Dos vários autores “clássicos” da banda desenhada franco-belga - isto é, estando em crer que existirá uma linha de ouro cumprida pelo domínio de um conjunto mais ou menos coeso de produção belga (Tintin, Alix, Blake & Mortimer, etc.) e francesa (Astérix, Lucky Luke [fase Goscinny], Valérian, etc.), vistos como “maiores”, “incontornáveis”, “sempiternos” (muitas vezes sem que essas afirmações sejam acompanhadas dos argumentos ou das razões que os tornem enquanto tal) - haverá sempre um outro grupo de autores que se vão dissipando ligeiramente, tornados invisíveis, esquecidos, apesar de, potencialmente, serem de uma verdade mais profunda, de uma poesia mais constante, de efeitos maravilhosos mais perenes. Quando se diz que uma obra é “datada”, é preciso explicar-se em que medida é que isso se verifica. Como quer Walter Benjamin, poderá ser ao nível do seu “teor material” ou do “teor da verdade”, que é precisamente o que distingue o trabalho do mero comentário, mais centrado no “teor material”, e o trabalho crítico, que pretende sempre libertar o “teor de verdade” que se aloja na obra de arte independentemente da circunstância histórica na qual essa mesma obra emergiu. Mas um não está totalmente liberto do outro; bem pelo contrário, e como ele próprio o afirma, “quanto mais significativo o teor de verdade de uma obra, mais este está discreta e intimamente ligado ao seu teor material” (Em “As Afinidades Electivas de Goethe”). Há obras, por vezes, que estão tão fortemente ligadas ao seu teor material - como por exemplo todos aqueles livros que tentaram utilizar de uma forma tecnicista e imediata todas as novas possibilidades do desenho digital na banda desenhada, sem qualquer preocupação em explorar as suas potencialidades expressivas. Por isso são datadas, ou pelo menos datáveis: as obras Tintin e Astérix, por exemplo, são-no nesse sentido, uma vez que expressam posicionamentos éticos muito próprios do seu tempo e que bem sempre sobrevivem para além desse seu tempo (daí que levem a extremos emotivos: ou ataques violentos de criticismo cego à história e às circunstâncias de produção, ou a defesas sofredoras de uma nostalgia entorpecedoras).
Fred, cujo nome verdadeiro é Othon Aristidès (de que o próprio se ri, tornando uma defesa perante o julgamento dos outros num processo de transformação individual, encontrando o nom de plume numa tira de banda desenhada norte-americana de Lyman Young, Fred & Tim) é um desses autores que está numa linha ténue entre um esquecimento mais generalizado e uma referência que é mantida nalguns círculos (para já, no que diz respeito à manutenção das edições, muito recentemente alvo de uma integral sob um formato “livro” novo condensado). Fred tem muitos títulos sob a sua assinatura, que aglomeram trabalhos que foi publicando nas várias revistas em que participou (Hara Kiri, Pilote), mas a sua série mais conhecida, e que também respeita em linhas gerais os princípios comerciais do seu mercado específico (tal como havíamos indicado em relação a George et Louis de Daniel Goosens ou poderíamos ter citado Adèle Blanc-Sec de Tardi - curiosamente recusada pela Spirou de Yvan Delporte, mostrando o tipo de integração desejada, mas encontrando poiso na irónica mas mais familiar Pilote, e não na vetusta e virulenta Hara Kiri -, é sem dúvida a saga de Philémon na sua onírica travessia pelo Oceano Atlântico, a das letras, não o real. Seguramente que o seu Diário de Jules Renard lido por Fred, porém, é uma das obras-primas da banda desenhada sem quaisquer qualificações.
Este livro é uma biografia construída de um modo muito curioso. O nome de Marie-Ange Guillaume, com a ajuda de Maïna Lechernonnier, é o da entrevistadora a Fred e editora dos textos resultantes, mas estes são tecidos de uma maneira a parecer que estamos a ler uma conversa entre Fred e Philémon, organizada cronologicamente para seguirmos desde as raízes familiares de Fred, a partida da Turquia (os pais são gregos, mas viviam entre Istambul e Konya) em circunstâncias dramáticas, o seu crescimento e primeiras leituras e descobertas da banda desenhada como se uma estranha magia se tratasse, os primeiros trabalhos e conquistas, e muitos, muitos pensamentos em torno das coisas do mundo, revelando-se não apenas um homem capaz de uma gargalhada tonitroante e optimista perante o triste mundo, mas que é também capaz de assinalar a melancolia nele existente e transformá-la num gesto de poesia dolorosa (penso sobretudo em Le Petit Cirque, alquimia última entre o humor e a miséria humana, tão a jeito de Charles Chaplin, grande modelo de Fred).
Estas e outras informações reforçam aquela ideia de que toda e qualquer obra artística de um autor tem sempre algum grão de realidade na sua vida pessoal, ainda que não acreditemos que isso nos permita perscrutar essa mesma vida para descobrir chaves de interpretação da obra. As mais das vezes, essas chaves são procuradas não para fazer interpretações, mas antes para apresentar conclusões absolutistas, pretensamente irrevogáveis e por isso o mais abusíveis que possam ser à liberdade que uma obra pede. Ainda assim, uma biografia pode ajudar-nos a aproximarmo-nos - sempre com aquele cuidado - do autor e da sua obra.
