De acordo com muitos autores, inclusive Charles Hatfield, a importância da serialização da banda desenhada é algo que a determina não apenas em termos económicos, mas criativos e ainda no que diz respeito às estratégias narrativas a que se permite. No primeiro aspecto, é claro: estejamos a falar de projectos mainstream, nos Estados Unidos ou na Europa (França, sobretudo), em que os autores são pagos pelo trabalho de forma imediata (work for hire, preços por prancha, etc.), ou de projectos mais alternativos com contratos de percentagens sobre preços de venda, a serialização significa a entrada de algum valor monetário de forma regular nas contas dos autores. E, assim, as suas carreiras tornam-se mais sustentáveis e conducentes, por vezes, a projectos maiores. Mas há quem opte precisamente por outras formas de trabalho, como Craig Thompson, que optou por não publicar serialmente Blankets, e conduzindo ao enorme livro que se conhece.
Em termos narrativos, a serialização permite que se explorem ritmos diferenciados, desde unidades contidas em cada publicação regular (as duas a quatro páginas pré-publicadas na revista antológica, o comic-book, ou o álbum, o capítulo) a unidades maiores (a série, o “arc” ou “run”, o trade paperback, a série limitada, o conjunto final, etc.). Cada caso particular, nas suas circunstâncias precisas, revelarão sempre resultados diferentes. Falarmos de algo pertencente aos universos de marca registada das duas grandes editoras de super-heróis (um episódio do Homem-Aranha, por hipótese) não é o mesmo que uma obra criativamente circunscrita (Blankets) não é o mesmo que uma história completa numa série de capítulos diferenciados (Sandman: The Doll’s House) não é o mesmo que a hipótese de um conjunto sempre aberto (Palomar) não é o mesmo que o esgotar de uma produção (The Complete Little Nemo in Slumberland).
No que diz respeito à criatividade, também essas diferenças se farão sentir conforme o contexto, desde textos cujo packaging está preso a fórmulas de uma empresa à possibilidade do autor poder controlar todo o seu aspecto, e até fases de produção.
Tal qual o seu colega e amigo Chester Brown, que há muito abandonou - para preocupação dos seus leitores e seguidores esperançosos da vida da Kupifam - o comic book Underwater, para se dedicar a projectos mais precisos e planeados, primeiro com a saga de Louis Riel e, há pouco tempo (e dele daremos conta muito em breve), Paying for it, é agora o artista Seth que abandona a fórmula da revista para abarcar a do livro. Curiosamente, Seth não abandona o título, nem sequer a numeração, logo Palookaville conhece aqui uma nova vida. Também é verdade que o último número havia saído em 2008 e mesmo antes havia sido extremamente irregular, saindo com intervalos de anos. Foi nessa revista que Seth mostrou as suas primeiras histórias mais autobiográficas, inscrevendo-se com facilidade no género mais em voga então nos inícios dos anos 1990, que surgiu It’s a Good Life if you don’t Weaken e as duas primeiras partes de Clyde Fans, ainda em curso.
Com este vigésimo número, as regras alteram-se. Um pequeno texto introdutório explicita tudo, a sua relação com o editor, o seu ritmo de criação e as vontades de criação, etc. A partir de agora, Seth promete, Palookaville será publicado como um pequeno volume cartonado, incluindo não apenas os próximos episódios de Clyde Fans, mas outros materiais heteróclitos. No caso presente, encontramos uma pequena história (“Calgary Festival”) que marca, de certa forma, o retorno a um registo autobiográfico que havia abandonado há muito (e desenhado de uma forma mais caligráfica e resumida do que o que compõe este livro/número), algumas páginas retiradas dos seus diários gráficos numerados (informação que nos leva a crer que possa haver não somente um desejo de fazer novas recolhas como Vernacular Drawings mas, quem sabe, imaginar-se uma edição completa no futuro) e, mais importante ainda, um pequeno dossier sobre o seu projecto, artisticamente não-identificado, Dominion City.
