intelecto” (257), revelando assim o modo como cada protocolo de leitura implica necessariamente uma nova disposição cognitiva da parte do leitor.O autor jamais negligencia a integração deste discurso formalista na História, ora interna aos autores - apontando a certos desenvolvimentos operados na obra de um artista - ora a da própria banda desenhada. Por exemplo, o autor demonstra a importância de pensarmos nos modos e formatos de publicação das obras, citando Schulz ou Segar para demonstrar como as composições nos periódicos, uma vez que tiravam partido de uma relativamente reduzida paleta de tiras, apresentava uma maior flexibilidade do que a publicação em álbum (ou outro veículo), cuja composição é rígida no seu interior. Não há, porém, qualquer teleologia imposta a cada tipologia. Não se encontrará aqui uma suposta história apontando à preeminência história das composições regulares que, paulatina e irresistivelmente, “evoluiriam” para formas mais complexas… Mais, o autor insta os verdadeiros historiadores - disciplina que não pretende invadir - fazerem o estudo, tão em falta (como tantos outros domínios no seu seio), da história composicional da banda desenhada, custe o que custar… “É provável que à medida que os estudos apareçam muitas ideias pré-concebidas sejam postas em causa, por vezes dolorosamente” (56). O formato é mesmo constante fonte de informação para o autor. Aliás, este procura um grande rigor ao providenciar-nos bastas vezes com as medidas exactas das páginas e das vinhetas, indicando a sua origem. Recordemo-nos de um importante artigo de Pascal Lefèvre sobre a importância de atentarmos aos formatos utilizados (“The Importance of Being ‘Published’” in Comics & Culture, 2000). Realmente, mesmo que haja coincidência em termos tipológicos, não será o mesmo apreciar uma prancha desta ou daquela natureza numa página Sunday da década de 1920 ou num comic book contemporâneo, num álbum clássico franco-belga ou num tankonbon japonês, num Patte-de-Mouche ou num formato “livro” (isto é, aquelas dimensões flutuantes mas standard de um romance, por exemplo), etc.
Esta atenção intensa do autor em cobrir todos os eventuais aspectos da produção e criação da banda desenhada, que necessariamente terão um impacto significativo no trabalho da composição - estejam ou não os autores conscientes disso no momento de trabalho - leva a que haja casos em que o autor expõe argumentos que apelam para a importância de uma análise ontogenética dos trabalhos. É natural que a esmagadora maioria dos analistas das obras façam leituras esteticizantes constrangidas à forma final, publicada de um determinado trabalho (por vezes, confinando-se mesmo apenas a uma das versões: recordemo-nos das revisitações de Hergé aos seus Tintin, as versões retrabalhadas de Gilberto Hernandez ou de Chris Ware das suas obras maiores, das revisões de Maus). Por vezes, um olhar mais atento à estrutura das composições dessas versões publicadas podem ofertar-nos pistas de como um autor ou autora de banda desenhada lançaram os andaimes da composição, ora corrigindo ora melhorando uma opção - vendo-se a largura dos espaços intervinhetais, uma linha mal apagada, uma correcção, ou um desequilíbrio entre os tamanhos das vinhetas, etc. No entanto, o acesso aos materiais prévios dessa obra - rascunhos, primeiros esboços a lápis, etc. - poderão aumentar esse conhecimento, e assim fortalecer uma interpretação. “As diferentes modalidades da organização das vinhetas sobre o espaço de composição podem ser portanto solicitadas fora do estudo histórico de uma obra ou de um autor. Mas elas podem igualmente colaborar, serem convocadas por um autor no interior de uma mesma banda desenhada, a sua justaposição sendo, nas mãos do artista, um utensílio ao serviço da sua expressividade” (160).
Esta expressividade, toda aquela dimensão intuitiva do artista, é mantida pelo trabalho de Chavanne, que não quer impor este tipo de trabalho analítico numa posição nem de anterioridade nem de obrigatoriedade (discursiva) na prática dos artistas, assegurando assim a sua humildade enquanto teórico mas asseverando, ao mesmo tempo, a total pertinência e utilidade dos instrumentos que delineia. Assegura: “a decifração de um livro é uma operação complexa, difícil de realizar no termo de uma só leitura, e na qual numerosas porções se mantém obscuras após várias [tentativas]: o propósito encontra-se cortado, fraccionado, e precisa de uma reconstrução que jamais será completa e definitiva” (197).
Composition de la Bande Dessinée é, desde logo, um livro maior e obrigatório no estudo e análise da banda desenhada. O seu desconhecimento, como as leis, é inescusável a quem queira avançar-se na sua abordagem séria e balizada. E é um instrumentário de relativa fácil apreensão e aplicação, por mais aberto que seja nos seus efeitos. “A composição é uma arte infinita. Não somente pelo facto das variações de tamanho segundo as quais é possível modular as vinhetas, não somente em função da natureza do emolduramento e do espaço intervinhetal (ou a suas ausências), não somente em função do número de tiras sobre a zona de composição e do número de vinhetas alinhas umas ao lado das outras em cada tira: a fragmentação é um dispositivo maior na medida em que ela abre um campo potencialmente ilimitado da composição, quer dizer, a arte de colocar as imagens ao lado umas das outras, e portanto, da banda desenhada” (149, nossos itálicos). Veja-se este exemplo de Chris Ware, que imita um redemoinho e complica a possibilidade dos protocolos de leitura, estudado por Chavanne (e comparável aos exemplos, também abordados, de Sébastien Chrisostome).Notas finais: O autor teve a amabilidade de sustentar um diálogo connosco, que parcialmente passou por um texto de leitura primeiro enviado ao autor, uma série de perguntas e considerações. Com a sua autorização, traduzimos um texto que nos enviou e que estende a leitura de Composition. Podem aceder a ele, traduzido para português, aqui.
As traduções de todos os passos citados são feitas de modo livre, buscando-se mais a eficácia e transparência das noções do que uma fidelidade à frase. Agradecimentos ao autor, pela sua generosidade, a oferta do livro e o seu interesse, a disponibilidade e paciência. A atenção e simpatia de um investigador desta craveira humilha-nos.
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