Um livro de banda desenhada é também eventualmente escolhido por factores idênticos - este escritor, aquele desenhador, esta personagem, aquela série, estoutro selo editorial, etc. Todavia, o sistema holístico que a imagem do livro em si faz emergir tem um papel fortíssimo: o formato, a capa, o tipo de materiais empregues na sua fabricação. E as imagens. Mais rapidamente folhearemos um livro de banda desenhada (e outros objectos análogos) e teremos as imagens do interior a apoiarem a decisão da sua leitura do que o exame de dois ou três parágrafos, ou de uma estrofe, ou de uma entrada, em livros de texto. (se bem que pode ocorrer qualquer situação em qualquer caso: a espera ou busca de um livro com aquela capa, este verso enigmático fazendo-nos buscar a mesma maravilha nos restantes, etc.).
Este projecto do casal Immonen tem um título enigmático, programático, e paradoxal. É um enigma porque apenas aos poucos, no seu desenvolvimento pela leitura e entrega do leitor vai revelando o seu significado. Programático pois promete a par e passo o que o enredo encerra. Paradoxal pois os significados de que se reveste são, entre si, contraditórios, e por isso mesmo, constroem um cristal reverberante com esses mesmos significados.
A primeira hipótese de tradução mental de “Moving Pictures” é a da sua trama mais basilar: pelo Verão de 1939, na Paris de Vichy, o pessoal do museu do Louvre encontra-se numa azáfama para proteger, embrulhar e eventualmente deslocar muitas das obras de arte que possui, algumas das quais sob a atenção particular da Comissão Militar para a arte dos alemães. Como se escreve na badana do livro: “Esta (não) é essa história”. Na verdade, essa é a apenas a contextualização para elaborar uma trama em torno de duas personagens, uma curadora anglo-canadiana, Ila Gardner, e um oficial alemão, Rolf Hauptmann, trama essa que tanto os envolve profissional como amorosamente, como ainda a outros níveis mais complexos, sem abdicar de uma promessa, jamais revelada de modo claro, quer pelas palavras quer pela representação das imagens, de implicações de espionagem. A narrativa abre com uma entrevista oficial na sede, pressupõem-se, da junta alemã, em que Hauptmann interroga Gardner do paradeiro de certas obras de arte, para introduzir outros temas, ao mesmo tempo que a diegese se abre a analepses tão reveladoras como conducentes à densidade e mistério da história.
Recuando um pouco, portanto - no que diz respeito às finíssimas e indistrinçáveis camadas que compõem uma obra -, chegamos a essoutro significado: o de “imagens comoventes”. Estas imagens não surgem apenas como objectos tangíveis e alvo da atenção dos dois protagonistas, cada um potencial representante de dois pólos de interesses políticos diversos. Elas são, como já afirmado, objectos de desejo, não apenas em termos da posse directa deles mesmos, mas de outras projecções - outra vez - possíveis: a relação sexual mas emocionalmente indiferente entre os protagonistas não é um factor alheio a isso. Um outro objecto é alvo de um clássico MacGuffin, o da espionagem envolvida: um documento oculto? Uma obra-de-arte jamais nomeada? Uma pessoa que pode ser mais do que aquilo que imaginamos ser, e cuja visibilidade apenas serve para ocultar melhor o seu verdadeiro peso e sentido?
O que termina por acontecer do embate de todos esses significados, ou dessas camadas de interpretação possível, baseadas por seu lado nas várias camadas do que se tece em Moving Pictures, é uma novela curta em que a maioria das emoções e das relações ficam por dizer. Esse silêncio pode estar relacionado com vergonha, incapacidades de expressão, força das circunstâncias, ou pura e simplesmente erros de conveniência da parte das personagens. E o ficarem por dizer não quer dizer que não estejam de alguma forma presentes, criando uma patina por todo o texto tal qual o pó imaginário fará sobre as obras de arte deslocadas. Há um momento em que se falam de obras mais tarde reencontradas - “um Reubens numa minha de sal. Um De Chirico no fundo de um poço” - de forma a que se criem “lendas”, as quais uma personagem diz “já se estarem a formar”. Talvez Moving Pictures queira, sem desvendar tudo o que poderia haver a desvendar, criar um movimento análogo em que a sua interpretação “lendária” possa depois ocorrer na mente de cada leitor.
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