Há uma descrição que Fred faz das suas leituras de infância, os mecanismos mentais que lhe eram permitidos pela banda desenhada, que mostra as raízes dos seus instrumentos. Fred explica como apenas descobriu a obra de McCay muito mais tarde, depois da sua infância a ler o Mickey, o Popeye, Bringing up Father e outros materiais norte-americanos (então proibidos pela ocupação Nazi de Paris), logo desviando a possibilidade de uma comunicação directa entre as experiências desse autor maior e as suas, sobretudo naquilo que McCay tinha de fazer as suas personagens agir sobre a camada superficial e material das bandas desenhadas em que se integravam (Sammy Sneeze a destruir a vinheta, Nemo e os companheiros a comer as letras do título, etc.). Diz Fred: “na minha maneira muito especial de ler as bandas desenhadas quando era criança (…) tinha sempre a vontade de levantar os balões para ver o que escondiam. Perguntava-me se o cenário continuava sob os balões ou se haveria um outro balão por detrás desse e talvez um outro ainda… Eu queria saber muito o que se passava ali debaixo. Colocava a página de lado para ver as personagens deformadas. E tinha vontade de me passear por entre as vinhetas, para apanhar os heróis em cuecas, a maquilharem-se antes de entrar em cena. Já via a banda desenhada a três dimensões, e é essa a visão que utilizei depois nas minhas histórias” (pg. 32). É esta “tridimensionalidade” aquilo que Fred incute em Philémon que torna toda a saga não apenas uma mera aventura da sua personagem, mas da própria ontologia e estruturação da banda desenhada. Anos antes de Marc-Antoine Mathieu e Grant Morrison, mas décadas após McCay, eis que Fred se une a todos eles como um elo numa malha intricada e complicada de autores que pensam a banda desenhada pela banda desenhada, ou que criam bandas desenhadas cuja matéria primeira é a própria banda desenhada.
Um problema desta monografia é que os materiais visuais - excertos de revistas, desenhos soltos, e mesmo fotografias - não vêem acompanhados de qualquer data, o que complica algumas interpretações, as quais poderão pecar por falta de rigor na sua integração. Mesmo estando em crer que aquelas imagens que surgem no interior de um determinado capítulo, mais ou menos balizados por “etapas” da vida de Fred, ficam-nos dúvidas. Mas com a excepção dos primeiríssimos trabalhos, incluídos aqueles do fanzine Zéro que daria origem à Hara Kiri, as suas bandas desenhadas iniciais mostram desde logo opções estéticas que encontrariam continuidade: utilização de colagens com materiais múltiplos, opção por uma figuração das personagens e dos cenários através de um “excesso” de linhas descentradas, a despreocupação em criar profundidade tridimensional nos espaços de composição… O que nos leva a crer ao mesmo tempo que o seu treino nos cartoons e gags nas revistas e jornais o aproximam de uma verve estranha, que destoa e contrasta com aquela dos seus colegas. Se ao início, não se vê grande diferença no tipo de humor, numa imediata segunda fase os sinais de surrealismo, nonsense, absurdo, começam a notar-se. Não é somente uma questão de mordacidade, é mesmo a capacidade de criar um écrã de estranhamento na primeira leitura, que só a interpretação abre ao significado final.
Este livro também permitirá aos seus leitores aperceberem-se da quantidade de “private jokes” que ganham direito de cidadania no interior da saga de Philémon: os costumeiros “hum!” de Fred, o cão-deserto-mar Simbabbad de Batbad baseado no cão Simbad do próprio Fred… E os materiais são riquíssimos para dar continuidade à exploração e procura da obra de Fred: colaborações, as peças radiofónicas, o projecto cinematográfico, a escrita de letras de canções, vários desenhos de homenagem ao autor pelos seus companheiros de métier, Anne Goetzinger, Bilal, Juillard, Cestac, Larcenet, entre outros, todos focando a mala de viagem do autor, e, a cereja proverbial, um pequeno excerto das primeiras páginas de um futuro episódio de Philémon: seis pranchas, coloridas, finais, e com o título (provisório?) de Au train où vont les choses, mais uma dessas frases-feitas que Fred gosta de utilizar.
Mas apesar dessas promessas, há algo que Fred diz que revela muito do seu carácter criativo, livre e liberto dos procedimentos normais do mercado comercial em que ele se integra, apesar de tudo. E não é somente o que diz do seu Philémon, mas o comentário que se lhe segue: “Tenho muita pena de te dizer isto, Philémon: não terás aventuras novas. As personagens de banda desenhada nunca deveriam sobreviver aos seus criadores. Elas tornar-se-iam personagens em segunda mão. Personagens em saldos” (pg. 151). Não podemos deixar de ver aqui um posicionamento autoral da parte de Fred que, se se coloca lado a lado à do papa do império franco-belga, Hergé (“Tintin, c’est moi!”), se distancia dos destinos de personagens como Blake & Mortimer, agora votados ao pastiche ad aeternum sem a mesma graça (em todas as acepções desta palavra), ou o que se adivinha com Astérix. Nesta mesma página, Mézières deixa um testemunho dizendo como “não vejo uma descendência Fred como se pode ver pelo mercado esses pós-Lucky Lukes e pós-Spirous. Em Fred, as coisas da vida são assim, evidentes, e elas não podem senão lhe pertencer a ele”. Mais uma forma de retornarmos à questão de abertura, e encontrando em Fred um autor cujo “teor de verdade” tem uma força tal que sobreviverá decerto de uma forma diferente em relação a obras cuja maior circulação é mantida por uma defesa do próprio imaginário da infância.
Nota final: um obrigado ao Frederico Duarte, pelas ajudas.
fred...finalmente
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