Em relação a Clyde Fans, os leitores de Seth estarão habituados aos ritmos de flâneur e fragmentado a que nos habituou. Há um passeio dado pelo velho Abe, mas num momento em que ainda lhe restava uma fímbria de actividade à frente da fábrica de ventoinhas, que apresenta aquelas intricadas construções de Seth que misturam a naturalidade sequencial da banda desenhada, com a da enumeração mnemónica, a construção de padrões texturados de imagens, e ainda outras configurações de múltiplas imagens em estruturas complexas. Essas páginas alternam-se com outras mais activas, digamos, em que se exploram as relações laborais instituídas pela fábrica, e a sua dissolução face à crise económica dos anos 1970. Um “establishing shot” faz-nos penetrar nessa fábrica de uma forma que nos recorda as estruturas desapaixonadas de Chris Ware, mas o uso de uma cor azulada, difusa e melancólica, integrada no relato reminiscente do velho Abe, transforma-a numa possibilidade de retorno que se vai negando com outros pontos da história. O círculo familiar desta saga aumenta também, englobando os pais, mas apenas para o fechar de uma forma mais veemente logo a seguir. Como dissemos, a serialização permite que se procurem ritmos de respiração diferenciados, e se o tipo de prazer alcançado com a leitura de mais um episódio desta saga familiar se expressa de alguma forma, ela terá com toda a certeza uma vida mais acabada na sua integração final no cômputo final.
Dominion City é um projecto que se pode chamar, pensamos nós, de escultórico. Trata-se de modelos de edifícios feitos em cartão de caixas de embalagem, pintados com tintas baratas, mas criados com uma intensidade muito pessoal. Seth já havia discutido este projecto com Todd Hignite, num dos números da Comic Art, depois reunido em In the Studio. A história é explicada nos textos de Seth, aqui muito nítidos e directos: o que começara como uma breve anotação sobre um espaço para um eventual novo projecto transformar-se-ia no próprio cerne desse projecto; o que era apenas um apoio para a construção do espaço ficcional de personagens (uma passagem secundária com Clyde Fans, mais central com George Sprott) tornou-se a personagem principal; o que havia começado com uma distracção criando-se um ou dois modelos de edifícios que nunca foram, para viverem no ambiente nostálgico de Seth, expandir-se-ia para uma dezena de objectos similares e coordenáveis entre si. O convite à sua exposição não tardou, e assim ganhou uma vida própria.
Dominion City traz toda uma série de questões importantíssimas e vivas na contemporaneidade da banda desenhada. A literatura e o cinema, para não falar de todo o território da visualidade gráfica, já conheceram vários casos em que os espaços, sejam tão reduzidos como um quarto ou amplos como uma cidade, ganham uma prevalência em relação às personagens antropomórficas. A própria banda desenhada, através de projectos como “Here”, de Richard McGuire, The Cage, de Martin Vaughn-James, e algumas das dimensões na obra multifacetada de Chris Ware, de Antoine Marc-Mathieu, de Jochen Gerner, entre outros exemplos possíveis, oferecem abordagens comparáveis. É uma pena que Comics and the City não lhe tenha reservado um ensaio. Mais, a expansão tridimensional, até mesmo escultórica, da banda desenhada, teve também já outros gestos, bastando-nos talvez citar a Glömp X (que esteve patente, entre nós, na Bedeteca de Lisboa, em 2009). Dominion City faz convergir estas duas linhas. É ela a própria personagem principal do seu projecto (como o Fuji o era nos livros de Hokusai e outros), e é ela quem obriga o “leitor” a compreender as possibilidades expressivas, textuais e imaginárias da banda desenhada de uma forma bem para além do suporte livresco. Para além dos modelos (que não são feitos à escala entre si, mas ante a uma escala “mental” imaginada por Seth) dos edifícios, existe ainda um volume de exemplar único, um “workbook”, em que o autor projecta as virtuais paradas, personagens, episódios, mapas e eventos dessa cidade. Uma das exposições montou-a mesmo no interior de um escritório de atendimento ao cidadão. É uma cidade fantasma do norte do Canadá, mas que se torna passível de experienciar através da “leitura”, abarcando esta a visita ao espaço em que os modelos possam estar expostos.
Instaurar-se-á aqui uma pequena revolução? A máquina reguladora, conservadora e convencional da banda desenhada não é conducente a que se procurem instalar novas formas de fazer e de fruir muito rapidamente, a menos que haja uma superficialíssima ideia de inovação que esconda a manutenção das mesmas práticas editoriais e comerciais (falamos do uso de novas plataformas digitais para a leitura da mesma coisa de sempre). São em gestos como os de Seth, não apenas a nível do seu projecto artístico com Dominion City, mas na própria maneira de alterar o seu ciclo de produção/publicação com Pallokaville (o qual, acrescente-se, é por ele totalmente dominado enquanto objecto gráfico e físico), que encontraremos efectivos e saudáveis exercícios de expansão conceptual para esta área.
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