Parece-nos haver uma tendência no Brasil de “novos quadrinhos” mais ou menos consistentes entre si, por algumas razões: a opção por estratégias narrativas fragmentárias ou lacunares; o uso de técnicas gráficas muito estilizadas mas descontraídas, através de uma abordagem caligráfica rápida, figurações flexíveis e composições menos convencionais; uma capacidade de mergulhar numa densa rede de referências e criar a partir delas textos novos, numa espécie de neo-antropofágico; um movimento de colheita, para essas referências, que tanto beberá da “alta cultura” como da “baixa”, sem recusar ligações directas ao mundo da banda desenhada, por vezes a mais popular - que agem mesmo como “desfibrilações” dessas outras criações, as mais das vezes.
Não queremos arriscar criar os contornos dessa cena, por um lado devido à nossa ignorância, por outro por podermos arriscar um cercado que não tem qualquer lógica senão a nossa circunstância de contacto com estes autores. Todavia, há alguns indícios de elos entre estes autores, por chamadas dos blogs de uns para outros, colaborações, e outras evidências mais ténues e sólidas. Mas Diego Gerlach, Marcelo d’Salete e Pedro Franz parecem pertencer a uma geração autoral relativamente próxima nestes termos. Recordando as experiências literárias de Michael Chabon, Jonathan Lethem e outros, mas indo mais longe em termos formais e de escopo, colocaria neste grupo Bruno Azevêdo, autor de duas novelas quase indescritíveis de contemporâneas que são: Breganejo Blues e O Monstro Souza, da qual esperamos também vir a dar conta neste blog ou outro espaço associado.
Ano do Bumerangue - ainda que no título da revista se leia apenas a sigla A.D.B., que poderia ser lida de uma forma alegórica mais misteriosa - é uma aventura do Fantasma que Caminha, a famosa personagem criada por Lee Falk. O autor brasileiro abre a sua publicação com um pequeno texto biográfico sobre o seu amor pelos gibis antigos dessa personagem, sobretudo citando Ray Moore e Wilson McCoy como proponentes de estilos relativamente perros, cáusticos e rústicos, que parecem ser a chave de resposta de Gerlach. Homenagem, pirataria, antropofagia, liberdade nada condicional de recriação?
A acção passa-se em Morristown, a capital de Bengali (Bangalla na versão brasileira), como sempre nas histórias do Fantasma [nota do autor: "embora o Fantasma tenha uma cronologia/mitologia confusa, em geral mudando ao gosto da diretora que eventualmente opciona o personagem, a capital de Bangalla, na cronologia americana, chama-se Mawitaan. Morristown seria o nome da capital no período pré-emancipação, quando o país ainda integrava a Commonwealth. Inclusive, a menção a um 'congresso na Suécia', feito por um dos personagens, é uma alusão ao fato de que, na Escandinávia, esse detalhe foi ignorado na cronologia do personagem (que tem suas histórias produzidas localmente), a título de não 'confundir os leitores'"]. Mas em vez de vermos a clássica representação de uma nação africana graciosamente protegida por um grande defensor democrático e, píncaro dos valores reconhecíveis, branco (leia-se “colonialismo” e até “neo-colonialismo” aos leitores ainda cegos a essa realidade), Gerlach utiliza uma fortíssima dose de realismo político actual, e não só, com vários partidos digladiando-se para ganharem as eleições, e revelando ao mesmo tempo as fracas costuras desses regimes, reforçando-o com temas de magia simpática africana, rituais indizíveis e até mesmo a intervenção do Fantasma como uma alucinada personagem, misto de vigilante, agente desinformado e branco perdido no mar de uma negritude que não compreende e provavelmente não compreenderá jamais. Fumos, drogas, prostituição, barbeiros baratos, insectos e bairros miseráveis, e suor profuso fazem também parte dos elementos que moldam a matéria da história. Não é uma narrativa totalmente clara nem conclusiva - misturam-se aspectos de descrição sócio-económica, integração na política internacional contemporânea, elementos de magia - , e testemunhamos um evento final terrível para o Fantasma, mas jamais saberemos o que significa: uma morte irredimível? Simplesmente um traumático acidente?
Diego Gerlach usa e abusa da personagem emprestada, chegando política e artisticamente mais longe do que se poderia num outro contexto mais convencional, como no uso permanente da personagem nos mesmos pressupostos. A que se referirá o bumerangue do título? O que regressa? Tal como queriam os antropofágicos, é o refluxo brilhante. O que regressa é a violência do colonizado, desta feita armado com as ferramentas da ironia e da criatividade reconstrutiva [nota do autor: "trata-se de um aceno a Sarte, no prefácio de 'Os Condenados da Terra', de Frantz Fanon: «É o momento do bumerangue, a terceira fase da violência: ela se volta contra nós, atinge-nos e, como das outras vezes, não compreendemos que fomos nós que a inauguramos.»"].
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do zine. Valeu! As notas inseridas no corpo do texto são provenientes de correspondência pessoal.
D'Salete, Franz, Gerlach. ¿Quién será el 4to jinete del apocalipsis? Me atrevo a postularme como candidato, los kilómetros son mi poder oculto.
ResponderEliminarDe certa forma inspirado pelos seus textos, escrevi sobre a mesma HQ aqui: http://enui.tumblr.com/post/9813065014/hq-02
ResponderEliminarEspero não passar por um mero propagandista, a intenção é de compartilhamento.
Oi, Thales, obrigado. Gostei dos trabalhos no "Enui". Será só na web ou virá versão papel?
ResponderEliminarAbraços,
Pedro
A princípio só na web mas se virar papel não seria de todo um mal.
ResponderEliminarAndo envolvido em outras atividades, mas pretendo escrever mais.
Abraços